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Observe esses três casos: atleta com esclerose múltipla sem tratamento de sua condição, mãe de criança com microcefalia em situação de vulnerabilidade, podendo não ter acesso a procedimentos, e pessoa transexual que teme perder a cobertura da cirurgia de ressignificação sexual. O que eles têm em comum? Todos são casos reais, cujos tratamentos ficaram ameaçados diante da defesa da taxatividade da lista de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Com a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no início de junho, favorável a uma lista fechada de tratamentos obrigatórios aos planos de saúde, convênios não precisariam mais cobrir o que estava fora do rol da ANS. Negativas de cobertura, como dos casos citados, ocorreram e ainda ocorrem com mais pessoas, sob diferentes circunstâncias – tudo, em prol das empresas de planos de saúde.
É inegável que o julgado favoreceu os interesses das operadoras. Difícil esquecer que logo após o julgamento do STJ, uma seguradora comemorou a decisão da Corte Superior, bem como vibrou frente à possibilidade de negar atendimento domiciliar e oxigênio a seus pacientes. A atitude provocou tamanha indignação por parte da população e de instituições de defesa de pacientes que a empresa precisou se retratar posteriormente.
Em apenas alguns meses após a decisão favorável às operadoras pelo STJ, acompanhamos negativas de procedimentos que haviam sido antes garantidos pelo Judiciário, sob o argumento de que o rol “agora é taxativo”.
O impacto foi tão forte que diversos movimentos de mães de crianças com deficiência, com transtorno do espectro autista, paralisia cerebral, atrofia muscular e outras condições, articularam-se com organizações de defesa do consumidor e de pacientes e pressionaram atores públicos, mostrando ao Legislativo e ao Judiciário a gravidade do problema e a necessidade de uma solução imediata.
A discussão transbordou do STJ e se deslocou para a agência reguladora, para o Legislativo e para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Em resposta, a ANS anunciou a ampliação do número de sessões para diversas terapias a pessoas com autismo e decidiu, em 11 de julho, abarcar também outras condições de saúde. A medida entrou em vigor em agosto. A ANS poderia ter feito isso antes, já que poderia ter identificado a necessidade de garantir essas terapias e sessões em número ilimitado, ao menos quando havia quatro ações civis públicas específicas na Justiça. A agência só fez essas inclusões no rol após intensa pressão popular. O episódio diz muito sobre o quanto o processo de atualização da lista, na verdade, não é tão inclusivo quanto se quer fazer parecer.
No STF, cinco ações foram propostas, uma delas com a participação do Idec. Todas questionavam a constitucionalidade desse caráter taxativo e limitado do rol. As entidades autoras dessas ações pediram liminares para que fossem preservados os tratamentos não listados no rol - todas sob a relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.
A pressão também chegou no Congresso Nacional, a partir da formulação de diversos projetos de lei por parlamentares, a fim de corrigir o erro da decisão do STJ.
Para unificar as propostas legislativas, o presidente da Câmara, Arthur Lira, criou um Grupo de Trabalho para apresentar um texto que resolvesse os problemas que surgiram com o rol taxativo. O resultado desse esforço de formulação e construção de consensos foi o PL 2033/22, aprovado, sem emendas, em 3 de agosto, nas duas casas legislativas. O projeto seguiu para o Senado, sob relatoria do senador Romário (PL-RJ), e foi aprovado no fim de agosto.
A redação do projeto teve como pretensão neutralizar os efeitos negativos da decisão do STJ pela taxatividade do rol. A proposta foi então sancionada na presidência da república e a aprovação da nova lei 14.454/22 favorável às famílias consumidoras ensejou uma resposta intensa das empresas de planos de saúde.
Como uma forma de desacreditar a importância da nova lei para os mais de 49 milhões de usuários, as operadoras voltaram a insistir no falso argumento de que o rol sendo exemplificativo acarretaria em riscos de colapso para o setor.
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A saúde suplementar foi um dos poucos setores que elevou seus ganhos durante a pandemia
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O argumento das operadoras, velho e falacioso, desconsiderava que por mais de 10 anos o Judiciário considerou (e ainda considera, majoritariamente) a lista da ANS uma referência básica, mínima, admitindo cobertura fora dela, e, durante esse mesmo período, o setor cresceu como um todo.
Dados do Ipea mostram que de 2014 a 2018 os lucros das empresas mais que dobraram. Além disso, a saúde suplementar foi um dos poucos setores que elevou seus ganhos durante a pandemia. Pequenos prejuízos detectados em 2022, associados a problemas de gestão e efeitos tardios da pandemia, não representam risco de colapso.
O argumento, por ser vazio e não se sustentar nos dados reais do setor, acabou não convencendo a classe política, que aprovou o texto de lei sem emendas.
A partir de agora, por essa lei, as operadoras de planos de saúde são obrigadas a cobrir tratamentos fora da lista da agência reguladora, seguindo os critérios estabelecidos nela. Com o projeto, consumidores podem dar continuidade com segurança a tratamentos e procedimentos prescritos por médicos.
Essa indiscutível vitória das pessoas consumidoras é fruto de intenso trabalho de entidades de pacientes, de defesa do consumidor, de defesa do SUS e de famílias, pais e mães que não se intimidaram frente ao poder econômico dos planos, procuraram fazer valer sua voz, mesmo em posição de vulnerabilidade - e se fizeram ouvir.
Nós do Idec testemunhamos esse movimento verdadeiramente democrático, em que pessoas triunfaram sobre o lucro, e o direito à saúde prevaleceu. Só nos resta permanecer em alerta para que esse legado conquistado não seja perdido. O rol exemplificativo representa a vida de mais de 49 milhões de pessoas e não vamos deixar que essas vidas sejam atacadas.