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Artigo publicado no Jota, em 05/06/2020
A ADI 5553, que aguarda julgamento pelo STF, tem suscitado debates relacionados aos seus impactos econômicos mas também às possibilidades e às potencialidades da agricultura brasileira.
Na ação, discute-se a inconstitucionalidade dos benefícios fiscais a agrotóxicos – os quais são concedidos desde 1997, ano em que foi firmado o Convênio ICMS nº 100/1997 pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) – e da isenção total do Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI) sobre alguns tipos de agrotóxicos, conforme o Decreto 7.660/2011, atualizado pelo Decreto 8.950/2016.
A discussão sobre a constitucionalidade da concessão de benefícios fiscais a agrotóxicos, inevitavelmente, esbarra na análise da violação dos direitos fundamentais à saúde, à alimentação adequada e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, vez que o tratamento tributário possibilitado pelos instrumentos citados são importantes alicerces e incentivos ao modelo de produção e consumo agrotóxico-dependente do Brasil.
A (in)segurança alimentar de cada dia
O direito à alimentação, direito social garantido no artigo 6º da Constituição e na Lei 11.346/2006, não é apenas o simples direito ao acesso à comida. Em seu núcleo normativo podemos destacar dimensões, como:
i) a disponibilidade (a produção e circulação de alimentos em quantidade suficiente para alimentar toda a população);
ii) a acessibilidade física e econômica a alimentos;
iii) a adequação dos alimentos disponíveis no mercado (a oferta de alimentos adequados do ponto de vista de sua quantidade, qualidade e segurança, e também de aspectos culturais e informacionais); e
iv) a sustentabilidade (na produção, na comercialização, no consumo e no aproveitamento).
A efetivação de tal direito é complexa e está diretamente vinculada a inúmeros aspectos da organização do Estado, desde a fiscalização e a promoção de políticas públicas implementadas na área à adoção de determinado direcionamento tributário.
A inobservância das diversas dimensões do direito à alimentação propicia o seu descumprimento, seja pela oferta de alimentos contaminados (inadequados), seja pela ampliação dos impactos negativos à saúde e à biodiversidade (não-sustentáveis).
Os resultados mais recentes do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), coordenado pela Anvisa, datam de 10 de dezembro de 2019 e referem-se ao período 2017-2020.
Segundo o relatório, foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 51% das 4.616 amostras. Do total de amostras, 23% foram consideradas insatisfatórias por apresentarem resíduos com concentrações superiores ao Limite Máximo de Resíduos (LMR), o que implica potenciais riscos de intoxicação aguda e crônica advindos da exposição dietética.
Estamos falando de amostras coletadas em estabelecimentos varejistas, ou seja, do alimento que adquirimos para levar para nossas mesas. Inegável que o resultado das análises seja preocupante.
Somam-se a essa preocupação, duas limitações consideráveis do PARA:
a) foram analisados apenas 14 alimentos de origem vegetal (abacaxi, alface, alho, arroz, batata-doce, beterraba, cenoura, chuchu, goiaba, laranja, manga, pimentão, tomate e uva), desconsiderando-se outros alimentos como leite, carne, ovos e alimentos ultraprocessados de consumo crescente no Brasil (como biscoitos, pão de forma, margarina, pratos prontos ou semi-prontos); e
b) foram analisados 270 agrotóxicos diferentes nas amostras – apenas pouco mais da metade dos ingredientes ativos autorizados para uso no Brasil.
Não há existência digna sem saúde e a saúde do cidadão-consumidor deve ser garantida – conforme artigo 5º, XXXII da Constituição e os artigos 4º e 6º do Código de Defesa do Consumidor – por meio da oferta, no mercado de consumo, de alimentos adequados, isto é, que não impliquem perigo a sua saúde ou segurança, seja a curto, médio ou longo prazo.
Não estamos diante apenas de um mero problema de falta de fiscalização para regularização das amostras, como querem fazer crer as vozes representativas do agronegócio.
O ponto é que temos um sistema hegemônico de produção e consumo de alimentos que ameaça e viola, sim, direitos fundamentais porque alicerçado no uso intensivo de agrotóxicos de forma induzida e estimulada pelo Estado.
Tal estímulo, importa dizer, é ofertado a este setor há 23 anos sem critérios técnicos e sem a motivação da adequação e necessidade da medida – ausências depreendidas da própria ata da reunião de aprovação dos benefícios do Convênio Confaz (mov. 137), apresentada pelo Ministério da Fazenda nos autos da ADI 5553.
O direito à alimentação não é efetivado quando há insegurança alimentar ou quando, apesar da acessibilidade física e econômica a uma quantidade constante e suficiente de alimentos, esses não são seguros ou não apresentam a qualidade apropriada para consumo.
A (in)sustentabilidade da produção de externalidades negativas
Como afirmamos, a efetivação do direito à alimentação é multifacetada e precisa levar em conta também a dimensão da sustentabilidade. Sem ela, nossos sistemas alimentares provocam graves externalidades ambientais, sanitárias e sociais que afetam a própria concretização do direito à alimentação.
É o que diz o Relatório da Lancet de 2019, uma das principais revistas científicas do mundo. A insustentabilidade dos sistemas alimentares atuais foi reiterada pela FAO no Estado de segurança alimentar e nutricional do mundo de 2019 e a ONU especificamente pontuou em Relatório sobre Direito à Alimentação que os agrotóxicos assumem papel central nesse desequilíbrio.
No Brasil, pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso analisou 21 cultivos majoritários, representando 71,2 milhões de hectares de lavouras. A soja foi a cultura que mais utilizou agrotóxicos no país, representando 63% do total, seguido do milho (13%) e da cana-de-açúcar (5%). Soja, milho e cana-de-açúcar constituem 76% de toda a área plantada do Brasil e corresponderam a 82% de todo o consumo de pesticidas em 2015.
Ainda, em análise sobre a proporção da produtividade e uso de agrotóxicos na soja, identificou-se que, de 2000 a 2012, o uso de herbicidas por unidade de área cresceu 90,3%, enquanto a produtividade da soja por kg de herbicida cresceu apenas 50,7%.
Já o uso total de agrotóxicos aumentou 162,3% e o uso de agrotóxicos per capita aumentou 124,6%. Dados do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag) demonstram que, de 2000 a 2012, houve 288% de crescimento do uso de agrotóxicos no país.
Os agrotóxicos estão na nossa mesa – fato. Porém, o que estes números indicam é que o maior volume de agrotóxicos utilizados no Brasil destina-se a quatro culturas majoritariamente destinadas à exportação.
São commodities cujos preços são estabelecidos pelo mercado internacional, definidos com base em fatores de produção global, já beneficiadas com outras isenções de tributos para a exportação.
Sem isenções aos agrotóxicos, haveria uma margem de lucro menor para as empresas do agronegócio, já a relação com o aumento do preço de alimentos não é simples e direta, segundo a Fiocruz.
Isto é, dizer que a seletividade tributária aos agrotóxicos é necessária e beneficia os consumidores é uma falácia discursiva, dado que é a grande cadeia de commodities que é subsidiada pelo Estado.
Além disso, são esses mesmos consumidores que arcam com o impacto dos agrotóxicos no Sistema Ùnico de Saúde com o tratamento de cânceres, intoxicações e problemas resultantes desses produtos.
Já sobre o custo de produção, há dados sobre relação do gasto com agrotóxicos e o tamanho por área de propriedade. O Censo Agropecuário de 2017 indica que pequenas propriedades de 2 a 5 hectares – as maiores em número no Brasil, com cerca de 420 mil propriedades cultivadas majoritariamente pela agricultura familiar, que produz a maior parte dos produtos que compõem a base alimentar brasileira – afirmam gastar cerca de 1,6% das despesas de produção com agrotóxicos.
Já as grandes propriedades, com mais de 500 hectares, que representam menos de 17 mil propriedades no Brasil, afirmam gastar 61,4% das despesas com agrotóxicos. O fim da isenções atingiria, portanto, mais os grandes produtores voltados à exportação.
Lembremos que a ADI 5553 não trata da sobretaxa de agrotóxicos ou mesmo de instrumentos da extrafiscalidade para desincentivo de produtos, como é o caso de bebidas alcoólicas e cigarros.
A ação visa tão somente a tributação regular desses insumos como medida de arrecadação de recursos para o mínimo custeio de seus impactos e externalidades negativas. Isso porque a política de incentivo a agrotóxicos é, em si, um desincentivo à efetivação da dimensão do direito à alimentação que trata da sustentabilidade do sistema de produção agrícola.
É possível produzir sem ou com menos agrotóxicos
É preciso impulsionar mudanças substanciais no meio rural e na agricultura. A agroecologia é a ciência e prática nessa seara que “pode servir como base para reorientar ações de ensino, de pesquisa e de assessoria ou assistência técnica e extensão rural, numa perspectiva que assegure uma maior sustentabilidade socioambiental e econômica para os diferentes agroecossistemas”.
Em 2010, o relator da ONU para o direito à alimentação afirmou que a agroecologia “foi criada pela convergência de duas disciplinas científicas a agronomia e a ecologia”. Como ciência, é a “aplicação da ciência ecológica ao estudo, projeto e gestão de agroecossistemas sustentáveis”.
Ao contrário do que propaga o agronegócio, a agroecologia tem o potencial de aumentar a produtividade de alimentos de forma mais sustentável social e ambientalmente.
Alternativas, portanto, existem, mas para que sejam possíveis são necessárias políticas de incentivo à transição e investimentos para a pesquisa na área, tal como dispõe o texto da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), instituída pelo Decreto 7.794/2012.
E, claro, o fomento da agroecologia depende também da implementação de uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara), como propõe o Projeto de Lei 6670/2016, de iniciativa da ABRASCO.
Devemos lembrar, ainda, que dos cerca de 5 milhões de estabelecimentos rurais no Brasil, apenas 1,6 milhões usam agrotóxicos. Mesmo assim, estes sofrem indiretamente com a pulverização vizinha, a contaminação da água e a intoxicação no meio rural e precisam de políticas públicas de desenvolvimento produtivo sustentável para alavancar a sua produção.
A ADI 5553 é um evento importante para o futuro da sociedade brasileira. O que se pleiteia nela é tão somente a análise dos dispositivos que concedem isenções tributárias a agrotóxicos à luz da ordem ambiental, da proteção da saúde e, sobretudo, da proteção ao direito social à alimentação.
Não se trata de limitar a livre iniciativa, mas de atrelar a promoção do desenvolvimento econômico nacional à proteção do consumidor e do meio ambiente, direitos fundamentais e princípios gerais da ordem econômica consolidados em nossa Constituição.
A produção de alimentos e, sobretudo, as suas políticas de incentivos e subsídios econômicos promovidas pelo Estado brasileiro não podem ser incompatíveis com a ordem constitucional.
MARIANA GONDO DOS SANTOS – Advogada do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).
NAIARA BITTENCOURT – Advogada na organização Terra de Direitos, eixo de Biodiversidade e Soberania Alimentar. Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR.
VALÉRIA BURITY – Advogada, Secretária Geral da FIAN Brasil, Mestra em Direito pela UFPB.