separador
Atualizado:
Entre os dias 20 e 23 de julho, o Idec, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, o Laboratório de Estudos Urbanos e Metropolitanos (Lab.Urb UFMG), a Prefeitura de Caeté, o Observatório das Metrópoles e os movimentos Nossa BH e Tarifa Zero BH realizaram o 2º Encontro Transporte como Direito e Caminhos para a Tarifa Zero. O evento ocorreu na cidade de Belo Horizonte - MG, no auditório da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
Seguindo as trocas realizadas em 2019, no 1º seminário de mesmo nome em Niterói, o novo evento debateu, entre outras coisas, as possibilidades de financiamento público do transporte coletivo, especialmente no modelo de tarifa zero, além de novos modelos concessão, operação e gestão do serviço, com vistas a prover ao setor a sustentabilidade ambiental necessária e a capacidade de atração de novos passageiros.
“Vivemos uma gravíssima crise dos serviços de transporte público no Brasil. A discussão sobre esses problemas tem ficado restrita a cada município. Mas trata-se de uma realidade nacional, que vem de muito tempo e se acentuou com a pandemia. Todos estão sofrendo, usuários do sistema e as empresas, em especial as pessoas mais vulneráveis que dependem totalmente do serviço para acessar outros direitos, como saúde, educação e trabalho”, explica Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec.
Crise
A crise no transporte coletivo, com perda de passageiros e encarecimento do serviço, já vem há anos, mas teve como agravante o isolamento social, necessário para conter a pandemia da Covid-19. Com a queda brusca no número de usuários pagando a passagem, houve uma queda de arrecadação muito grande para as empresas que operam o serviço, mostrando que o atual padrão de contratação dessas companhias está esgotado.
Para garantir a continuidade dos serviços, as prefeituras que puderam, socorreram financeiramente as empresas. Em casos mais graves, as empresas demitiram e deixaram de pagar seus funcionários ou pararam totalmente de executar o serviço, causando greves de trabalhadores e a necessidade de as prefeituras terem de assumir totalmente o serviço de transporte público. Além disso, ao menos 14 Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) foram abertas em Câmaras Municipais pelo Brasil para investigar ilegalidades nos sistemas de transporte público.
De acordo com Calabria, a situação que enfrentamos hoje é consequência de contratos problemáticos feitos pelas prefeituras com as empresas de transporte. Neles, as companhias são remuneradas pela tarifa paga pelo usuário, e não pelo custo que têm para gerenciar e operar o sistema de transporte. “Dessa forma, para aumentar seus lucros, as empresas tendem a reduzir a frota, colocando o maior número de pessoas nos veículos, e a aumentar a tarifa com frequência, o que acaba expulsando mais passageiros pagantes do sistema”, explica.
Segundo ele, a solução a médio e longo prazo seria as prefeituras reverem esses contratos com as empresas, passando a remunerá-las pelo custo do sistema. Por sua vez, esse dinheiro precisaria vir de fontes diversas, que não seja somente a tarifa paga pelo passageiro. “Entre as alternativas estão, por exemplo, repasse de dinheiro por estados e pelo governo federal; verba proveniente de publicidade no interior dos veículos, estações, pontos de ônibus e terminais; dinheiro arrecadado com impostos sobre combustíveis de automóveis individuais etc.”, argumenta Calabria.
O técnico lembra que sem transporte público não há deslocamento, a economia entra em colapso, assim como a vida de todas pessoas, mesmo as que usam seu próprio veículo. Os passageiros do transporte público são, em geral, a parcela mais vulnerável da população e não deveriam, sozinhos, arcar com o financiamento da mobilidade urbana. Isso porque, mesmo sem ser passageiro, todos os moradores de uma cidade são usuários do transporte público, pois se beneficiam da boa qualidade da mobilidade urbana. “Sendo assim, toda a sociedade precisa contribuir com o financiamento do serviço e não apenas quem se locomove com ele, como acontece atualmente”, conclui.
Experiências de tarifa zero
Ao todo foram realizadas oito mesas temáticas para abordar a crise de financiamento do transporte público e apontar soluções, reunindo movimentos sociais, organizações da sociedade civil, gestores e pesquisadores nacionais e internacionais. Também foi feita uma visita à cidade de Caeté (MG) para conhecer o sistema de tarifa zero implementado há um ano. Na ocasião, realizou-se um debate com representantes da prefeitura local e de Garopaba (SC), Mariana (MG), Campo Belo (MG), Maricá (RJ) e Templin (Alemanha), tendo todas essas cidades também adotado o transporte gratuito.
“Foi enriquecedor ouvir a experiência de cada município para viabilizar a tarifa zero e os motivos que levaram à adoção dessa política. Ficou claro que a iniciativa independe do espectro ideológico de cada gestão. Trata-se de garantir o funcionamento e o desenvolvimento da cidade, englobando benefícios sociais, econômicos e ambientais”, analisa o técnico do Idec.
Em Caeté, por exemplo, após a adoção da tarifa zero, o número de passageiros transportados por mês aumentou 133%, sendo 30 mil antes da pandemia e 70 mil agora. Em Mariana, essa ampliação foi de 137%, subindo de 190 mil por mês, antes da pandemia, para 450 mil. Já Campo Belo, em razão do aumento da procura, precisou triplicar o número de linhas, de duas para sete. “Vendo esses dados, fica óbvio que existe uma demanda reprimida de pessoas que não se locomovem, e acabam se transportando a pé, por falta de dinheiro”, aponta Calabria.
O diretor da Empresa Pública de Transporte de Maricá, Celso Haddad, contou que após a implantação da tarifa zero, uma moradora relatou que finalmente pôde conhecer as praias do município. Já o secretário de Defesa Social de Mariana, Tenente Freitas, disse que moradores de baixa renda da zona rural passaram a usar o transporte coletivo gratuito para ir ao centro da cidade vender a produção Hortifrutigranjeira que produzem.
Outra participação importante foi a da cidade de Cuiabá (MT), que afirmou estar estudando a implantação da tarifa zero até o final de 2022. “Se isso acontecer, será a primeira capital do Brasil e talvez a maior cidade do mundo”, comemora Calabria. Atualmente, 46 municípios no país já oferecem transporte público gratuitamente.
Encaminhamento
Para o Idec o encontro foi fundamental para, após dois anos de isolamento social, reunir as organizações da sociedade civil que debatem a mobilidade urbana no país. Isso porque dois momentos cruciais se aproximam: as eleições e a elaboração de um projeto de lei que cria um novo marco regulatório para a mobilidade no Brasil.
“A ideia, a partir de agora, é fortalecer uma coalizão dessas organizações e incidir sobre os debates relacionados a essa nova legislação, que poderá alterar a forma como o transporte é financiado hoje”, explica Calabria. Ele afirma, ainda, que está sendo estudada a possibilidade de se criar um grupo dos prefeitos das cidades onde já existe tarifa zero, com o objetivo de trocar experiências e pressionar as outras esferas do governo a contribuírem e ampliarem essa política.