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Artigo publicado no jornal O Globo, de 30/11/2020
As ondas de calor que têm castigado com cada vez mais severidade algumas regiões do país estão transformando os aparelhos de ar condicionado em artigos de primeira necessidade. O problema é que, enquanto refrescam os ambientes, esses equipamentos contribuem para acentuar o caos climático não só por seu consumo excessivo de energia elétrica: alguns gases usados para a refrigeração chegam a ter um potencial de efeito estufa de mais de 2 mil vezes do que o do gás carbônico.
O Congresso tem um papel fundamental para ajudar o país a reverter pelo menos em parte esse quadro. A garantia de que a indústria nacional inclua apenas gases amigáveis ao meio ambiente nesses equipamentos depende da aprovação da Emenda de Kigali. Há um ano na pauta da Câmara dos Deputados, esse texto remete aos debates sobre a camada de ozônio dos anos 1980, quando o mundo inteiro se uniu em torno do Protocolo de Montreal para banir os gases que ameaçavam a camada protetora da Terra.
De lá pra cá, a indústria global implantou uma série de mudanças, como a troca de fluidos refrigerantes danosos ao ozônio estratosférico por hidrofluorcarbonos (HFCs). Mas o sucesso na proteção da camada de ozônio causou outros problemas: os HFCs têm elevado potencial de efeito estufa. Por isso, recentemente também foram incluídos na lista de substâncias controladas pelo Protocolo de Montreal, por meio justamente da emenda definida em convenção na capital de Ruanda. O texto já está em vigor em mais de cem países.
No caso brasileiro, a aprovação da emenda ainda neste ano teria o benefício adicional de garantir o recebimento, pela indústria nacional, de recursos do Fundo Multilateral para Implementação do Protocolo de Montreal para o período de 2021-2023, estimados em US$ 100 milhões. Trata-se de recursos que justamente podem ser usados para garantir mudanças no setor produtivo em favor de sistemas de refrigeração mais ambientalmente corretos, além de contribuírem na geração de empregos tão importantes neste momento crítico.
Na prática, tais investimentos podem ainda ajudar a melhorar a eficiência energética dos aparelhos de ar condicionado. Isso é fundamental para reduzir os gastos de energia e reverter os impactos excessivos desses equipamentos nas contas de luz dos usuários, evitando o comprometimento do orçamento doméstico nas épocas mais quentes.
A medida também é urgente tendo em vista a perspectiva de que a quantidade de sistemas no país passe dos 27 milhões em operação em 2016 para 165 milhões em 2050, conforme estudo da Agência Internacional de Energia.
Certamente a mudança climática impõe desafios relativos ao uso de combustíveis fósseis muito mais significativos do que a substituição dos fluidos adotados nos aparelhos de ar condicionado ou mesmo melhorias tecnológicas que aumentem sua eficiência. Mas a inação não pode ser aceita como resposta. A economia nos ensina que devemos focar primeiro nas frutas que estão mais acessíveis nas árvores. Nesse sentido, a busca por um equilíbrio no paradoxo do ar-condicionado é um passo importante na trajetória contra o caos climático.
Teresa Liporace é diretora-executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)