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Falácias e riscos por trás da Lei do Gás

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Atualizado: 

14/09/2020
Teresa Liporace e Clauber Leite

Os debates sobre a Lei do Gás, que tramita no Congresso Nacional, ignoram o futuro do país. Por um lado, as indústrias disputam o acesso ao insumo em condições competitivas para seus empreendimentos, prometendo geração de emprego e renda. Por outro, distribuidores ávidos por ampliar suas redes gastando pouco insistem na universalização do acesso ao gás e na instalação compulsória de novas usinas de geração de eletricidade. Nesse contexto, a única certeza dos pequenos consumidores residenciais é que serão os mais afetados pelas mudanças climáticas acentuadas pela queima do combustível.

A promessa de geração de emprego industrial graças à energia barata é altamente questionável, tendo em vista o nível de automatização das novas fábricas. Ao mesmo tempo, a proposta de universalização do gás baseada numa sistemática em que as tarifas pagas pelos consumidores financiem a expansão da rede já se mostrou inadequada e insatisfatória, com expansões mínimas e tarifas excessivas. Defensores do livre mercado que hoje advogam em defesa dessa tese precisam reconhecer que os projetos de gasodutos devem ser estruturados de modo a atrair investidores, por meio do mercado de capitais.

Ainda quanto à universalização, a motivação de que essa seria uma alternativa para o consumidor poder escolher a fonte de energia que melhor atenda suas necessidades é uma falácia, tendo em vista o acesso da maioria da população brasileira ao gás liquefeito de petróleo (GLP) para cocção. Na verdade, é necessário apenas o reforço dessa condição, evitando que os aumentos no preço do combustível resultem na sua substituição pela lenha.

No que se refere à geração de energia, reconhece-se a importância da presença de usinas térmicas para sustentar a participação cada vez maior das fontes variáveis (como a solar e eólica) no sistema elétrico nacional. Desse ponto de vista, certamente as usinas a gás natural são melhores do que as unidades a carvão mineral ou nucleares, além de servirem como âncoras da expansão dos gasodutos. Essa questão não pode, no entanto, ser definida de maneira determinativa nas amarras de uma lei: a instalação de novas usinas tem de se dar justamente pelos atributos das fontes, que podem variar ao longo do tempo devido ao desenvolvimento tecnológico, impactos ambientais ou às necessidades técnicas do sistema em determinado momento.

Felizmente, a proposta de desvio de recursos do Fundo Social da saúde e educação para financiar a construção de gasodutos prevista em legislação que tramitava em paralelo à Lei do Gás foi vetada pela Presidência da República. Mas a preocupação em relação ao Brasduto permanece, uma vez que não está descartada a possibilidade de que tal proposta volte à pauta justamente como emenda à Lei do Gás. O fato é que tal possibilidade representa um enorme retrocesso que contraria a própria legislação de criação do Fundo Social. Neste momento, os recursos desse fundo são ainda mais relevantes para saúde e educação tendo em vista os constantes cortes orçamentários dessas áreas, as disparidades socioeconômicas e seu agravamento pela pandemia. Mais, representam subsídio às fontes fósseis que não tem cabimento num momento em que as mudanças climáticas justamente nos obrigam a reduzir sua participação nas matrizes energéticas.

Nesse sentido, aliás, a discussão legislativa ignora por completo as externalidades da produção e consumo do petróleo e gás natural. Os recursos do Pré-Sal e outras reservas brasileiras têm de ser usados em favor dos brasileiros, mas não se pode perder de vista a sua importância para o agravamento das mudanças climáticas. O esforço legislativo deveria levar em conta essas externalidades. Uma alternativa seria a exigência de compensações, por parte de produtores, consumidores e demais envolvidos na cadeia setorial, pelo aumento de emissões de gases de efeito estufa devido à exploração e uso de tais recursos.

Nessa linha, os debates não podem ignorar as novas tecnologias promissoras no campo da energia limpa. O Brasil tem de aproveitar o chamado pré-sal caipira – o potencial de produção de biogás a partir de resíduos da agroindústria (particularmente da cana-de-açúcar) e dos sistemas de tratamento de esgoto, bem como mirar na tecnologia do hidrogênio. Estas sim são alternativas para uma transição energética para uma economia de baixas emissões de carbono.

Ao desconsiderar essas questões e limitar o debate aos aspectos econômicos relativos ao aproveitamento do gás natural, o Legislativo cai na armadilha de que o insumo é o mais limpo dos combustíveis fósseis e vai ser o combustível da transição energética. Essa lógica ignora premissa fundamental que devia estar por trás de qualquer legislação que minimamente pretenda considerar o futuro: as mudanças climáticas são uma realidade e todos os esforços deveriam ser feitos em favor de alternativas que contribuam para evitá-la ou minimizar seus danos, sob pena de prejudicar milhões de brasileiros. Mais, delírios legislativos que acentuem a construção de infraestrutura desnecessária e o repasse de custos às tarifas farão com que o pequeno consumidor siga pagando caro pelo gás, além de ter seus direitos à saúde e educação públicas de qualidade ainda mais comprometidos.

*Teresa Liporace é diretora executiva e Clauber Leite é coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)

Artigo publicado no blog do Fausto Macedo, em Estadao.com, em 14/09/2020