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Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 14/04/2021
São duas notícias em uma: para a exígua minoria branca e empresária, as vacinas contra a Covid-19 devem chegar antes da hora. Antes da sua dose, inclusive, mesmo que você faça parte de um grupo com maior risco de contrair ou desenvolver a forma grave da Covid-19. E esta é a segunda notícia: a sua vacina vai atrasar porque empresários e parlamentares decidiram aprovar um projeto de lei que praticamente acaba com todas as condicionalidades para a aquisição e administração de vacinas pela iniciativa privada.
Eles se agarram aos detalhes incluídos de última hora no texto do PL 948/2020 para rechaçar a pecha de furões. Mas não se engane: na prática, integrantes da elite branca brasileira —aqueles mesmos que se opõem a medidas de isolamento, ignoram a máscara, abraçam tratamentos ineficazes, são contra o auxílio emergencial e apoiam um governo absolutamente eficaz em sua política de morte— acabam de aplicar o maior golpe sanitário da história brasileira. Com sua entrada voraz na corrida global por imunizantes, que possivelmente só poderá ser operacionalizada com a ajuda diligente do Ministério da Saúde, sobrarão menos doses para quem mais precisa.
Isso acontece porque vivemos um cenário de escassez global de vacinas —ainda que seja uma escassez artificial provocada pela resistência da indústria farmacêutica e dos países ricos de abrirem mão de suas patentes (uma posição, aliás, apoiada pelo governo de Jair Bolsonaro nos fóruns internacionais).
Nesse contexto, qualquer aquisição que ocorra fora da estrutura do SUS (Sistema Único de Saúde) estará desviando doses dos grupos definidos com base em critérios sociais e epidemiológicos para tornar a campanha de enfrentamento à Covid-19 mais efetiva, equitativa e rápida. Isso significa, na prática, ainda mais mortes entre a população negra e pobre, que é maioria no mercado informal, nas favelas, ruas e periferias e minoria nos quadros das grandes corporações.
Outra consequência direta dessa oficialização do “salve-se quem puder pagar” é a perda completa da nossa capacidade de realizar o trabalho de farmacovigilância, que consiste em acompanhar os resultados de eficácia e segurança da campanha de imunização. Afinal, quem vai controlar se as doses foram aplicadas no prazo correto, se os efeitos adversos estão dentro do padrão estabelecido, se a imunidade do grupo foi de fato adquirida? Quem vai garantir que não haja desvios e fraudes, como as que já vemos acontecer? É por essas e outras que a imunização é uma questão de saúde pública, é um tema de Estado, e não de interesses privados.
O fura-fila da vacina é um dos golpes mais baixos e covardes contra a população brasileira desde o início da pandemia. É também um ataque inaceitável contra a longa e exitosa história do Programa Nacional de Imunização. É uma lembrança macabra de que ainda vivemos sob uma estrutura racista, montada para produzir desigualdade e morte. É o teste positivo de um “Brasil-barbárie”, contra o qual tampouco conseguimos nos vacinar.
*Jurema Werneck é Diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil
*Teresa Liporace é Diretora executiva do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor)