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Cobertura em alimentação: por onde começar
O tema da alimentação vai muito além do ato de comer. Inclui decisões sobre o quê, onde, como, com quem e o quanto cada indivíduo come. Tudo isso se traduz em comportamento e cultura alimentar.
A própria definição de alimentação saudável é um conceito dinâmico. Até o início dos anos 2000, o foco da academia e das políticas públicas eram os aspectos biológico — nutrientes — e microbiológico — contaminação — dos alimentos. Mas outras dimensões foram incorporadas depois, com o desenvolvimento de pesquisas na área de nutrição.
Hoje, sabe-se que uma alimentação saudável é aquela que respeita os ingredientes locais, sua sazonalidade, as maneiras tradicionais de cozinhar e de usufruir a comida de cada local. Uma forma de produção sustentável, preferencialmente local, também faz parte desse conceito.
A alimentação saudável não deve, portanto, ser simplificada em apenas uma contagem de nutrientes necessários para a manutenção da vida do indivíduo. Esse tipo de redução conceitual, bastante disseminada na sociedade, mais prejudica do que ajuda as pessoas na busca por uma vida mais saudável.
O Brasil é um dos pioneiros na redefinição do conceito de alimentação saudável no mundo. O trabalho do Ministério da Saúde, com a colaboração técnica do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), deu origem à 2ª edição do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014, reconhecido mundialmente como a melhor publicação do gênero.
O que é alimentação saudável?
Entre as muitas definições e abordagens sobre o conceito de alimentação saudável, o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional), em 2007, criou um grupo de trabalho e construiu a seguinte definição:
Alimentação adequada e saudável é a realização de um direito humano básico, com a garantia ao acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo da vida e as necessidades alimentares especiais, pautada pelo referencial tradicional local. Deve atender aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação e prazer (sabor), às dimensões de gênero e etnia, e às formas de produção ambientalmente sustentáveis, livre de contaminantes físicos, químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados.
Sendo assim, o objetivo deste Guia é explicar os aspectos mais importantes desta definição. Ao longo dos próximos capítulos, temas como saúde, dietas e produção de alimentos serão destrinchados para facilitar a cobertura jornalística do tema.
Comer bem não é contar nutrientes
Para definir de maneira mais detalhada o que é alimentação saudável, alguns aspectos são importantes. Um deles é a distinção entre alimentos e nutrientes. Embora a contagem de proteínas, carboidratos, fibras e vitaminas tenha dominado a nutrição por muitos anos, e tenha uma importância no aspecto individual, hoje sabe-se que os nutrientes funcionam de maneira mais complexa do que se pensava. Cada alimento in natura é digerido e absorvido pelo corpo de maneira integrada, pois seus nutrientes funcionam melhor em conjunto.
Um exemplo para entender o conceito são produtos industrializados como cereais matinais e achocolatados prontos para beber. Eles possuem nutrientes adicionados (como ferro, zinco, etc.), mas isso não os transforma em alimentos saudáveis.
Outro exemplo é a comparação entre frutas, suco natural e o suco industrializado. Enquanto uma fruta contém fibras alimentares, que dão saciedade e garantem a absorção do açúcar na velocidade adequada, um copo de suco é feito com mais frutas do que se pode comer, e o preparo elimina as fibras. Assim, o corpo absorve mais açúcares, em uma velocidade mais alta.
Quando a comparação é com o suco industrializado, mais problemas aparecem. Esses produtos contêm substâncias conservantes, estabilizantes, corantes, entre outras. A fruta processada também perde suas vitaminas. A adição de vitaminas sintéticas ao suco não garante que o corpo vá absorvê-las e utilizá-las da maneira correta. Por isso, sucos industrializados não devem fazer parte da alimentação regular.
Logo, é reducionista a visão de pensar na alimentação saudável considerando apenas nutrientes, especialmente do ponto de vista da saúde pública.
Tradição, preparo e ritual
A maneira de preparar alimentos deve respeitar as culturas e gostos locais. O Brasil possui uma grande variedade de tradições alimentares, e nem mesmo a combinação arroz com feijão é usada homogeneamente no território. É importante atuar contra o apagamento histórico das diversas populações, que acabam influenciadas pelos alimentos mais disponíveis no local de compras e assim abandonam alimentos tradicionais, como milho, mandioca, abóbora, amendoim e feijão. A valorização da alimentação tradicional também fortalece a economia local e favorece a preservação do bioma.
Outro ponto importante para uma alimentação saudável é o enaltecimento de todo o ritual que envolve as refeições: planejar, cozinhar, comer em horários regulares e em companhia. O avanço das opções de produtos ultraprocessados colaborou para que as pessoas vissem todo o trabalho que envolve a alimentação como desperdício de tempo. O resgate dessa prática, no entanto, é benéfico à saúde e deve ser estimulado sempre que possível.
O que é a classificação NOVA?
A orientação prática presente no Guia Alimentar baseia-se na classificação NOVA2. Essa metodologia, que ressignifica o entendimento sobre alimentação saudável, classifica os alimentos em relação ao grau e o propósito de processamento. Em linhas gerais, a alimentação deve se basear em alimentos in natura e minimamente processados, principalmente em vegetais, com produção local e consumo sazonal.
Sal, açúcar, óleos e gorduras — os ingredientes culinários — devem ser usados em pequenas quantidades no preparo de refeições. O uso de temperos naturais deve ser incentivado. Alimentos processados também entram nessa definição, embora em quantidades menores. Já os produtos ultraprocessados não devem fazer parte do cardápio da família.
Classificação NOVA × Pirâmide Alimentar
A pirâmide alimentar divide os alimentos em quatro grupos, de acordo com o macronutriente (carboidratos, gorduras, proteínas e fibras) predominante no alimento. Essa divisão foi consagrada pela FDA (Food and Drugs Administration), agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, e ainda é usada com frequência nos meios de comunicação.
Os alimentos do primeiro grupo (carboidratos) deveriam formar a base da alimentação. Em seguida viriam hortaliças e vegetais, depois as frutas e assim por diante, até chegar no grupo de gorduras, óleos e açúcares, que está no topo da pirâmide, com consumo restrito.
O uso da pirâmide alimentar como recomendação nutricional foi reconsiderada, pois o aumento da prevalência de produtos alimentares ultraprocessados na alimentação passou a interferir na decisão das pessoas em relação ao que comer. Outro ponto é que a pirâmide passa a impressão de que o consumo de proteína animal — seja em carnes, ovos ou produtos lácteos — é fundamental para uma alimentação saudável. Sabe-se, no entanto, que uma alimentação estritamente vegetal pode ser saudável também.
Existe uma crença de que todos os alimentos podem estar presentes em uma dieta saudável, desde que não haja exageros. A pirâmide alimentar corrobora essa visão. Sabe-se, no entanto, que o consumo regular de ultraprocessados está ligado ao aumento de problemas de saúde (capítulo 3). Além disso, a pirâmide traz recomendações nutricionais com um olhar voltado apenas para o indivíduo enquanto o Guia leva em consideração o impacto das escolhas alimentares para a sociedade e para o meio ambiente. Assim, a abordagem mais adequada é seguir as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira (2014) e incentivar que seja evitado o consumo de ultraprocessados.
Mudança começa pelo ambiente alimentar
O entendimento sobre aquilo que faz uma alimentação ser saudável extrapola os alimentos em si. Pesquisadores desenvolveram o conceito de ambiente alimentar, que é definido como:
os ambientes físico (disponibilidade, qualidade e promoção), econômico (custos), político (políticas governamentais) e sociocultural (normas e comportamento), em que se vive, estuda e/ou trabalha, e que propiciam oportunidades e condições para que a alimentação ocorra.
O ambiente alimentar afeta a qualidade da alimentação e a saúde dos indivíduos e da comunidade. Uma vez que só é possível comprar o que está disponível localmente e por um preço adequado à renda da pessoa ou da família, os ultraprocessados têm feito cada vez mais parte da dieta dos brasileiros.
Isso acontece porque é cada vez mais comum que localidades específicas — geralmente periféricas —apresentem maior facilidade para a compra de produtos ultraprocessados do que alimentos frescos. Essa tendência já foi detectada em pesquisas acadêmicas e deu origem a conceitos como desertos e pântanos alimentares.
Os desertos alimentares são locais onde o acesso a alimentos in natura ou minimamente processados é escasso ou impossível, enquanto nos pântanos alimentares predomina a venda de produtos altamente calóricos com poucos nutrientes.
Pensar sobre o ambiente alimentar é importante, pois fica claro que não basta que o indivíduo tenha a informação sobre o que comer. É preciso pensar nas opções que se apresentam às pessoas. Qual o acesso a feiras (especialmente orgânicas e agroecológicas), empórios, mercados, hortas comunitárias e demais fontes de alimentos? A resposta a essa pergunta vai ter uma influência decisiva na qualidade da alimentação.
Na prática
O tema da alimentação saudável apresenta alguns desafios específicos. Por ser um assunto multifatorial, nem sempre todos os pontos que envolvem determinada pauta estão claros. Além disso, falta de tempo para a apuração, expectativas em relação ao público leitor e a pressão por audiência e repercussão são fatores que dificultam a cobertura.
Ao longo deste Guia, apresentaremos matérias interessantes para refletir sobre como os diversos temas que abarcam a alimentação saudável são retratados pela imprensa.
Recomendações para evitar a publicação de informações enviesadas:
- Ler os estudos com atenção e pensar criticamente nas conclusões, especialmente quando elas estiverem em desacordo com a maior parte das pesquisas ou forem bombásticas.
- Sempre que possível, entrevistar o responsável pelas pesquisas.
- Cultivar fontes independentes no assunto e conversar com elas para esclarecer dúvidas e também para manter-se atualizado.
- Buscar grupos de pesquisa que atuem com focos específicos, para aprofundar em temas diferentes do usual. O CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) possui um mecanismo de busca para grupos de pesquisa.
- Verificar se os estudos e/ou os pesquisadores foram financiados e se há declaração de conflito de interesse (quando o financiador pode comprometer o resultado do estudo).
Ferramentas úteis
O Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo publicou o livro ComCiência e divulgação científica, com artigos que traçam um panorama sobre o assunto no Brasil.
A Panos Network, uma rede global de instituições que busca fomentar a democracia e o debate público, criou o guia A journalist’s guide to reporting research findings para ajudar os jornalistas a escrever sobre resultados de pesquisas acadêmicas.
O texto 10 things we wish we’d known earlier about researh, publicado pela Journalist’s Resources, que faz parte do Shorenstei Center on Media, Politics and Public Policy, da Harvard Kennedy School, traz dicas curtas e práticas para entender os achados de uma pesquisa.
Análise de casos
Nesta seção, estudamos matérias sobre o assunto, com exemplos de como as abordagens podem ser ampliadas
McDonald’s engorda menos do que prato feito ou comida a quilo
No início de 2019, a imprensa brasileira noticiou com destaque o estudo Measured energy content of frequently purchased restaurant meals: multi-country cross sectional study10 (Mensuração do conteúdo energético das refeições mais pedidas em restaurantes: um estudo comparativo entre países, tradução livre), publicado no BMJ (antigo British Medical Journal), que concluía que a comida de restaurantes fast food e de comida feita na hora podem contribuir igualmente para a pandemia de obesidade. A abordagem mais comum trazia como destaque o fato inesperado: fast food engorda menos do que prato feito.
Esse caso é complexo e demonstra diversas questões fundamentais para analisar a cobertura sobre alimentação saudável na imprensa. Afinal, se essa era a conclusão do estudo, qual o problema com a manchete que diz “McDonald’s engorda menos do que prato feito ou comida a quilo”?
PONTOS DE ATENÇÃO
- A classificação das refeições levou em conta o tipo de estabelecimento, e não o tipo de comida. Em cada restaurante avaliado perguntou-se quais eram as duas preparações mais populares, que foram então analisadas. Em alguns casos, restaurantes tradicionais apontaram salgados fritos como os produtos mais populares. Ao mesmo tempo, houve restaurantes considerados como fast food que apontaram refeições completas (com arroz, feijão e carne) como as mais populares.
- Acompanhamentos como bebidas adoçadas e sobremesas não foram analisados. Em geral, esses alimentos estão mais presentes nas refeições em restaurantes fast food, o que aumenta o excesso de açúcar consumido nesse tipo de estabelecimento.
- A metodologia do estudo não permitiu analisar o que as pessoas comeram ao longo do dia. Refeições fast food costumam promover uma menor saciedade ao longo das horas em relação às refeições tradicionais.
- De uma forma geral, não foi comparada a qualidade nutricional dos produtos consumidos.
- Apesar de as refeições terem sido discriminadas no estudo, não há uma análise sobre a presença dos produtos ultraprocessados nas refeições, que impactam a qualidade da comida.
“As pessoas não devem ter medo de consumirem gordura”, diz médico Maurício Egydio
Em dezembro de 2019, uma entrevista publicada pelo site Correio do Interior teve como tema as controvérsias sobre o consumo de gordura. Depois de passarem anos como vilãs de uma alimentação saudável, as gorduras foram reabilitadas como necessárias em uma dieta saudável. Entretanto, o texto publicado simplifica a questão.
PONTOS DE ATENÇÃO
- O título da matéria induz o leitor a acreditar que consumir gordura de forma indiscriminada é saudável. As gorduras são de fato necessárias para o corpo, mas há diferenças fundamentais entre gorduras insaturadas e saturadas - também presentes naturalmente em alimentos in natura - e gorduras trans, essa última usada em ultraprocessados como resultado de processamentos industriais, por exemplo.
- O texto usa como base a Pirâmide Alimentar, abordagem já ultrapassada.
- Uso de pesquisas sem fonte identificada. Esse tipo de prática permite que os dados sejam deturpados sem possibilidade de questionamento.
- Ignora a contribuição da ingestão de gorduras saturadas como fator de risco para doenças cardiovasculares.
- Desvincula a ingestão de gorduras em geral do desenvolvimento de doenças crônicas, como diabetes e obesidade.
- Simplifica a causa de doenças crônicas, que costumam ser multifatoriais, ao consumo ou não de um nutriente específico.
Vida saudável: a dieta vegana ganhará força em 2020, afirma especialista
Matéria publicada em dezembro de 2019 no site da revista Veja apresenta o veganismo e o vegetarianismo como uma tendência para o futuro da alimentação saudável. Entretanto, nem sempre essas dietas são saudáveis.
PONTOS DE ATENÇÃO
- Elenca uma série de produtos industrializados veganos, como hambúrgueres, lasanhas, salsichas, queijos e snacks. No contexto da matéria, esses ultraprocessados são apresentados como opções saudáveis. No meio do texto, uma especialista faz o alerta em relação a esses produtos, mas a informação não aparece em destaque.
- Coloca veganismo e vegetarianismo como sinônimos de dieta saudável.
- Apresenta ingredientes de difícil acesso - farinha de arroz, de maracujá, de amendoim, de aveia, de coco e de banana - como importantes para uma dieta vegana saudável.