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As discussões sobre um “novo Cadastro Positivo” começaram há dois anos e, desde sua proposição inicial pelo Banco Central do Brasil, estiveram cercadas de polêmicas. A principal delas refere-se à inclusão automática dos dados pessoais e financeiros de milhões de brasileiros em bases geridas por Serasa Experian, Boa Vista SCPC e Quod, o novo birô de crédito criado pelos cinco maiores bancos do Brasil (Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú-Unibanco e Santander).
Com a inclusão automática de informações de hábitos de pagamento de contas de mais de cem milhões de brasileiros nessas bases, seriam eliminados diversos “custos de transação” em benefício dessas empresas. Imagine o quanto seria possível economizar deixando de gastar em publicidade, custos operacionais (funcionários treinados na “venda” do cadastro positivo) e obtenção do consentimento dos cidadãos. Não é à toa que a Quod afirma que está “aqui para impulsionar o Cadastro Positivo no Brasil e assim mudar o jogo”. Na realidade, mudar as regras do jogo é um grande negócio. Mas seria justo e necessário?
A Câmara dos Deputados dividiu-se com relação ao tema. Entre abril e maio, por diversas vezes, Rodrigo Maia tentou coordenar sessões de aprovação do PLP 441/2017, considerado por entidades de defesa do consumidor e por juristas como um projeto em desacordo com a Constituição e com o interesse público.
Em 09/05, após uma tentativa de retirada de pauta e da obstrução de partidos de oposição, a reforma do Cadastro Positivo foi aprovada por uma margem apertada. 150 deputados disseram não ao texto final, enquanto 273 disseram sim. Mesmo em partidos como PSDB, PMDB e PP houve profunda divisão interna sobre o tema. Assim, o Plenário aprovou somente o mérito do projeto. Os “destaques” – pedidos para análise de partes do projeto após a discussão geral – não foram analisados. Na prática, a aprovação foi apenas simbólica.
Em junho, conforme noticiado pela Folha de São Paulo, o governo adiou a votação dos destaques “para evitar derrota”. Em julho, a Câmara colocou o projeto em segundo plano por ausência de consenso. Paralelamente, em atendimento às exigências de ONGs e especialistas em tecnologia, a Câmara aprovou a tão aguardada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), sancionada em agosto pela Presidência da República. Em um entendimento correto da Câmara, a Lei de Dados Pessoais foi priorizada para, então, retomar a discussão sobre o cadastro positivo.
Aproveitando a janela de votações entre primeiro e segundo turno – e sem chamar muita atenção da população, preocupada com os grupos de Whatsapp e as correntes sobre Bolsonaro e Haddad -, o PLP 441/2017 voltou à pauta da semana no plenário da Câmara dos Deputados. Retoma-se, enfim, uma questão central sobre a reforma do Cadastro Positivo: quais seriam os problemas da inclusão automática dos dados pessoais e financeiros dos brasileiros nessas bases dos “bons pagadores”?
Há, pelo menos, quatro problemas que precisam ser considerados pelos parlamentares.
Primeiro, há um problema de incompatibilidade principiológica com a recém aprovada Lei de Proteção de Dados Pessoais. A Lei afirma, pela primeira vez no direito brasileiro, o princípio da “autodeterminação informativa”. Esse conceito relaciona-se à ideia de que todo cidadão possui o direito de decidir sobre os fluxos de seus próprios dados, em respeito a sua dignidade. Suas informações são parte de sua personalidade e, em um ambiente democrático, é crucial garantir sua capacidade de decidir para que (e em que condições) seus dados podem ser utilizados.
Segundo, parece haver um falso problema sobre a dependência da “inclusão automática” para o bom funcionamento do Cadastro Positivo. Há um ano, cinco milhões de pessoas haviam aderido ao cadastro nos termos da Lei 12.414/2011. Esse número já cresceu para sete milhões. Isso representa um crescimento de 20% de cadastrados, graças ao esforço conjunto de birôs e empresas como Nubank e outras fintechs, que também passaram a defender o cadastro. O crescimento dos últimos meses reforça o argumento de que o cadastro positivo pode ser ampliado com o respeito ao direito de escolha do cidadão.
Terceiro, há um problema relacionado à solução pensada pelo legislador para a “saída prévia”. O PLP 441/2017 diz que, uma vez aprovada a Lei, as empresas possuem 90 dias para informar o cidadão, por qualquer meio, da inclusão automática, garantindo-lhe um “direito de saída prévia” (art. 5º, §7º). Como não há clareza de como essa comunicação deve ocorrer, abre-se espaço para que as empresas enviem, antes de acabar o prazo legal, e-mails ou mesmo mensagens de WhatsApp sobre as vantagens da inclusão automática – e isso seria considerado o suficiente para cumprir com a legislação. Há, ainda, questões operacionais não respondidas: como será possível monitorar o número de pessoas que pediram a “não inclusão”? Como operadoras de telecomunicações, água, luz e serviços básicos serão informadas para não enviarem essas informações aos birôs? Como será possível auditar a efetiva não utilização dessas informações pessoais?
Quarto, há um problema de monitoramento de incidentes de segurança e uso incorreto de dados pessoais pelos birôs. De fato, houve avanço com a aprovação da Lei de Dados Pessoais. Porém, a Presidência vetou a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, órgão regulador formado por profissionais capazes de lidar com problemas complexos de cumprimento da Lei 13.709/2018. Com a inclusão automática proposta no projeto e sem uma Autoridade de Dados Pessoais, os direitos básicos assegurados no art. 6º do PLP 441/2017 e os novos direitos assegurados na Lei 13.709/2018 ficam frouxos. Não seria adequado a Câmara pressionar a Presidência a criar essa autoridade ou derrubar o veto que impediu a criação da Autoridade?
Antes de qualquer aprovação definitiva da reforma do Cadastro Positivo, é dever do Congresso enfrentar essas questões.
RAFAEL A. F. ZANATTA – pesquisador do programa de direitos digitais do Idec em artigo publicado originalmente pelo JOTA.