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Saúde suplementar no Brasil: do Estado-protetor ao Estado-agressor

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Atualizado: 

03/07/2018
Fernando Rodrigues Martins, promotor de Justiça em Minas Gerais*

Em tempos próprios e avassaladores da sociedade da informação, ganhou notoriedade a decisão de primeira instância proferida pela Justiça Federal em São Paulo, nos autos da Ação Civil Pública 5010777-40.2018.4.03.6100, proposta pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) em face da ANS (Agência Nacional de Saúde) e que postula como objeto mandamental obrigação de não fazer, no sentido de que o órgão regulador se abstenha de autorizar índice máximo de reajustes nos planos de modalidade individual e familiar, enquanto não desconsiderar fatores exógenos outrora utilizados na recomposição dos planos coletivos e não validar a plenitude das informações inseridas no RCP (Sistema de Comunicado de Reajuste de Planos Coletivos).

A mesma decisão, ainda acompanhando o pleito inaugural, permitiu que a readequação das mensalidades referentes às modalidades individuais e familiares das operadoras de saúde fluíssem nos termos de cálculo do IPCA, aferido pelo IBGE, no acumulado entre o período de maio de 2017 e abril de 2018, o que totalizou 5,72%.

A causa subjacente para ajuizamento e concessão de tutela antecipada — corretíssima do ponto de vista processual — deriva de séria manifestação do Tribunal de Contas da União em auditoria operacional realizada no âmbito da ANS e através da qual foram constatadas graves irregularidades cometidas pela agência sindicada no que respeita a função de estabelecer o reajuste anual.

Evidentemente que a partir da dimensão (e importância) da notícia logo surgiram comentários desairosos, ora criticando o Idec pela postura propositiva assumida quando do ajuizamento da ação civil pública, ora atingindo a função jurisdicional desenvolvida pelo signatário da decisão antecipatória no sentido de dizê-la sem lastro técnico ou caracterizada por favoritismos e exibicionismos.

Longe de apresentar postura em enfrentamento de mérito nessa discussão — obviamente pertencente às partes e ao próprio Estado-juiz —, transparece claro que a questão deve ser analisada à luz dos direitos fundamentais e interesse público: nos primeiros, radicam os deveres de proteção do Estado ao consumidor, e, no segundo, a base ontológica da ANS. Talvez, por esse viés, seja mais tranquilo "construir pontes" discursivas do que aceitar a imposição meramente qualificada pela racionalidade instrumental.

É relevante refletir que os deveres de proteção do Estado aos direitos fundamentais nas relações privadas têm razão de ser pela reconhecida eficácia horizontal que vincula os particulares no respeito recíproco quanto ao trato das questões jusfundamentais. Vale dizer: a atuação protetiva estatal somente existe porque os sujeitos privados estão constitucionalmente entrelaçados. No Brasil, a despeito dessa vinculação não ser tão explícita como ocorre na Constituição da República Portuguesa, na Constituição Federal Russa e na Constituição da Suíça, ela é reconhecida tanto a nível jurisprudencial como dogmático.

No âmbito das relações de consumo, o Direito brasileiro tem aspecto ainda mais sensível, já que a Constituição Federal estabeleceu precisamente o "dever de proteção" do Estado ao consumidor, na dicção clara do inciso XXXII do artigo 5º. Vale transcrever: “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Dessa forma, é importante verificar que, naquelas relações entre sujeitos privados em que num dos polos esteja a pessoa consumidora — independentemente do liame estabelecido com o outro particular —, haverá igualmente direito oponível contra o Estado, no sentido de exigir a necessária promoção.

Esse "direito de proteção" do consumidor em face do Estado, considerando a mencionada relação jusfundamental havida na citada ação civil pública proposta pelo Idec, desdobra-se em efeitos não apenas dirigidos à ANS, senão ao próprio Poder Judiciário. Vejamos.

Conforme prescreve a Lei Federal 9.961/00, cabe à Agência Nacional de Saúde regular, normatizar, controlar e fiscalizar as atividades relativas à saúde suplementar (artigo 1º, caput), bem como autorizar reajustes e revisões das contraprestações pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde (artigo 4º, inciso XVII), sem prejuízo de colher informações das prestadoras para proceder aos cálculos (artigo 4º, inciso XVIII), separando-os quanto às modalidades: assumidas pelo próprio consumidor (planos individuais e familiares; regulados); com auxílio empresarial (planos coletivos; não regulados), ou seja, as bases são diversas.

Há, inexoravelmente, metodologia a ser seguida pela agência, a fim de que os reajustes e revisões não exponham o consumidor a "riscos" desnecessários, inclusive de inadimplência.

Neste ponto, a superveniente decisão havida no Acórdão 679 do Plenário do TCU apontou irregularidades que destituem os reajustes e recomposições da necessária legitimação procedimental, especialmente quanto a questões básicas, entretanto, essenciais ao Estado Democrático de Direito, especialmente no que respeita: a) identificação das normas que sustentam o reajuste máximo para planos individuais e familiares; b) ausência de cumprimento do dever de informação quanto à sistemática utilizada e que deveria estar no sítio eletrônico, conforme Lei da Transparência (Lei Federal 12.527/11, artigo 6º, inciso I); c) dupla utilização de fatores exógenos para composição de reajustes.

Cumpre lembrar que a decisão colegiada, proveniente de órgão público componente do arcabouço do controle da administração pública federal (TCU) e especializado na tomada de contas de todos que burilam com as tarefas estatais (CF, artigo 70, parágrafo único), é, via de consequência, caracterizada como ato administrativo provido, naturalmente, da presunção de boa-fé. Não há dúvidas, pois, que serve notadamente como evidência capaz de sustentar, ao menos provisoriamente, o julgado.

No âmbito dos direitos fundamentais, caso as conclusões extremamente técnicas do TCU não sejam desconstituídas, ao contrário do que legitimamente se espera da ANS como órgão regulador e responsável pela defesa de interesse público fundamental (Lei 9.961/00, artigo 3º), decorrerá a conclusão clara de que já não se está mais na esfera dos deveres de proteção (claramente insuficientes) a serem dedicados ao consumidor, senão na "corresponsabilidade" estatal por perigos de origem privada, ensejadores de direitos de defesa contra o Estado, isto porque o poder público não pode estar vinculado a dever de proteção contra agressões que ele próprio produziu.

De outro lado, retornando aos direitos de proteção do consumidor em face do Estado — hipoteticamente já equidistante da postura da ANS —, soa tranquilo que a opção constitucional brasileira talvez seja uma das mais avançadas no mundo. É que os "direitos de proteção", quando oponíveis ao Estado, alcança todos os poderes e órgãos públicos autônomos que compõem o aparelho estatal, inclusive o Judiciário em inúmeras situações normativas que vinculam o juiz nos seguintes exercícios hermenêuticos: i) interpretação favorável ao consumidor; ii) aplicação obrigatória do CDC, quando se tratar de relação de consumo; iii) exercício de colaboração na relação processual; iv) vedação de proteção insuficiente.

Enfim, o cotejo entre as posições jusfundamentais assumidas no debate preambular dessa ação civil pública está a indicar não apenas a correção da decisão primeva, como o papel propositivo do Idec na promoção dos consumidores e, infelizmente, o distanciamento axiológico da ANS às bases constitucionais que justificam sua existência. Neste último caso, pode-se dizer — evidentemente condicionado à confirmação da decisão colegiada do TCU — da passagem do Estado-protetor ao Estado-agressor.

* Fernando Rodrigues Martins é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), doutor e mestre pela PUC-SP e pesquisador científico pelo Instituto Max Planck (Alemanha).

*Publicado originalmente no ConJur