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Com o DMA, regulação de plataformas digitais já é realidade

Digital Markets Act está em vias de ser aprovado na União Europeia e deve impactar outras jurisdições

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Atualizado: 

14/04/2022
Foto: Stock
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Por Camila Leite Contri, Helena Secaf, Rafael F. Zanata

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No final de novembro, o Comitê de Mercado Interno e de Proteção dos Consumidores do Parlamento Europeu aprovou o projeto do Digital Markets Act (DMA) por maioria absoluta, com 42 votos a favor, 2 contra e 1 abstenção. O projeto deve ser votado no plenário do Parlamento ainda neste mês para ser negociado com o Conselho Europeu no primeiro semestre de 2022.

Apesar do longo debate europeu sobre uma regulação dos “mercados digitais”, o debate brasileiro ainda é incipiente sobre o tema. Apresentamos neste texto uma primeira explicação sobre o Digital Markets Act e as ideias-força que o mobilizam.

O que é o DMA?

O Digital Markets Act é um projeto de regulação europeu que tramita desde 2020 e tem como objetivo assegurar um maior grau de concorrência nos mercados digitais da União Europeia, impedindo o abuso do poder das grandes empresas digitais e permitindo a entrada de novos agentes. Ou seja, em prol de um mercado mais justo e competitivo, a meta é prevenir práticas desleais e garantir a contestabilidade neste mercado.

A legislação ex ante, aplicada antes que ocorra dano ou violação, busca atingir esse objetivo por meio de uma regulação assimétrica. Ou seja, trata-se de uma regulação que incide somente em algumas plataformas – no caso, o que se chamou de gatekeepers.

Para o DMA, gatekeepers são empresas que oferecem “serviços essenciais de plataforma”, que incluem desde redes sociais (como o Facebook e o Instagram) até mecanismos de busca (como Google), sistemas operacionais (como Android), serviços de compartilhamento de vídeo (como YouTube), que possuem um impacto significativo no mercado interno europeu, operam um ou mais gateways importantes para os clientes e desfrutam (ou que têm a previsão para tanto) uma posição consolidada e durável em suas operações.

A determinação de uma empresa como gatekeeper é feita com base em critérios quantitativos (econômicos e referentes ao número de usuários)[1] e qualitativos. Esses critérios, no entanto, são presunções: é possível que uma empresa que os atenda as refute, demonstrando por meio de indicadores suficientemente embasados o motivo pelo qual não se enquadra na categoria de gatekeeper.

Igualmente, é possível que a Comissão Europeia fundamentadamente designe uma plataforma digital provedora de serviço essencial como um gatekeeper mesmo que esta não atinja os limites presumidos. Uma vez enquadrado como gatekeeper, no entanto, a plataforma está sujeita a uma série de obrigações.

Quais são as obrigações impostas pelo DMA?

Essas plataformas estão sujeitas a um rol de 18 obrigações, que incluem deveres (“do’s”) e vedações (“dont’s”). Essas balizas são inspiradas em práticas de mercados digitais já investigadas e punidas por autoridades concorrenciais, como os casos do Google e do Booking na União Europeia. Como explicado pelo economista Tommaso Valletti, essa é uma escolha explícita de simplificação, por assim dizer, diante das falhas do aparato tradicional de direito concorrencial.

No rol de “do’s”, por exemplo, os gatekeepers devem: permitir que os usuários finais desinstalem aplicativos pré-instalados; assegurar a compatibilidade de aplicativos de terceiros com o sistema operacional do gatekeeper e permitir que esses aplicativos e lojas de aplicativos sejam acessados ​​por outros meios; fornecer aos anunciantes informações sobre preços e, aos editores, informações de remunerações, bem como fornecer a ambos, gratuitamente, acesso às ferramentas de medição de desempenho do gatekeeper e as informações necessárias para realizar sua própria verificação do inventário de anúncios.

Dentre as obrigações no rol de “don’ts”, os gatekeepers devem abster-se: de combinar dados pessoais provenientes de seus serviços essenciais com dados pessoais de outros serviços seus ou de terceiros; de inscrever usuários finais em outros de seus serviços a fim de combinar dados pessoais; de restringir os usuários comerciais de levar às autoridades públicas reclamações relacionadas às práticas de gatekeeper; agrupar (bundle) seu serviço essencial com serviços de identificação ou com serviços essenciais de gatekeepers; de classificar seus próprios produtos e serviços de forma mais favorável do que produtos e serviços de terceiros concorrentes – vedando, por exemplo, as cláusulas de “most favored nation” e assegurando serviços sob condições justas e não discriminatórias.

A norma ainda impõe restrições às chamadas “killer acquisitions”, ou seja, aquisições motivadas pela exclusão de potenciais concorrentes. Essas obrigações podem ser entendidas como uma tentativa de lidar com problemas como a falta de equilíbrio entre os direitos e obrigações dos gatekeepers e seus usuários comerciais e concorrentes, o que acarreta em falta de transparência, falta de contestabilidade e prejudica a criação de valor (eficiência de longo prazo).

Aplicação do DMA

O Digital Markets Act prevê a aplicação das normas de modo centralizado pela Comissão Europeia, em cooperação com as autoridades concorrenciais nacionais dos países europeus. As multas vão de 4% a 20% do faturamento total das companhias.

Essas regras complementam, mas não excluem a incidência do direito da concorrência. Ou seja, a proposta estabelece regras aplicáveis ex ante para minimizar os efeitos estruturais prejudiciais das práticas desleais, sem limitar a capacidade de intervenção ex post do direito concorrencial. 

Contexto do DMA

A iniciativa se insere em um contexto de enfrentamento de práticas anticompetitivas perpetuadas em mercados digitais. Nos últimos anos, diversas autoridades concorrenciais, compartilhando esforços com a academia e com o Legislativo, produziram relatórios sobre as questões e desafios concorrenciais gerados pela economia digital, buscando lidar com o crescente poder econômico das grandes empresas de tecnologia. Desses estudos e debates, começam a surgir iniciativas de regulação das grandes plataformas.

No Reino Unido, as autoridades de proteção de dados (Information Commissioner’s Office, ICO) e a autoridade concorrencial (Competition Markets Authority, CMA) publicaram documento conjunto incentivando a cooperação interinstitucional em temas de mercados digitais. O país ainda criou o Digital Regulation Cooperation Forum (DRCF), que reúne as autoridades concorrencial, de proteção de dados, de comunicações e de serviços financeiros.

Nos Estados Unidos, foram propostos cinco projetos de lei bipartidários no contexto do Subcomitê Antitruste, que em 2020 concluiu uma investigação de 16 meses sobre o estado da concorrência no mercado digital e o poder não regulamentado exercido pelas empresas Amazon, Apple, Facebook e Google. Os projetos visam, de maneira geral, a assegurar um controle mais rígido na expansão das plataformas digitais, regulando critérios de fusões e aquisições e promovendo um ambiente mais favorável à competição.

A Administração Estatal para Regulamentação do Mercado da China também publicou uma proposta de diretrizes para regulação das grandes plataformas. Dentre os objetivos do guia estão a proteção da concorrência leal e dos direitos e interesses dos consumidores, a promoção da inovação científica e tecnológica e uma gestão mais padronizada das plataformas da Internet.

O cenário internacional está se movendo em direção à regulação das plataformas digitais. O DMA é sintoma e evidência de uma profunda mudança na mentalidade dos reguladores. É uma aposta em uma estratégia regulatória que foge dos cânones tradicionais. Sem dúvidas, é um movimento que pode inspirar movimentos legislativos na América Latina nos próximos anos.

[1] Especificamente (i) se a empresa à qual pertence tiver um volume de negócios anual no Espaço Econômico Europeu (EEE) igual ou superior a 6 500 milhões de euros nos três últimos exercícios financeiros, ou se a capitalização bolsista média ou o valor justo de mercado equivalente da empresa à qual pertence tiver ascendido a, pelo menos, 65 mil milhões de euros no último exercício financeiro, e se prestar um serviço essencial de plataforma em, pelo menos, três Estados-Membros; (ii)  se prestar um serviço essencial de plataforma com mais de 45 milhões de utilizadores finais ativos mensalmente, estabelecidos ou situados na União, e mais de 10 mil utilizadores profissionais ativos anualmente, estabelecidos na União, no último exercício financeiro.

CAMILA LEITE CONTRI – Advogada e Pesquisadora no Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). Bacharel e Mestranda em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Possui dupla graduação pela Universidade de Lyon III (França). É coordenadora do Núcleo de Direito Concorrencial e Economia Digital (Nuced-USP)
HELENA SECAF – Bacharel em direito pela FGV-SP e Pesquisadora na Associação Data Privacy Brasil Research.
RAFAEL A. F. ZANATTA – Diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. É mestre pela Faculdade de Direito da USP e doutorando pelo Instituto de Energia e Ambiente da USP. Mestre em direito e economia pela Universidade de Turim. Alumni do Privacy Law and Policy Course da Universidade de Amsterdam. Research Fellow da The New School (EUA). Membro da Rede Latino-Americana de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). Membro do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil (Iberc).

Artigo publicado no site Jota, em 09/12/2021