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20/05/2011
Atualizado:
13/10/2017
Guilherme Varella
A recente aprovação pelo Senado do Projeto de Lei de Conversão (PLV) 12/2011, que institui o chamado Cadastro Positivo, evidencia uma séria deficiência brasileira em relação ao respeito à privacidade e à proteção dos dados pessoais de cidadãos e cidadãs. O texto aprovado ontem pela Casa traz algumas disposições preocupantes no que tange ao direito fundamental à privacidade e ocupa de forma equivocada o vácuo normativo e regulatório que grassa no País nesse campo.
A lei vem no bojo de um ambiente de pressão preparado por aqueles que requerem mais prerrogativas de credibilidade do consumidor no mercado, mesmo que a despeito da interferência direta na esfera privada das suas informações pessoais. Agora, o Cadastro Positivo aguarda apenas a sanção presidencial para ser aprovado. Sua assinatura reforçará o frágil quadro que se configura hoje no Brasil, de completa ausência de marco normativo que discipline o tratamento dos dados e proteja o consumidor de sua utilização indevida pelas empresas e pelo Estado. Na prática, a nova lei dará margem para que se configurem diversos abusos, hoje permitidos sobremaneira pela inexistência de uma autoridade pública de caráter regulador para a criterização, fiscalização e punição ao desrespeito no manuseio de dados pessoais.
Ainda que o projeto aprovado no Legislativo seja melhor que o anterior, o PL 263/04, vetado no fim de 2010, seu texto mantém sério problemas. De acordo com ele, consumidor deve autorizar a utilização de seus dados de forma ampla e irrestrita pelos cadastros de “bons pagadores” que, diga-se de passagem, serão particulares. No entanto, esses mesmos consumidores não podem acessar livre e diretamente seus próprios dados, a fim de verificar eventuais imprecisões e corrigi-los a qualquer tempo. O acesso dos titulares aos seus dados é limitado, de maneira gratuita, a uma vez a cada quatro meses. Certamente, tal previsão traz margem para que a iniciativa privada estruture um absurdo ramo de mercado baseado na cobrança pelo acesso dos cidadãos às suas próprias informações de identidade.
No mais, a nova lei permite vários óbices ao cancelamento pelos consumidores de seu registro nos cadastros, cujos gestores podem continuar utilizando-os indiscriminadamente, inclusive comunicando-os a terceiros desconhecidos dos titulares. Sem garantias sobre os limites dessa utilização, os consumidores tornam-se potenciais vítimas de violação de privacidade.
A despeito desses abusos, o centro da defesa do Cadastro Positivo está nos seus resultados financeiros e mercadológicos. Fala-se em diminuição das taxas de juros e aumento da confiabilidade dos fornecedores, sob o argumento de terem em mãos o rol daqueles que pagam religiosamente suas contas. Tais efeitos, porém, são meras especulações. Não há qualquer garantia dessas benesses, tampouco a segurança de que o consumidor terá melhor tratamento e respeito no mercado de consumo por parte dos fornecedores.
O que se pode atestar apenas é o tratamento dispensado aos dados dos consumidores hoje: totalmente obscuro e ao arrepio da lei. Simplesmente porque lei não há. E a certeza de que o mau atendimento e a cobrança indevida continuam sendo as maiores incidências de reclamação contra as empresas. Isso mudaria com o Cadastro Positivo?
Difícil acreditar. Ainda que a Constituição garanta a privacidade e a intimidade (art. 5º, X e XII), que exista uma lei de sigilo bancário (LC 105/2001) e que o Código de Defesa do Consumidor estabeleça o direito de acesso às próprias informações pessoais (art. 43 e seguintes), falta ao Brasil uma lei específica sobre privacidade, que traga princípios, conceitos, definições, normas, garantias e sanções acerca da proteção dos dados dos cidadãos. Se sancionado, o Cadastro Positivo passará a viger sem uma necessária previsão normativa precedente. Além disso, nos pontos tocados, irá contra as poucas normativas gerais que existem sobre o assunto.
Lei brasileira de proteção de dados
O Ministério da Justiça encerrou recentemente a consulta pública de um projeto de lei avançado e completo, que daria conta de suprir esse lapso normativo. O anteprojeto prevê uma Autoridade de Garantia, que coibiria abusos e supervisionaria o tratamento das informações; preocupa-se especialmente com dados sensíveis, como os relativos à saúde, opções políticas, orientação religiosa e finanças, que podem gerar discriminação no mercado; permite a equiparação internacional da proteção, que impede a vulnerabilidade dos consumidores quando da utilização de seus dados em outros países; e, acima de tudo, estabelece os princípios para a coleta, o manuseio, a cessão, a comunicação, a venda e a utilização das informações pessoais no país.
Tais princípios são baseados em diversas legislações, tratados e diretivas internacionais, de países que, diferentemente do Brasil, já avançaram nessa normatização. Se o projeto de proteção de dados estivesse aprovado, empresas e Estado teriam que obedecer a princípios como: autodeterminação do consumidor, que é o “dono” dos dados e deve decidir como serão utilizados; livre acesso às informações pelos titulares; transparência; responsabilidade de quem os trata; e boa-fé. Este último, importante pilar da defesa do consumidor e bastião de sua proteção no mercado de consumo
Infelizmente, não é esse projeto de lei, de privacidade e proteção de dados, que está sendo aprovado. Aliás, ainda está longe disso. Em vias de virar lei está o Cadastro Positivo, que tem disposições vocacionadas a abusos no tratamento dos dados. O Idec acabou de enviar carta à Presidenta Dilma, com sugestões de veto ao PL aprovado pelos senadores. A esperança agora é de simples “redução de danos”. Que a Presidenta, nesse momento, para além das garantias voláteis dos juros, dos fornecedores e do mercado, se guie pelo direito constitucional à privacidade dos cidadãos e cidadãs brasileiros.