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Gasodutos: a conta não pode ficar para a população

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Atualizado: 

26/03/2020
Gasodutos: a conta não pode ficar para a população
Gasodutos: a conta não pode ficar para a população
Clauber Leite

O gás natural barato para a indústria deve ser um marco da atual gestão no Planalto. A promessa do ministro da Economia, Paulo Guedes, é de que o Brasil siga o exemplo da revolução do shale gas dos Estados Unidos e promova verdadeiro choque nos custos do insumo. A ideia não passa necessariamente pela exploração de reservas nacionais de gás de xisto, mas pela implantação de reformas estruturais no setor que garantam maior competição em todas as etapas da cadeia gasífera, com reduções expressivas nos custos finais para os consumidores.

A proposta retoma as discussões do programa Gás para Crescer e ecoa a promessa dos grandes consumidores de que os ganhos da energia competitiva serão divididos com toda a sociedade: a Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) afirma que cada R$ 1 a menos no custo da energia para o setor produtivo representa um aumento da riqueza nacional de quase R$ 4 bilhões em 10 anos. Mais, preços competitivos de gás e energia poderiam agregar 1% de crescimento anual ao PIB e gerar 12 milhões de empregos no mesmo período, conforme informações publicadas pela imprensa.

Mas, como diziam nossas avós, quando a esmola é demais, até o santo desconfia. Uma das principais dúvidas com relação à revolução brasileira do gás diz respeito aos custos dos gasodutos necessários para transporte dos volumes adicionais que se pretende adicionar ao mercado. E aí mora o perigo: a perspectiva é que essa conta seja coberta — adivinhe — com recursos dos consumidores. A proposta defendida em particular pela Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado que está contemplada em projeto de lei que tramita no Congresso Nacional é destinar 20% dos recursos do Fundo Social ao chamado Brasduto.

Criada em 2010, a legislação relativa ao fundo determina que parte dos royalties que a União recebe das empresas que exploram as áreas do pré-sal seja usada para programas nas áreas de combate à pobreza, como educação, cultura e saúde pública. Ou seja, agora, propõe-se que parte dos recursos obtidos com a renda de petróleo e gás que hoje são carimbados para fins sociais seja destinada à construção de infraestrutura de transporte de gás.

Os defensores da modelagem alegam que não se trata de subsídio, uma vez que os recursos voltariam ao fundo à medida que os novos gasodutos fossem enchidos. Mas não seria esse um contrassenso diante da promessa de liberalização do setor com consequente atração de investidores privados para a cadeia? Afinal, se os custos dos investimentos nos gasodutos devem ser recuperados via tarifas, não deveriam tais projetos atrair investidores privados, como se verifica no caso de linhas de transmissão?

Vale lembrar que essa possibilidade vai contra o disposto na lei, que determina que a política de investimentos dos recursos do Fundo Social tem por objetivo buscar a rentabilidade, a segurança e a liquidez de suas aplicações e assegurar sua sustentabilidade econômica e financeira para o cumprimento das finalidades. Para tanto, recomenda que os investimentos e aplicações do fundo sejam destinados preferencialmente a ativos no exterior, com a finalidade de mitigar a volatilidade de renda e de preços na economia nacional.

Outro ponto que causa dúvidas é a garantia de que as vantagens da energia competitiva para o setor produtivo resultarão em ganhos para a sociedade como um todo. Evidentemente que, uma vez que alavanque o crescimento econômico, o avanço industrial tem de ser celebrado. Há dúvidas, no entanto, principalmente se couber alguma contrapartida do cidadão: como os resultados prometidos seriam monitorados para comprovar que efetivamente os benefícios em termos de geração de emprego e renda, por exemplo, foram atingidos? E, se isso não acontecer, quem seria responsabilizado?

O enfrentamento de desafios no setor de gás natural prometido pelo governo certamente poderá promover benefícios importantes para a economia nacional. Mas, por maiores que sejam os ganhos futuros prometidos pelo projeto, não podem se dar à custa de cortes em recursos destinados a serviços públicos tão castigados como saúde e educação.

Clauber Leite, pesquisador em Energia do Idec