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Artigo publicado na Agência EPBR, em 24/07/2020
Desde as primeiras mudanças provocadas pela pandemia da Covid-19 na rotina e nos negócios, as tratativas e acordos se tornaram lugar comum. As empresas puderam reduzir salários para não demitir, locatários concederam descontos nos aluguéis para manter seus inquilinos e uma série de outros arranjos continuam sendo feitos para evitar que custos e prejuízos recaiam sobre apenas um lado. É a lógica do bom senso, segundo a qual cada um abre mão de um pouco para que uns não sejam beneficiados em detrimento de outros.
No caso dos consumidores de energia, no entanto, a lógica é outra. É o que vem se delineando com a solução adotada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) para o setor elétrico. A princípio, a agência demonstrou preocupação com a situação dos clientes , proibindo temporariamente o corte de energia por inadimplência para residências e atividades considerada essenciais, por meio da Resolução 878. O governo federal também concedeu isenção para os consumidores beneficiados pela Tarifa Social durante a pandemia, com a medida provisória nº 950.
Agora, para resolver o desequilíbrio causado pela crise nas contas setoriais, a agência regulamentou um empréstimo bancário de até R$ 16,1 bilhões a ser pago pelos consumidores em 60 meses, a partir do ano que vem. O dinheiro será usado para equilibrar o fluxo de caixa das distribuidoras, incluindo o pagamento das empresas de geração e transmissão, praticamente blindando a cadeia setorial de qualquer problema relacionado à pandemia.
Ao regulamentar a Conta Covid, como é chamado o socorro ao setor elétrico, a Aneel definiu os critérios para estabelecer os valores que serão repassados mensalmente a cada distribuidora para reequilibrar o caixa. Eles abrangem todas as consequências dos efeitos gerados pelas medidas de isolamento social.
O primeiro critério para definir o valor do repasse é a redução de arrecadação devido aos clientes que não puderam pagar suas contas de energia. O cálculo será baseado na comparação com a média verificada no mesmo período do ano passado. No primeiro semestre de 2019, a inadimplência foi de 2,4%, enquanto o índice estimado nos três meses da pandemia é de 6,3%. É possível que o índice deve se manter elevado, mas há dúvidas quanto à sua evolução, uma vez que falta transparência na apresentação das informações pela ANEEL.
A redução de mercado, por sua vez, é resultado do que deixou de ser consumido por shoppings, lojas, escritórios, restaurantes e todos os prestadores de serviços que paralisaram suas atividades (inclusive algumas indústrias que, se não paralisaram, reduziram sua produção).
Como possuem energia contratada, já comprada, para esta demanda que não houve, as distribuidoras terão de liquidá-la no mercado ao Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), certamente por um valor inferior ao que foi pago na compra, porque há excesso de oferta. Por outro lado, vão pagar às geradoras e transmissoras os montantes definidos antes da pandemia. A diferença ficará a cargo do consumidor, o grande responsável por manter a cadeia do setor elétrico.
Outros dois itens a serem incluídos no cálculo do valor a ser repassado também tornam evidente a transferência dos prejuízos para os consumidores. Um é a diferença de receita decorrente das negociações para parcelar a conta de energia dos clientes do Grupo A, incentivadas pela própria Aneel, após o início da pandemia.
E o outro, a postergação de parte dos reajustes nas tarifas de energia – as correções previstas para abril, maio e junho só passam a ser cobradas a partir de julho. Se os consumidores não precisaram arcar com tarifas maiores em plena pandemia, vão pagar a conta desse benefício com juros a partir do ano que vem.
Por fim, o empréstimo vai cobrir variações de custos, como o preço da energia comprada da Usina Itaipu Binacional (que sofre impacto da cotação do dólar), encargos e outros, que são considerados para definir as tarifas de energia para o ano seguinte.
Como é possível notar, os principais efeitos da pandemia no setor elétrico estão contemplados no cálculo do valor que as distribuidoras vão receber no empréstimo obtido junto aos bancos.
Assim, não apenas elas, mas também as empresas de geração e transmissão de energia têm garantida, mesmo na pandemia, a venda de seu produto e serviço pelos preços contratados em tempos de normalidade.
Adicione-se a isso o fato de que o empréstimo, de até R$ 16,1 bilhões mais juros, com os quais o valor pode chegar a quatro vezes mais, não necessariamente fecha a conta do setor elétrico neste ano. Como a retomada das atividades pós-pandemia não se dará de um dia para o outro, é possível supor que a redução na arrecadação por inadimplência e as sobras de energia se prolonguem em 2021, causando novos desequilíbrios nas contas. Qual será a solução? O setor demandará um novo empréstimo? Os consumidores conseguirão pagá-lo?
O pagamento desse empréstimo e mais prejuízos que devem surgir em 2021 e nos anos seguintes, em razão de desequilíbrio nas contas, pode causar aumentos expressivos nas tarifas de energia nos próximos anos. A incongruência é que um dos principais argumentos para a criação da Conta Covid é justamente evitar que o consumidor enfrente reajustes significativos em 2020.
Se evita que as tarifas subam de maneira excessiva neste ano, pode fazer com que isso ocorra nos próximos, quando o consumidor ainda sentirá os efeitos da Covid-19: prejuízos de diversas ordens em sua renda pessoal e em seus negócios; e desemprego que atingiu patamares inéditos.
A solução definitiva não virá enquanto não admitirmos que o problema no setor é sistêmico. Mais uma vez lançamos mão de uma solução pontual para sanar os prejuízos que não são apenas fruto da atual crise, mas de um modelo que precisa ser revisto para que possa superar eventuais crises. O fato é que não basta uma solução simples para um problema de tão grande complexidade.
A crise da Covid-19 é histórica em todos os sentidos. Sua abrangência e impactos exigem mais ousadia para que o enfrentamento dos seus efeitos não prejudique ainda mais os consumidores. Como peças mais frágeis da cadeia, eles não têm capacidade financeira para assegurar a blindagem das empresas do setor elétrico de qualquer perda de faturamento e lucro. E, em meio à recessão que se anuncia, isso em absoluto não é justo.
Carlos Faria é diretor-presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE).
Clauber Leite é Coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC).