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Em 23 de junho, o governo federal sancionou a Lei nº 14.016/20, que tem como objetivo evitar o desperdício e incentivar a doação de alimentos e refeições. A ideia parece oportuna em função do momento atual, contudo, segundo o Idec, a nova legislação foi aprovada de forma acelerada, sem debate com a sociedade civil e pode trazer riscos à saúde da população mais vulnerável.
Pela lei, alimentos excedentes não comercializados, dentro do prazo de validade e próprio para consumo podem ser doados a pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional. Qualquer estabelecimento que produza refeições pode fazer doações, até mesmo hospitais. “Esse é um tipo de doação que envolve sérios riscos sanitários à saúde de quem receberá os alimentos”, pontua Patrícia Gentil, nutricionista do Instituto.
Outra crítica é em relação aos tipos de produtos que podem ser doados. Para o Idec, a lei reforça a doação de alimentos processados ou ultraprocessados, como enlatados, molhos prontos e macarrão instantâneo, que possuem quantidades altas de açúcar, sódio e gorduras.
“As evidências científicas são robustas quando apontam a relação de alimentos ultraprocessados com índices crescentes de sobrepeso, de obesidade e de outras doenças crônicas não transmissíveis, fatores de risco que potencializa os efeitos do novo coronavírus para as pessoas. Não há preocupação com o que a população vai consumir e com a garantia de uma alimentação adequada e saudável”, afirma Gentil.
O Instituto reforça que a lei demanda um processo de regulamentação criterioso, definindo as regras para sua operacionalização e qualidade sanitária e nutricional dos alimentos a serem doados. Além disso, necessita de um sistema de fiscalização eficiente para fazer o monitoramento e garantir que a população não tenha impactos negativos em sua saúde.
Consumidores sem direitos
O texto sancionado ignora direitos estabelecidos no CDC (Código de Defesa do Consumidor). Segundo a nova lei, a responsabilidade do doador se encerra no momento em que acontece a primeira entrega do alimento, seja ao intermediário ou ao consumidor final. Também estabelece que tais doações não serão consideradas relação de consumo, criando uma subcategoria de consumidores de alimentos com sérios riscos de contaminação.
Em outras palavras, se um mesmo lote de alimentos é produzido e distribuído tanto para o comércio quanto para doação, os consumidores que pagaram por esse produto podem reclamar e trocar o alimento, caso ele esteja impróprio ou inadequado para consumo. Já o que recebeu esse mesmo produto como doação, só poderá reclamar e solicitar uma reparação dos danos causados se provar que o fabricante ou fornecedor tinham culpa ou a intenção de causar prejuízos à saúde de alguém.
Tal mecanismo afronta a legislação consumerista. De acordo com o CDC, não há diferença entre pessoas que pagam por um alimento e as que podem receber por meio de doação. O consumidor é todo aquele que adquire ou utiliza o produto como destinatário final. Sendo assim, qualquer pessoa poderá demandar pela reparação dos danos causados à saúde, à vida e à segurança independente de prova de culpa ou dolo do fabricante do alimento.
“É fundamental estimular políticas e ações que apoiem o acesso à alimentação de famílias mais vulneráveis, especialmente em momento de calamidade pública. Mas a exclusão de direitos e flexibilização de regras de responsabilidade de fabricantes poderá representar abertura para que produtos inadequados e impróprios sejam entregues à doação, o que colocará em risco a vida e saúde dos seus destinatários finais”, finaliza a nutricionista.