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A Guerra de 100 anos: poupadores vs bancos

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Atualizado: 

14/09/2017
Marilena Lazzarini e Walter José Faiad de Moura*

Há 680 anos, a Europa ocidental testemunhava o início de uma de suas mais longas guerras. A versão mais conhecida entre historiadores é de que o conjunto de batalhas entre França e Inglaterra se conflagrou por mero acaso de dinastias interrompidas.

Tudo teria começado com a morte do rei Carlos IV, que não deixou sucessores diretos. Monarcas bretões atravessaram o canal da mancha e tomaram o norte francês a fórceps. 

Sucessões de tronos a parte, verdade é que os ingleses só queriam passar as mãos sobre terras franco-holandesas e expandir suas divisas comerciais. A principal estratégia da Casa Plantageneta (dinastia de Eduardo III) foi atacar uma França desunida, diluída em pequenos feudos e incapaz de se organizar. 

Enquanto cabeças rolavam em conflitos como o de Agincourt, a tomada de Calais aqueceu como nunca os cofres ingleses com a nova rota de trading continental. Para Postan, quão longa fosse a guerra, mais gordos seriam os lucros de investidores e atravessadores ingleses. No entanto, nem toda glória é eterna.

Entre os anos 1337 e 1453, as finanças da ilha britânica não conseguiram bancar as cavalarias mercenárias. Tampouco as alianças políticas durariam mais de um século. Após cinco gerações consumidas a fio de espada, poucos europeus acreditavam que os ingleses se manteriam em terras francesas. Assim vaticinou Joana D’Arc.

Apesar de ver a metade de sua população dizimada, a vitória da França veio ao final. O solo propre foi mantido. O bom francês não se dobra. Entre bancos e brasileiros, algo parecido ocorre neste último quartel de século.

Durante a hiperinflação, bancos se aproveitaram da celeuma na sucessão de planos econômicos e retiveram os rendimentos de quase nove milhões de poupadores. Nas explicações dadas para inglês ouvir, instituições financeiras sustentaram desconhecer a lei. Entoam direitos até hoje não enxergados por juízes brasileiros.

A guerra brasileira foi travada na trincheira da Justiça. A cavalaria bancária optou por não devolver o dinheiro aos soldats e engordar seus cofres por um bom tempo. A aposta dos financistas era dar o golpe em um grupo de pessoas até então desordenado. Quem eram consumidores nas décadas de 1980? O surrupio passaria despercebido. Assim como franceses espalhados pela vila de Auberoche, poupadores não passavam de pés-rapados ou massas de manobra para operações de alto lucro. 

Para azar das bancas, ocorreu um fenômeno sem precedentes no Brasil: a sociedade se organizou em torno de entidades civis. Nascia a tutela coletiva. Fruto de uma Constituição democrática, cabeças iluminadas como a de Ada Pellegrini formularam modelos legais como o da Ação Civil Pública e do Código do Consumidor. No melhor espírito do acesso à Justiça, prestigiou-se a possibilidade de cidadãos executarem sentenças erga omnes quando vitimados por prejuízos comuns.

Em menos de uma década, lá estavam os bancos condenados em 10 de cada 10 ACPs nas quais se discutiam os famigerados planos econômicos. Assim como ingleses, bancos apostaram no decurso do tempo para manterem seus pés sobre o dinheiro alheio. 

Organizados em torno de federações e verdadeiros exércitos, lutaram com o mesmo brio do Henrique V descrito por Shakespeare. Porém, o que o maior escritor britânico não contou em sua obra foi o declínio da empreitada inglesa.

Em meados de 1453, a planície da Gasconha testemunhou o ponto final da questão. Após muito vaivém, a Inglaterra já não encontrava mais aliados às suas propostas. Copiando a trajetória inglesa, a contenda bancária é tão lastimável quanto o rastro de sangue da Guerra de Cem Anos.

As instituições financeiras já ultrapassaram a casa dos 540.000 recursos judiciais, apenas nas cortes superiores. Já la bataille teve apenas 50 batalhas. Em que pese não durar um século, todos se dão conta da idade dos poupadores que ainda litigam sobre esse tema no Brasil. Muitos deles já beiram o centenário.

A inesgotável beligerância processual dos bancos expõe suas vísceras. É nítido o caráter de protelação visando prescrições, enquanto seus aliados perdem credibilidade. O rastro de sentenças suspensas não gera orgulho a ninguém. É uma página trevosa que marca o tempo em que recursos judiciais são eternos e esvaziam o poder dos juízes.

Ao completar 30 anos, em junho de 2017, o problema dos expurgos amarga a peste da lentidão processual e a ineficiência dos meios tradicionais de solucionar litígios. A última tacada dos bancos é enterrar de vez quem não era filiado às entidades civis que ajuizaram as Ações Civis Públicas.

A manobra faz lembrar a batalha de Herrings. Ingleses se fizeram oponentes dos franceses, escoceses e holandeses. Esqueceram-se de que quanto mais atacada, mais unida estava a França. E, de Herrings em diante, foram 8 derrotas até 1453.

Se Joana D’Arc inspirou as últimas vitórias francesas, algo parecido ocorre com a partida de Ada Grinover, imortalizada por seus ideais não capturáveis pelos bancos. 

Ao intentar extinguir todas as Ações Civis Públicas ajuizadas por ONGs, bancos se voltam contra a Lei Brasileira, o Ministério Público e a Sociedade Civil Organizada. Tática velha, resultado conhecido: recentemente, bancos estão conseguindo unificar e mobilizar toda a sociedade para que cidadãos lutem mais 70 anos por suas garantias.

Lembrando a guerra centenária, espadas foram desembainhadas sem tréguas, mormente porque ingleses jamais reconheceram, na França, um País. Extinguir Ações Civis Públicas é ceifar a Justiça distributiva no Brasil. Simples assim.

A sentença erga omnes contra fraudadores da lei é uma ferramenta inteligente e de alta eficácia em todo o Mundo. Viceja nos Estados Unidos e foi, agora, copiada no Japão. Uma só sentença para abarcar centenas ou milhares de lesões idênticas. Só não se interessa pelo tema quem descumpre a lei em larga escala (e.g., os bancos).

Sete séculos depois, as premissas não se alteraram. Poupadores parecem não ser enxergados como vidas. Quem buscou a Justiça tem sido marginalizado!

Separar o cidadão de sua sentença é como arrancar o francês de sua terra. O pior, em tais circunstâncias, é tentar essa troça pelas mãos da Justiça. Ao fim e ao cabo, o destino da guerra brasileira volta a depender dos Tribunais, ao tempo em que a Justiça trabalha para sair de sua Era Medieval.

A diferença, de 1988, é que a cidadania ativa existe no Brasil. Entidades sérias e o próprio Parquet seguem atentos e não se calam a retrocessos ilegais.

O bom cidadão não se entrega.

 

* Marilena Lazzarini é presidente do conselho diretor do Idec

Walter José Faiad de Moura é advogado e representante do Idec em Brasília