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O dia mundial da saúde, 07 de abril, é celebrado desde 1950 na data de criação da Organização Mundial da Saúde como uma oportunidade para reflexão e conscientização sobre todos aspectos associados a esse tema, que nos é tão caro. Após dois dramáticos anos de pandemia, a esperança parece florescer novamente, mas também nos convida a pensar sobre quais caminhos queremos seguir após tanto sofrimento.
Precisamos fazer uma escolha urgente: qual sistema de saúde queremos? A pandemia demonstrou uma vez mais pelo mundo que sistemas públicos com financiamento centralizado são mais eficientes. O SUS, que seria o nosso exemplo, foi fundamental nesses últimos anos, a despeito de seus poucos recursos e da desestruturação de políticas a nível federal. É essencial retomar os investimentos e apostar em políticas públicas de saúde.
A saúde suplementar, por sua vez, já comprovadamente muito mais cara, custando mais que o SUS para atender somente em torno de um quarto da nossa população, apresentou diversos episódios questionáveis ao longo da pandemia: enquanto seus lucros triplicaram em 2020, episódios de negativa de cobertura foram constantes. Em novembro de 2020, por exemplo, apenas 7% dos testes contra Covid-19 haviam sido pagos por planos de saúde.
Como se não fosse suficiente, o setor protagoniza escândalos, como a recente venda da carteira de planos individuais da Amil, reavaliada recentemente pela ANS; o absurdo caso da Prevent Senior, com suspeitas que chegam até a pesquisas em seres humanos sem autorização do órgão ético e a explícita negativa da Hapvida de pagar o que deve ao SUS, se configurando como uma das maiores devedoras do setor ao sistema único de saúde.
Esse último caso, inclusive, ilustra bem um problema maior que parte de um controle agressivo de custos proporcionado pelo modelo verticalizado de negócios (em que a gestora financeira é também a prestadora de serviços) com o repasse de tratamentos caros para o SUS, sem o correspondente custeio. Esses casos exemplificam como a escolha brasileira por dois modelos de saúde é ineficiente e não encontra paralelo em quase nenhum país no mundo. O setor privado compete com o SUS por recursos e drena as poupanças de seus consumidores, particularmente por sua liberdade de aplicar reajustes anuais elevadíssimos, que facilmente superam os 20%.
O desequilíbrio entre os dois, prejudicial ao SUS e favorável às operadoras de planos de saúde, é uma tese já bem consolidada, defendida por estudos ligados à Reforma Sanitária e por instituições financeiras globais, como o Banco Mundial.
O fortalecimento do SUS, no entanto, vai muito além de conter a voracidade do empresariado da saúde. Passa também por estruturar uma rede capaz de fornecer as tecnologias necessárias à reparação da saúde ou produção de bem estar. É preciso garantir a adequada gestão e incorporação de tecnologias ao sistema público, preocupação que inclui não apenas o financiamento adequado, mas também a discussão sobre preço dos insumos.
O debate sobre acesso a medicamentos bem ilustra esse ponto. O aumento crescente de preços consome os recursos de famílias e do Estado. A última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF - 2017) revela o peso dos preços de medicamentos no bolso das pessoas. Em outra frente, preços elevadíssimos impedem até mesmo compras pelo SUS. O recente caso do Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo, comercializado por 11 milhões de reais nos Estados Unidos, e que acaba de ter seu preço teto aumentado no Brasil de 2 para 6 milhões, é um exemplo dramático das vulnerabilidades do país. A empresa dona da patente do medicamento se recusou a comercializar o produto no país enquanto o teto não fosse aumentado.
A solução é ampliar a concorrência no setor e capacitar os laboratórios nacionais. A marca do setor farmacêutico global ainda é infelizmente os monopólios por patentes, muitas delas indevidas ou conferidas a produtos desenvolvidos com recursos públicos. O problema ganha nova dimensão com medicamentos biotecnológicos, muito usados contra doenças reumáticas e na oncologia, e vacinas, cuja produção nacional demanda também a transferência de tecnologia.
O Brasil, apesar de todos seus problemas sanitários, destaca-se como um dos poucos países do globo com laboratórios farmacêuticos públicos, como o Instituto Butantan e duas unidades da Fundação Oswaldo Cruz. Ambos fundamentais para assegurar o abastecimento de vacinas contra a Covid-19. Capacitá-los e apostar em seu valor estratégico é um ponto essencial para garantir a sustentabilidade do SUS.
A incorporação de tecnologias não envolve apenas medicamentos, mas também dispositivos médicos, aparelhos de diagnóstico e tantas outras soluções. Enquanto nova agenda deste século, destacamos as tecnologias de informação e comunicação e as possibilidades associadas à saúde digital. Cabe aqui não apenas reconhecer o valor estratégico dessas tecnologias para o SUS, mas também garantir que seu uso não se reverta contra os usuários.
A recente aprovação da Lei Geral da Proteção de Dados, as mudanças na pandemia, como a autorização ampliada para a telemedicina ou até mesmo a constante coleta de CPFs em farmácias, são peças dessa nova agenda. Há um amplo valor social e econômico no tratamento de dados pessoais de saúde. As novas tecnologias que podem até mesmo romper a tradicional barreira entre clínica e epidemiologia, também podem ser usadas para traçar perfis de usuários com base em seu consumo e barrar seu ingresso em seguros de saúde. Convém incluir tanto a dimensão individual quanto a dimensão coletiva do direito à saúde nessa nova pauta.
O fortalecimento do sistema de saúde brasileiro não é apenas um imperativo para resolver os problemas históricos da população brasileira, mas também uma necessidade para o futuro. Previsões sobre o impacto das mudanças climáticas na saúde humana tornam-se cada vez mais reais, com o aumento de desastres naturais e sua relação com doenças crônicas não transmissíveis.
Cada vez mais, a articulação entre saúde humana, saúde animal e saúde ambiental ocupará espaço central em nossas vidas. Problemas como infecções por superbactérias, resistentes aos antibióticos disponíveis, são um ótimo exemplo, já que sua causa está diretamente associada ao uso desses medicamentos de forma descontrolada pelo setor agropecuário.
A dura lição da pandemia é a necessidade de se construir uma potente agenda voltada para a realização do direito à saúde, que reluz em nossa constituição desde 1988. Essa agenda passa por considerar o complexo conjunto de relações econômicas que envolvem o setor saúde e sua urgente democratização, em favor das pessoas.
*Ana Carolina Navarrete é advogada e coordenadora do programa de Saúde do Idec
*Matheus Falcão é advogado e especialista em Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)