Recentemente, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça julgou os Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 670.117/PB que tratou da possibilidade de cobrança de juros compensatórios antes da entrega das chaves pela construtora do bem.
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06/12/2012
Atualizado:
10/12/2012
Maria Elisa Cesar Novais
A votação, desfavorável ao comprador – consumidor na maioria dos casos em tempos de grande expansão do setor imobiliário – foi por maioria de votos, sendo que, a favor da defesa trazida pela construtora votaram os ministros Antonio Carlos Ferreira, Maria Isabel Galloti, Villas Boas Cueva e Marco Buzzi, e a favor dos argumentos do comprador, os ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Nancy Andrighi. Não surpreende.
O acórdão foi assim ementado:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. DIREITO CIVIL. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. IMÓVEL EM FASE DE CONSTRUÇÃO. COBRANÇA DE JUROS COMPENSATÓRIOS ANTES DA ENTREGA DAS CHAVES. LEGALIDADE.
1. Na incorporação imobiliária, o pagamento pela compra de um imóvel em fase de produção, a rigor, deve ser à vista. Nada obstante, pode o incorporador oferecer prazo ao adquirente para pagamento, mediante parcelamento do preço. Afigura-se, nessa hipótese, legítima a cobrança de juros compensatórios.
2. Por isso, não se considera abusiva cláusula contratual que preveja a cobrança de juros antes da entrega das chaves, que, ademais, confere maior transparência ao contrato e vem ao encontro do direito à informação do consumidor (art. 6º, III, do CDC), abrindo a possibilidade de correção de eventuais abusos.
3 No caso concreto, a exclusão dos juros compensatórios convencionados entre as partes, correspondentes às parcelas pagas antes da efetiva entrega das chaves, altera o equilíbrio financeiro da operação e a comutatividade da avença.
4. Precedentes: REsp n. 379.941/SP, Relator Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 3/10/2002, DJ 2/12/2002, p. 306, REsp n. 1.133.023/PE, REsp n. 662.822/DF, REsp n. 1.060.425/PE e REsp n. 738.988/DF, todos relatados pelo Ministro ALDIR PASSARINHO JÚNIOR, REsp n. 681.724/DF, relatado pelo Ministro PAULO FURTADO (Desembargador convocado do TJBA), e REsp n. 1.193.788/SP, relatado pelo Ministro MASSAMI UYEDA.
5. Embargos de divergência providos, para reformar o acórdão embargado e reconhecer a legalidade da cláusula do contrato de promessa de compra e venda de imóvel que previu a cobrança de juros compensatórios de 1% (um por cento) a partir da assinatura do contrato.
Como relator para o acórdão, o ministro Antonio Carlos Ferreira conclui que:
“O pagamento pela compra de um imóvel em fase de produção, a rigor, deve ser feito à vista. Nada obstante, pode o incorporador oferecer certo prazo ao adquirente para o pagamento, mediante parcelamento do preço, que pode se estender, como é o caso concreto objeto deste recurso, a prazos que vão além do tempo previsto para o término da obra. É, sem dúvida, um favorecimento financeiro que se oferece ao comprador. Em tal hipótese, em decorrência dessa convergência de interesses, o incorporador estará antecipando os recursos que são de responsabilidade do adquirente, destinados a assegurar o regular andamento do empreendimento. Afigura-se, nessa situação, legítima a cobrança de juros compensatórios.”
Alguns pontos são interessantes de ressaltar nesse trecho para se observar a inconsistência do julgamento:
1) O pagamento pela compra de um imóvel em fase de produção, a rigor, deve ser feito à vista.
A Lei de Incorporação Imobiliária, Lei nº 4.591/1964, modificada pela Lei nº 10.931/2004, que acrescentou o patrimônio de afetação àquela, ainda rege, de forma geral, as incorporações imobiliárias e, portanto, os atuais empreendimentos imobiliários que se proliferam no país.
Referida lei, em hipótese alguma, impõe que a aquisição de um imóvel em construção seja feito à vista, sendo bastante questionável a conclusão do ministro, assevere-se, não fundamentada. Ao contrário, na referida lei, há diversos artigos que preveem a aquisição com pagamento total ou parcial de terreno em unidades a serem construídas (artigo 39 da lei). Não é uma regra a aquisição com pagamento total. É uma opção tão possível quanto o parcelamento.
Tal pressuposto seria inadmissível, principalmente quando consideramos que seria pouco provável que alguém, em sã consciência, entregasse todo o valor para pagamento de um imóvel que ainda nem existe. Um imóvel na planta. Exatamente o que inúmeras pessoas hoje fazem: adquirem promessas de construção de imóveis.
O natural, diante da construção de um imóvel é que haja pagamento para cada fase concluída da obra. O parcelamento, portanto, coadunar-se-ia, inclusive com o cumprimento da prestação do construtor, tendo em vista que ou o pagamento da parcela ocorreria em momento imediatamente anterior ao início da etapa correspondente ou logo após o término da referida etapa.
Portanto, o pagamento, em geral, não é à vista. Ocorre a prazo, de acordo com a conclusão da etapa da obra.
2) Haveria um favorecimento financeiro pelo incorporador quando ele oferece prazo para pagamento mediante parcelamento do preço, principalmente quando tais prazos se estendem para além do término da obra.
Pela Lei de Incorporação Imobiliária, parcelamento é opção prevista em lei. Não é benesse. É contrato. É estipulação bilateral de obrigações, não é bônus e assim não pode ser encarado.
Porém, a parte mais interessante do argumento ainda está por vir: “a prazos que vão além do tempo previsto para o término da obra”. Que prazos são esses que extrapolam o contratado término da obra? Trata-se efetivamente do prazo de concessão do financiamento, aquele mesmo concedido por instituição financeira autorizada a funcionar pelo Banco Central, cuja garantia é o próprio imóvel agora devidamente construído e com documentação regularizada, pois, caso contrário, não haveria aprovação de financiamento.
Evidentemente, não se trata de financiamento da construtora, mas de uma instituição financeira que intermedia a relação. É contratação complexa, a envolver três partes, em que uma entrega o capital à segunda, sendo ambas diferentes – pois não haveria sentido se não o fossem – para que a terceira, consumidor, pague à primeira a disponibilização imediata do capital.
A necessidade de ter a instituição financeira explica o porquê de não haver limitação de juros nesses financiamentos, restringidos tão somente por imposições trazidas por legislações específicas do setor imobiliário e, em casos tais como do Sistema Financeiro Imobiliário ou de Carteira Hipotecária, terem juros bem superiores à restrição civil de 12% ao ano.
Portanto, não é a construtora/incorporadora a conceder esse financiamento, mas uma instituição financeira, não se tratando o que ocorre antes da entrega das chaves de financiamento.
3) O incorporador estaria antecipando recursos ao comprador, o que permitiria a cobrança de juros compensatórios.
É interessante salientar que o argumento utilizado de antecipação de recursos é a base da concessão de empréstimos. Os juros são o pagamento pelo tempo em que a pessoa que disponibilizou determinado montante não pôde usufruir daquele valor e, portanto, deverá ser compensada pela indisponibilidade temporária do que dispôs para outrem.
Na concepção do ministro, a incorporadora, então, estaria concedendo um empréstimo ao comprador. O que está diante dos olhos é uma verdadeira inversão de valores. Atemo-nos à definição de incorporador, trazida pela Lei nº 4.591/1964:
“Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.
Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção, se, ao ser contratada a venda, ou promessa de venda ou de cessão das frações de terreno, já houver sido aprovado e estiver em vigor, ou pender de aprovação de autoridade administrativa, o respectivo projeto de construção, respondendo o alienante como incorporador.
Art. 30. Estende-se a condição de incorporador aos proprietários e titulares de direitos aquisitivos que contratem a construção de edifícios que se destinem a constituição em condomínio, sempre que iniciarem as alienações antes da conclusão das obras.”
O que se observa é que é incorporador, que pode ser o construtor quando as vendas das frações ideais de terrenos iniciarem-se antes da conclusão da obra, aquele que compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terrenos que serão vinculadas a unidades autônomas construídas em regime condominial, responsabilizando-se pela entrega das obras concluídas.
A responsabilidade pela construção da obra é a resposta que o incorporador deve dar ao montante que receber pela venda dos terrenos. Esse montante é verdadeira capitalização do incorporador para construir as unidades autônomas.
Partindo desse pressuposto, como é possível inverter os objetivos do pagamento parcelado no contrato de incorporação imobiliária e transformá-lo de capitalização da incorporadora para empréstimo concedido ao comprador? Afinal, só é possível financiar a compra de um imóvel que existe, que esteja individualizado em registro de imóveis para servir de garantia ao financiador. Antes disso, qualquer pagamento é pura capitalização da construtora para levantar o empreendimento.
Assevere-se que a lei de incorporação imobiliária não fala em juros compensatórios ou remuneratórios, apenas em juros de mora, que só surgem com o inadimplemento do contrato (artigos 15, §6º, 36 e 63, §8º), mas fala de reajustamento (artigos 43, V, 46 e 55, §4º), em contratos específicos, desde que previstos. Porém, são reajustes, não pagamento pela indisponibilidade do capital.
No entanto, admitamos que a construtora celebre com o comprador verdadeiro contrato de mútuo, o que seria sensacional, afinal o beneficiado por esse contrato, que seria aquele que receberia o pagamento do mutuário, seria a própria construtora. Mas admitamos. E enquadremos em mútuo feneratício, previsto no artigo 591 do Código Civil, em que há possibilidade de cobrar juros limitados ao montante do artigo 406 do mesmo diploma. Hipótese essa aventada pelo ministro relator ao citar o Recurso Especial nº 1.133.023/PE, em que firmou-se o entendimento de que os juros seriam limitados a 12% ao ano. E ainda que não fosse mútuo, já que é a construtora simples comerciante, mais ainda estaria restrita ao limite legal para a cobrança de juros.
Esse detalhe, de relevância ímpar, não constou da ementa. No entanto, o que se vê na prática são construtoras cobrando juros muito acima do limite legal que, efetivamente, é a elas aplicado, visto que não constituem instituições financeiras a se beneficiarem da liberdade de estipulação de juros contratuais, como definido pela Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal.
Desse modo, mais uma vez mostra o Superior Tribunal de Justiça o seu absoluto desacerto nas questões pertinentes ao direito do consumidor pela completa inversão de valores que se apresentou na decisão em tela.
A verdade é que a ponderação do que é interesse público e coletivo vem sofrendo verdadeiros revezes no âmbito das instâncias especiais. O julgamento deste Recurso Especial é apenas mais um exemplo. O que se observa é que argumentos econômicos e facilmente refutáveis se sobrepõem a argumentos jurídicos, com fundamentos legais explícitos e que traduzem princípios e valores, em pleno desfavor do juridica, tecnica e economicamente vulnerável.