A base para a relação de uma pessoa com a alimentação começa a ser construída na infância. Para que ela chegue com saúde à vida adulta, portanto, é preciso investir em alimentação adequada e saudável desde os seus primeiros anos de vida. Essa necessidade é urgente no país, já que os índices de excesso de peso são preocupantes. Dados da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), do IBGE, de 2008/2009 mostram que uma em cada três crianças brasileiras está acima do peso recomendado. Ao mesmo tempo, a volta da desnutrição é uma possibilidade que está no horizonte próximo, por conta do aumento dos níveis de pobreza no país.

O primeiro fator de proteção da criança contra desnutrição, obesidade e outras doenças é a amamentação. O Brasil avançou na promoção do aleitamento materno nos últimos anos, mas ainda há espaço para melhora. De acordo com dados do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), menos da metade dos bebês são alimentados exclusivamente com leite materno nos primeiros seis meses de vida.

A regulação das indústrias alimentícias, que dão as cartas no sistema alimentar global, é outro ponto fundamental na proteção da alimentação infantil. Por meio de publicidade e estratégias de marketing, elas buscam criar consumidores fiéis desde o início da vida, mesmo que as consequências do consumo de seus produtos para a saúde sejam negativas. Este capítulo traz informações sobre essa e outras possíveis estratégias e seus impactos na alimentação infantil.

Crianças entre a desnutrição e a obesidade

Os dados relacionados ao estado nutricional de crianças no Brasil mostram um cenário de transição nutricional semelhante ao que ocorre com a população em geral (capítulo 2 e capítulo 3). Em 1975, 26% das crianças de até 5 anos que viviam em áreas urbanas apresentavam baixa estatura para a idade. Dados da POF de 2008/2009 mostram que esse número chegou a 6%. Essa mudança positiva, no entanto, pode ser revertida em breve. O aumento dos números de pobreza e extrema pobreza no país dão uma pista de que a desnutrição pode voltar a crescer nos próximos anos.

sobrepeso na infância e 
1 em cada 3 crianças de 5 a 9 anos apresentavam sobrepeso, de acordo com a POF 2008-2009
1 em cada 5 jovens de 10 a 19 anos se encontravam na mesma situação. Um aumento de 22% em relação à pesquisa anterior, de 2002-2003

O excesso de peso, por sua vez, apresenta crescimento acelerado. Em 2002/2003, 16,7% das crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos apresentavam sobrepeso e 2,3% obesidade. Em 2008/2009, o número de brasileiros com sobrepeso nessa faixa etária chegou a 20,5%, enquanto 4,9% eram obesos.

O quadro geral de alimentação das crianças e adolescentes brasileiros é semelhante ao dos adultos. O aumento no consumo de produtos ultraprocessados é a principal causa para o aumento da prevalência do excesso de peso nessa faixa etária. Há, ainda, questões específicas para a idade. As crianças não conseguem diferenciar adequadamente a realidade da fantasia e isso faz com que esse grupo seja muito mais vulnerável à publicidade de alimentos. Além disso, a alimentação nos primeiros anos de vida influencia os hábitos alimentares e a saúde até a idade adulta. Por isso, é preciso um conjunto de ações que foque especialmente nessa faixa etária para prevenir não só a obesidade como o desenvolvimento de diversas DCNTs (doenças crônicas não transmissíveis).

Leite materno – o primeiro alimento

O leite materno é o primeiro alimento do bebê e deve ser o único até os 6 meses de idade, quando tem início a introdução alimentar. Essa informação pode parecer trivial, mas a amamentação está longe de ser um assunto simples e individual. Garantir que o maior número possível de crianças seja amamentada pelo tempo adequado é assunto para políticas públicas em todo o mundo, por conta dos amplos benefícios para a saúde e nutrição da criança e da mãe, para a economia e para a sociedade. O aleitamento materno deve ser estimulado sempre que possível, desde a primeira hora de vida até os 2 anos (ou mais) da criança. O Guia Alimentar Para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos, lançado em 2019, traz todas as recomendações de alimentação para essa fase da vida.

A composição do leite materno é uma das chaves para sua ampla superioridade em relação a qualquer alternativa artificial. Esse alimento apresenta uma composição nutricional balanceada, que inclui todos os nutrientes essenciais, além de um grande número de componentes que contribuem para o crescimento e o desenvolvimento adequados do bebê. Além dos nutrientes, estão presentes fatores antimicrobianos, agentes antiinflamatórios, enzimas digestivas, diversos tipos de hormônios e fatores de crescimento. A composição do leite muda de acordo com o desenvolvimento do bebê, além de reagir a antígenos: se mãe ou criança contraem uma doença infecciosa, o corpo da mãe produz anticorpos específicos contra o micro-organismo invasor.

O aleitamento materno protege bebês contra morte por doenças infecciosas, incidência de diarreia, infecções respiratórias, problemas na arcada dentária e obesidade, entre outros problemas de saúde, além de fortalecer o vínculo entre mãe e filho. O aumento do aleitamento materno no mundo poderia evitar 823 mil mortes de crianças menores de 5 anos.

A mãe também é beneficiada pela prática da amamentação. Quanto mais prolongado é o aleitamento, maior é o tempo para que a mulher volte a ter ciclos menstruais, o que ajuda a aumentar o tempo entre gestações. A amamentação pode diminuir a incidência de câncer de mama e de ovário. Algumas evidências mostram, também, uma proteção contra a ocorrência de diabetes e uma maior facilidade para que a mulher retorne a seu peso anterior à gravidez.

A II Pesquisa de Aleitamento Materno nas Capitais Brasileiras e Distrito Federal de 2009 traz os últimos dados nacionais sobre amamentação. Os dados mostram que 67,7% das crianças foram amamentadas na primeira hora de vida. No entanto, esse número cai conforme a idade da criança avança. Do nascimento até os 6 meses, a proporção de crianças em aleitamento materno exclusivo é de 41% no conjunto das capitais brasileiras.

A amamentação é um processo complexo que depende de diversas variáveis para dar certo. É comum que as primeiras mamadas provoquem dor e feridas no peito, até que mãe e bebê se adaptem ao novo processo. Além disso, as mulheres precisam de apoio de pessoas próximas durante essa fase e ter a sua licença-maternidade garantida. Sem isso, a amamentação pode ser prejudicada.

A influência da indústria

Além das questões apontadas, a amamentação também enfrenta outro desafio: as práticas de marketing agressivas dos fabricantes de substitutos do leite materno.

Esses produtos são importantes apenas em situações específicas. Quando existem impedimentos para a amamentação, as fórmulas especiais para lactentes podem ser usadas com a recomendação de profissionais de saúde. Mesmo a indicação médica deve ser vista com ressalvas, dada a influência que a indústria de fórmulas infantis, mamadeiras e bicos artificiais exerce também nesses profissionais.

Essa indústria ocupa um lugar importante como dificultadora da amamentação no Brasil e no mundo. Comercializados nos Estados Unidos desde o fim do século XIX e no Brasil desde a década de 1930, foi a partir dos anos 1960 que esses produtos se popularizaram, por conta do desenvolvimento tecnológico.

O primeiro curso de atualização em pediatria organizado por um fabricante de fórmulas infantis aconteceu em 1956. A indústria também premiava, à época, aqueles que ela considerava os melhores trabalhos acadêmicos em puericultura publicados no país.

Com esse tipo de tática, as fórmulas infantis foram progressivamente ganhando mercado no Brasil, em detrimento da amamentação. Ganharam força mitos como “leite materno fraco ou insuficiente” e “fórmula infantil equivalente ao leite humano”. Esse movimento aconteceu de forma global e teve repercussões devastadoras, especialmente para países de baixa renda.

O PROBLEMA DOS BICOS ARTIFICIAIS
O uso de mamadeiras e chupetas faz parte do imaginário relacionado ao universo dos bebês. Esses utensílios, no entanto, prejudicam o aleitamento materno e devem ser evitados. Alguns dos problemas por eles causados são:
Confusão de bicos – o bebê pode rejeitar o seio materno por conta do uso de mamadeiras, já que o esforço para sugar é menor
Problemas no desenvolvimento orofacial
Dificuldades fonoaudiológicas
Maior ocorrência de otites
Dificuldade no desenvolvimento do mecanismo de fome e saciedade
Problemas devido à falta de higienização

Em 1974, o relatório The Baby Killer (A Matadora de Bebês, em tradução livre) acusa a indústria de fórmulas infantis de causar a morte de crianças em países pobres, por usar diversas técnicas de marketing de seus produtos em comunidades sem condições sanitárias suficientes. Sem água potável para as fórmulas e para a higienização dos recipientes necessários para seu uso, houve um aumento no número de crianças doentes e de mortes relacionadas à higiene.

Com a exposição desse tipo de prática, houve um movimento de reação da sociedade civil contra a influência das empresas na amamentação no final dos anos 70. Como resultado, a OMS (Organização Mundial da Saúde) adotou, em 1981, o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, que deveria ser adotado integralmente pelos países-membro. O texto regula o marketing de produtos voltados à alimentação infantil e busca proteger a amamentação.

Políticas públicas para promoção do aleitamento materno e da alimentação

NBCAL

A NBCAL (Norma Brasileira para Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras) corresponde ao conjunto das normas vigentes sobre promoção comercial e rotulagem de alimentos e produtos destinados a recém-nascidos e crianças de até 3 anos de idade. Ela resulta de uma série de movimentos para que fossem criadas normas de comercialização de alimentos para lactentes no Brasil. O texto, atualizado em 2018, traz em seus artigos, entre outras ações, a proibição de imagens de crianças ou texto que assemelhe o substituto ao leite materno nos rótulos; a obrigação dos materiais de informação e educação de conter informação sobre a superioridade do leite materno e a recomendação aos profissionais de saúde para promover e proteger a amamentação.

Apesar de ser um avanço regulatório, a NBCAL não é plenamente aplicada. Não existem mecanismos de controle e fiscalização do poder público para acompanhar o efetivo cumprimento da norma. Além disso, nunca foi feita uma campanha de divulgação que buscasse popularizar os princípios defendidos pela legislação e os direitos de mães e crianças.

Apesar disso, um monitoramento da NBCAL, realizado pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e pela Ibfan Brasil (Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar, na tradução para o português) em 2019 encontrou 433 irregularidades na venda e promoção de substitutos do leite materno como fórmulas infantis e leites em pó. Dentre as irregularidades, 123 eram relativas a compostos lácteos – 28% do total. Um dos problemas mais comuns é a semelhança dos rótulos e embalagens das fórmulas infantis, compostos lácteos e leites em pó, fazendo com que as famílias tenham dificuldade em selecionar o produto correto.

FÓRMULA INFANTIL X COMPOSTO LÁCTEO

Além das fórmulas infantis, a indústria comercializa outros produtos voltados para as mães e que também se colocam como concorrentes do aleitamento materno. São eles a fórmula infantil de seguimento, o leite em pó e os compostos lácteos. Entenda a diferença:

FÓRMULA INFANTIL: alimento artificial que pode atuar como um substituto para o leite materno para recém-nascidos e bebês de até 6 meses. Pode ser indicado por profissionais de saúde em situações em que a amamentação exclusiva não é possível ou suficiente.

FÓRMULA INFANTIL DE SEGUIMENTO: semelhante à fórmula infantil, mas voltada para bebês entre 6 e 12 meses de idade. Também deve ser utilizada somente com indicação de profissionais de saúde, em situações em que a amamentação não é possível.

LEITE EM PÓ: é produzido por meio da desidratação do leite de vaca integral. Deve conter somente proteínas, açúcares, gorduras e outras substâncias minerais próprias do leite. Não deve ser visto como um substituto para o leite materno e não é indicado para crianças menores de 1 ano.

COMPOSTO LÁCTEO: produto ultraprocessado resultante da mistura de leite (no mínimo 51%) e outros ingredientes lácteos ou não lácteos. Costuma conter açúcar e aditivos alimentares. Não é indicado para crianças menores de 1 ano e não substitui o leite materno.

Em suas estratégias de marketing, a indústria trabalha com a confusão entre esses produtos, utilizando embalagens semelhantes e campanhas publicitárias voltadas para mães. Além disso, as empresas utilizam brechas na legislação para realizar promoções e oferecer brindes, tornando os compostos lácteos mais baratos e atraentes. Com isso, existe o risco de mães e pais, acreditando estar fazendo a melhor opção, alimentarem seus filhos com compostos lácteos, produtos que muitas vezes contêm teores elevados de açúcar e outros ingredientes prejudiciais aos bebês.

Amamenta Brasil

Lançada em 2007, a Estratégia Amamenta Brasil tem como objetivo melhorar os índices de aleitamento materno no país. Em 2017, essa política foi integrada à Enpacs (Estratégia Nacional para a Alimentação Complementar Saudável) e passou a levar o nome de Estratégia Amamenta e Alimenta Brasil. O programa tem como objetivo qualificar o trabalho dos profissionais da atenção básica para reforçar e incentivar o aleitamento materno e a alimentação saudável para crianças menores de 2 anos no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde).

Para isso, é realizado o treinamento dos profissionais de saúde, discussão da prática do aleitamento materno e da alimentação complementar (ver abaixo) no âmbito das unidades e monitoramento das populações atendidas por essas unidades. Não há resultados consolidados sobre o impacto da estratégia no país. Um estudo realizado em Ribeirão Preto, no interior do estado de São Paulo, no entanto, encontrou uma relação positiva entre a implementação dessa política e a prevalência de aleitamento materno.

Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano

Os Bancos de Leite Humano são centros onde o leite humano doado por mães voluntárias é recebido, processado, analisado, armazenado e distribuído aos centros hospitalares para alimentar recém-nascidos hospitalizados que, por diversos motivos, não podem ser amamentados por suas mães. A RBLH-BR (Rede Global de Bancos de Leite Humano - Brasil) conta com 224 unidades em todos os estados, além de 218 pontos de coleta de doações. Em 2019, 214 mil bebês foram beneficiados por essa política. A RBLH é considerada um modelo global de política pública voltada à amamentação. Em 2001, a OMS reconheceu a ação como a que mais contribuiu para a redução da mortalidade infantil no mundo na década de 1990. Em 2020, a rede foi novamente homenageada ao receber o prêmio Memorial Dr. Lee Jong-wook pelo trabalho de promoção do aleitamento materno no mundo. Atualmente, há diversos acordos e atividades de cooperação técnica internacional com o modelo brasileiro de bancos de leite.

Fruto de processo participativo de discussões envolvendo sociedade civil, academia e governos, o Marco Legal da Primeira Infância estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância (de 0 a 3 anos). Entre seus princípios, o Marco reconhece a alimentação e a nutrição como áreas prioritárias para as políticas públicas voltadas para esse público.

Introdução Alimentar

Após os 6 meses de aleitamento materno exclusivo, tem início a fase de introdução alimentar da criança, chamada de alimentação complementar, que se estende até os 2 anos. Esse período tem extrema importância na saúde do indivíduo e na adoção de hábitos saudáveis por toda a vida. As recomendações para a introdução alimentar podem ser encontradas no Guia Alimentar Para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos.

Assim como na alimentação da população em geral, a recomendação do Guia é de que as crianças pequenas consumam alimentos in natura e minimamente processados, evitando os produtos ultraprocessados. Dentro dessa indicação, ela deve provar da comida preparada para os outros integrantes da família. A diferença é que, até completar um ano de idade, a comida do bebê não deve conter sal.

A textura deve ser adaptada para a capacidade de mastigação da criança, mas não deve ser ofertada em forma de sopa ou passada na peneira ou processador. No início, a comida deve ser amassada com o garfo, para que haja pequenos pedaços que estimulem a mastigação. Os alimentos devem ser servidos separadamente, para que a criança aprenda e reconheça os sabores, cores, texturas e aromas. Por volta de 1 ano de idade, a criança já pode comer os alimentos com a mesma textura do resto da família.

É muito importante que a criança não seja obrigada a comer tudo o que é colocado em seu prato. Nessa idade, o bebê – especialmente se tiver sido amamentado em livre demanda – tem o mecanismo de fome e saciedade desenvolvido e tem a capacidade de consumir exatamente aquilo que necessita, desde que a oferta de alimentos seja adequada e variada. Forçá-lo a comer mais do que ele deseja, por exemplo, prejudica essa regulação, o que pode influenciar na saúde mais tarde, com o desenvolvimento de obesidade ou transtornos alimentares.

Até os 2 anos de idade, a criança não deve comer alimentos com açúcar adicionado. O consumo desse ingrediente traz prejuízos à saúde – como o aumento da ocorrência de diabetes e cárie dental – e à formação do paladar. Além disso, a oferta de sucos não é recomendada, mesmo os naturais. A bebida não oferece benefícios nutricionais para os bebês por conta do alto índice de açúcar. Isso acontece porque, geralmente, um copo de suco leva maior quantidade de fruta do que a criança comeria. Assim, ela continua consumindo a caloria que está no suco, mas com menos fibras que as contidas no alimento sólido, o que contribui para a falta de saciedade.

A alimentação da criança é influenciada pelo contexto familiar. Se a família tem o costume de consumir produtos ultraprocessados, é muito difícil o bebê criar hábitos diferentes e, portanto, saudáveis. Por isso, o** momento da introdução alimentar pode servir como uma avaliação da alimentação de todos os moradores da casa**. Essa revisão é importante para que, a partir dos 2 anos, quando termina o período de introdução alimentar, a criança mantenha hábitos saudáveis pelos anos seguintes.

Publicidade voltada para crianças

Na avaliação de entidades civis de defesa dos direitos das crianças, a publicidade voltada para o público infantil é proibida pelas normas jurídicas brasileiras.

A própria Constituição Federal, em seu artigo 227, afirma que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, (…), além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) reconhece a criança como um indivíduo em fase de desenvolvimento físico, social e emocional e busca garantir o seu melhor interesse em qualquer tipo de relação. No mesmo sentido, de acordo com o CDC (Código de Defesa do Consumidor), qualquer tipo de publicidade direcionada ao público infantil é abusiva e, portanto, ilegal.

Outro texto importante é o Marco Legal da Primeira Infância, que determina a proteção da criança contra toda forma de violência e pressão consumista e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica. Por fim, a Resolução nº 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) conceituou como abusiva toda publicidade dirigida diretamente ao público infantil. Com força normativa, a resolução traz definições específicas para caracterizar essa prática abusiva, incluindo o uso de linguagem infantil; efeitos especiais e excesso de cores; trilhas sonoras com músicas infantis ou cantadas por crianças; uso de pessoas ou celebridades com apelo à esse público; de personagens ou apresentadores infantis, bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou brindes ou com competições e jogos com apelo ao público infantil.

A proteção da criança contra a publicidade deve acontecer por conta de seu estágio de desenvolvimento. Na infância, as fronteiras entre a realidade e a imaginação ainda não estão claras. Por isso, usar de linguagem apelativa para o universo infantil e aproveitar da deficiência de julgamento e experiência da criança a fim de incentivar o consumo é uma prática considerada abusiva.

Apesar de estar proibida pelas leis, a publicidade direcionada ao público infantil continua sendo veiculada. De acordo com o estudo “Os impactos da proibição da publicidade dirigida às crianças no Brasil”, realizado pela The Economist Intelligence Unit sob encomenda do Instituto Alana em 2017, a maioria dos comerciais dirigidos às crianças (64%) usam linguagem e personagens infantis, 43% usam músicas cantadas por vozes infantis e mais de 20% vinculam a compra de alimentos ao recebimento de brindes. Em um país em que as crianças passam em média cinco horas e meia por dia em frente à TV, a influência da publicidade pode ser decisiva em sua formação.

A OMS e a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) consideram que regular a publicidade de alimentos ultraprocessados é uma medida fundamental no combate à obesidade. A recomendação é que sejam implementadas regulamentações obrigatórias para proibir qualquer tipo de marketing de produtos ultraprocessados dirigido a crianças e adolescentes (inclusive nas embalagens) e restringir o marketing em todos os espaços públicos, inclusive locais onde são vendidos alimentos.

O Chile implementou, em 2016, uma lei de alimentação saudável com o objetivo de diminuir o consumo de produtos ultraprocessados: um modelo de rotulagem que alerta sobre excesso de sódio, açúcar, gordura saturada e calorias em alimentos, a restrição da publicidade voltada para crianças nesses produtos e o banimento da venda desses alimentos não saudáveis em escolas. Uma pesquisa publicada em novembro de 2019 mostrou que a porcentagem de embalagem de produtos “alto em” que utilizavam pelo menos uma estratégia de marketing direcionada a crianças diminuiu significativamente de 36% antes da regulação para 15% após a regulação. Outra pesquisa publicada pela PLOS Medicine mostrou que o consumo de bebidas açucaradas por domicílio caiu 23,7% em relação ao observado antes da regulação.

Um dos desafios atuais em relação à regulação da publicidade voltada para crianças é o aumento dos canais em que essa prática pode ocorrer. Plataformas como o YouTube e redes sociais proporcionam espaço livre para o direcionamento de publicidade para crianças, seja na forma tradicional, semelhante aos anúncios veiculados na televisão, como em novos formatos, como vídeos de testes de brinquedos e de outros produtos.

Alimentação Escolar

O ambiente escolar é um microcosmo que representa a parcela da sociedade em que a criança está inserida. Dessa maneira, tudo o que afeta a alimentação infantil fora de casa deve ser discutido também dentro da escola. Essa proteção dentro do ambiente escolar é importante por diversos motivos. Trata-se de um lugar em que as crianças passam a maior parte de seu tempo e onde, em geral, começam a tomar suas primeiras decisões alimentares autônomas. Além disso, existe uma relação de confiança por parte dos pais de que os profissionais responsáveis pelo ambiente escolar tomarão as melhores decisões para o bem estar de seus filhos. Seja pública ou particular, a escola deve ser vista não apenas como provedora de refeições, mas também de educação alimentar e nutricional e de promoção da saúde.

Alimentação nas escolas

A alimentação recebida na escola pública é um importante fator para a garantia da segurança alimentar e nutricional de crianças e jovens. Ela é fornecida em todas as etapas de ensino, sendo de responsabilidade do estado ou do município, com complementação de verbas feita pelo governo federal.

Para as escolas públicas, existe o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Seu objetivo é promover, em todo o país, a oferta de refeições saudáveis e a educação alimentar e nutricional dos alunos da rede pública. O programa coloca parâmetros mínimos que devem ser seguidos por todas as escolas do país, como o tipo de alimentos permitidos e a presença de nutricionistas responsáveis. A partir dessas regras, estados e municípios podem estipular parâmetros de qualidade superiores ao da legislação federal. O Pnae atingiu, em 2018, 40 milhões de alunos no país.

Uma das ações mais importantes do programa foi a aprovação, em 2009, de uma lei que determina que 30% do valor repassado pelo programa para as escolas públicas deve ser investido na compra direta de produtos da agricultura familiar. Além disso, em maio de 2020 foi publicada a Resolução nº 06/2020 que atualizou as diretrizes do programa a partir das recomendações de alimentação saudável do Guia Alimentar para a População Brasileira. Uma das mudanças implementadas é o aumento da oferta de alimentos in natura, enquanto a oferta de alimentos processados e ultraprocessados passa a ser limitada nos cardápios. Assim, ficam proibidos alguns produtos, como por exemplo as bebidas de baixo valor nutricional (refrigerantes, bebidas adoçadas), barras de cereais, balas, dentre outros. Dessa maneira, os alunos têm mais chance de receber uma alimentação saudável, com menor uso de agrotóxicos, e a produção da agricultura familiar ganha um estímulo importante.

Cantinas escolares

As cantinas são espaços de venda de alimentos dentro das escolas que acontecem sem a mediação de um adulto. Embora sejam mais comuns nas escolas privadas, também aparecem nas unidades educacionais públicas. Não existe ainda uma regra nacional sobre os alimentos que podem ou não ser vendidos, nem sobre a publicidade nesses espaços, embora alguns estados e municípios tenham leis que controlam o seu funcionamento.

As escolas devem ser espaços de proteção da saúde, portanto precisam se preocupar com o que é vendido nas suas cantinas. Medidas para restringir alimentos ultraprocessados nas cantinas, incluir o tema da alimentação saudável no projeto político pedagógico, restringir a publicidade enganosa e envolver a comunidade escolar são fundamentais para promover a alimentação saudável no ambiente escolar.

Por isso, é importante que a regulação das cantinas nas escolas públicas e privadas avance na legislação nacional. Existem alguns projetos de lei que buscam regular a venda de alimentos nas escolas. O PL (Projeto de Lei) 357/2015, em tramitação no Senado, prevê a adoção de medidas para controlar a qualidade dos alimentos comercializados em cantinas nas escolas brasileiras. No entanto, não há previsão para que a matéria seja votada em plenário. Já o PL 1755/2007 busca proibir a venda de refrigerantes nas cantinas das escolas de educação básica. O texto já tramitou nas comissões da Câmara dos Deputados e aguarda votação no plenário.

NA PRÁTICA

Abordada com profundidade apenas nas revistas específi- cas sobre crianças, a alimentação infantil é um tema que pode estar mais presente nas pautas, especialmente na dimensão das políticas públicas. As ações para defesa da amamentação e alimentação saudável farão a diferença na saúde de toda a população no futuro.

Recomendações para embasar a cobertura:

  • A obesidade infantil é uma questão importante de saúde pública, mas deve ser tratada com cuidado. Colocar a culpa pelo excesso de peso das crianças apenas nos pais é uma abordagem equivocada. Em um ambiente alimentar desfavorável, as famílias têm que lidar com muitas influências em relação à alimentação. Diversas políticas públicas poderiam ter uma influência muito maior na saúde das crianças se fossem aprovadas.
  • A amamentação pode ser um processo difícil. Com poucas exceções, todas as mulheres podem amamentar, mas isso não significa que todas conseguirão. A abordagem sobre a amamentação e a alimentação com fórmulas infantis não pode ser feita de maneira individual, e sim coletiva, para evitar culpar a mãe por não conseguir amamentar.
  • É importante destacar que mamadeiras e chupetas interferem na amamentação. Esse ponto não costuma estar presente nas matérias sobre o tema, apesar de sua relevância.
  • A liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela Constituição, mas não é absoluto, como qualquer outro direito. Quando as empresas alegam que regular a publicidade fere a liberdade de expressão para encerrar a discussão sobre o assunto, estão usando uma interpretação duvidosa de conceitos jurídicos. A liberdade de expressão pode e deve ser relativizada quando fere outros direitos, como a saúde pública e a proteção à infância.

Análise de casos

Nesta seção, estudamos matérias sobre o assunto, com exemplos de como as abordagens podem ser ampliadas

Crianças que dormem tarde podem se tornar obesas, aponta estudo

O texto repercute um estudo de fevereiro de 2020 que encontrou uma relação entre falta de sono e obesidade.

Acesse a matéria

PONTOS DE ATENÇÃO

  • O estudo não controla variáveis que podem influenciar os resultados, como a qualidade da alimentação dos participantes.
  • A pesquisa foi feita com um número reduzido de crianças, o que dificulta a extrapolação das suas conclusões para a totalidade da população.
  • O estudo também avaliou o tempo de exposição a telas. Essa variável teve um impacto ainda maior para o excesso de peso, mas ficou em segundo plano no texto.

Frutas do potinho: Nestlé lança papinhas orgânicas e sem conservantes

Essa matéria noticia o lançamento de uma linha de papinhas orgânicas da transnacional de origem suíça.

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PONTOS DE ATENÇÃO

  • O texto se baseia apenas em informações fornecidas pela empresa em uma press trip, sem qualquer ponto contraditório.
  • A papinha apresentada pela empresa não segue as recomendações básicas do Guia Alimentar Para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos. Apresenta mistura de ingredientes sem que se possa reconhecer cada um, além de ter textura lisa, o que não é adequado para bebês.

Moro defende mudanças em regulação para publicidade infantil

O texto repercute a intenção do então ministro da Justiça, Sérgio Moro, de flexibilizar as regras para a publicidade infantil.

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PONTOS DE ATENÇÃO

  • A matéria é totalmente declaratória, sem um contraponto de setores da sociedade que são contra o projeto.
  • Não há a informação de que, para muitos especialistas, a publicidade voltada para crianças já é proibida e não poderia ser alvo de flexibilização.
  • Não há menção aos problemas que envolvem a publicidade infantil.