O Brasil é um dos países que mais consome agrotóxicos no mundo. Apesar de evidências crescentes de que o consumo de agrotóxicos causa câncer, prejudica o meio ambiente e impacta a organização social, não há indicação de que esse cenário mudará no futuro próximo.

Isso acontece porque o modelo de produção de alimentos que prevalece no Brasil é marcado pela expansão das monoculturas, com predomínio de soja e milho. Esse modelo, que ainda tem como característica a concentração do uso de terras, com grandes propriedades (latifúndios) para poucos proprietários, tem a sua base no uso de agrotóxicos. Voltado para atender às necessidades da indústria alimentícia e da agropecuária, e não para o consumo direto da população, esse sistema é cada vez menos saudável e sustentável.

O discurso corrente é de que, se não houver uso de agrotóxicos, não há como produzir alimentos para a população. Essa afirmação é uma meia verdade. No modelo atual de produção e investimento é fato que os agrotóxicos são um elemento central. Não há como manter a produtividade de monoculturas sem esses produtos. Além disso, mesmo pequenos agricultores podem ficar presos a esse modelo por falta de incentivos, colocando a própria saúde em risco.

Entretanto, pesquisas e experiências práticas mostram que, com uma mudança no modelo de cultivo, é possível aumentar a produtividade de lavouras que não utilizam agrotóxicos e torná-las viáveis para grandes volumes de alimentos. O plantio com respeito ao meio ambiente, aos trabalhadores e ao consumidor exige que os recursos hoje destinados para a monocultura mudem de alvo para financiar pesquisas e garantir assistência técnica que permitam novas formas de produção. Sob a perspectiva de consumo, os incentivos precisam fomentar uma lógica que amplie o acesso à população que faz a compra direta, assim como segmentos da sociedade beneficiados pelas compras institucionais, como por exemplo a aquisição de alimentos para a alimentação escolar.

Agrotóxicos

Agrotóxicos são produtos químicos sintéticos usados para matar insetos, larvas, fungos, carrapatos, ervas daninhas e tudo o que altere o cultivo de uma planta. Sob a justificativa de controlar as doenças provocadas por esses vetores e de regular o crescimento da vegetação, essas substâncias vêm sendo amplamente utilizadas.

É preciso entender, no entanto, que o surgimento de pragas é em maior parte resultante de sistemas desequilibrados. Uma área de monocultura de milho, por exemplo, que anteriormente tinha uma grande variedade de espécies, agora passa a ter uma variedade única e exclusiva em uma grande extensão de terra, ficando muito mais suscetível a pragas do que sistemas mais diversificados e equilibrados, como as produções agroecológicas, por exemplo.

Existe hoje um uso abusivo de agrotóxicos no país, que impacta os consumidores e, com mais intensidade, os trabalhadores rurais. O Brasil é o país que mais gasta, em valores absolutos, com a importação de agrotóxicos, de acordo com o Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. Aqui, a agricultura é responsável pelo consumo de 20% da produção mundial desses produtos.

Em 2013, foram importados R$ 10 bilhões em agrotóxicos e similares. Já o Censo Agropecuário de 2017 mostra que o gasto com agrotóxicos no país naquele ano foi de R$ 32 bilhões.

Qualquer que seja o número usado, no entanto, fica claro que agrotóxicos são utilizados de maneira intensiva no Brasil. Seu uso está disseminado ao longo de boa parte da cadeia produtiva agrícola – e a tendência é que isso siga se intensificando. Em 2019, foram publicadas as autorizações para o uso de 503 agrotóxicos no país, 53 a mais do que em 2018, de acordo com levantamento realizado pela ONG Repórter Brasil. Além disso, ao longo de 2019, um conjunto de flexibilizações nas normas de classificação, monitoramento e controle de agrotóxico vem sendo implementado pelo Ministério da Agricultura e pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

O uso indiscriminado dos agrotóxicos se espalha por todos os tipos de alimentos comercializados no país. Embora o foco geralmente seja imaginar alimentos in natura afetados por esses pesticidas, os alimentos industrializados, especialmente os produtos ultraprocessados, têm como principais ingredientes as commodities agrícolas líderes no uso de agrotóxicos, incluindo milho e soja - o que sugere uma maior exposição da população também por conta desses produtos.

Agrotóxicos, saúde e meio ambiente

O uso disseminado e indiscriminado de agrotóxicos traz problemas de diversas ordens. Um deles é a ameaça à saúde da população. A exposição aos agrotóxicos pode causar uma série de doenças, dependendo do produto, do tempo de exposição e da quantidade do ativo absorvido pelo organismo.

A Iarc (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, na sigla em português), vinculada à OMS, classificou o princípio ativo (o principal ingrediente do agrotóxico) glifosato – o mais consumido no Brasil – como provável agente carcinogênico. Os inseticidas malationa e diazinona receberam a mesma classificação.

CONDENAÇÃO

Em 2018, o jardineiro estadunidense Dewayne Johnson conseguiu na justiça uma indenização equivalente a US$ 289 milhões da fabricante Monsanto por ter câncer após anos exposto ao agrotóxico glifosato. Para o júri, a empresa tinha o dever de alertar sobre os riscos à saúde decorrentes da exposição prolongada ao veneno.

De acordo com o Inca (Instituto Nacional de Câncer), os trabalhadores rurais são os principais afetados pelo uso de agrotóxicos no que diz respeito a intoxicações agudas. Segundo a OMS, são registradas 200 mil mortes por ano no mundo por envenenamento agudo relacionado a agrotóxicos.

No Brasil, entre 2007 e 2015 houve mais de 84 mil notificações por intoxicação por algum tipo de agrotóxico. Dessas notificações, 9,7 mil se referem a crianças de até 4 anos de idade. Esse dado mostra que a aplicação desses produtos não segue regras mínimas de segurança e que eles são um grave problema de saúde pública. Além disso, o próprio Ministério da Saúde estima que, para cada notificação, existem 50 casos de intoxicação não notificados.

GLIFOSATO POR LITRO D’ÁGUA
0,1µg é a concentração máxima estipulada nas regras da União Europeia
500µg é a concentração permitida pela legislação brasileira

Outro problema que aparece de maneira crescente em pesquisas é a capacidade de os agrotóxicos se acumularem, inclusive no leite materno. Uma pesquisa realizada em Lucas do Rio Verde (MT), cidade com forte atividade agrícola, identificou resíduos de defensivos em todas as 62 mães participantes do estudo. O consumo de leite materno contaminado pode provocar danos à saúde dos bebês, pois são mais vulneráveis à exposição a agentes químicos presentes no ambiente. Contudo, o consumo de leite não pode ser desestimulado, pois deve ser o único alimento dos bebês até os 6 meses de idade. Por isso, esse tipo de situação deve ser investigada e denunciada. Já a contaminação por agrotóxico pelo consumo de alimentos, embora seja conhecida, é mais complexa em termos de avaliação e monitoramento. Os efeitos do acúmulo gradual desses produtos no organismo aparecem depois de anos de exposição, o que dificulta a identificação dessa correlação.

O que se sabe é que os alimentos e a água consumidos pelo brasileiro – sejam eles in natura ou ultraprocessados – estão contaminados por agrotóxicos, muitas vezes fora do limite legal. O PARA (Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos), criado em 2001 no âmbito da Anvisa, apresenta a cada dois anos o seu resultado. Nos anos de 2017 e 2018, 23% das amostras analisadas apresentavam índices de contaminação superiores aos permitidos. Foram encontradas, ainda, substâncias químicas não autorizadas ou em processo de banimento pela própria agência.

A série histórica de análises também mostra uma manutenção nas irregularidades encontradas, ao passo que praticamente dois terços das amostras vêm apresentando resíduos de agrotóxicos, mesmo que parte esteja dentro dos limites. Outro ponto relevante é que o monitoramento ainda está muito aquém em relação à intensidade do uso de agrotóxicos no Brasil. Apenas nas análises de 2017 os ingredientes ativos do agrotóxico glifosato foram testados. A variedade de alimentos analisada também é limitada, não havendo o monitoramento, por exemplo, de ultraprocessados que utilizam como matéria prima as commodities agrícolas.

A noção de limite legal para a contaminação dos alimentos por agrotóxicos é contestada por pesquisadores. O Caderno Agrotóxicos e Saúde, elaborado pela Fiocruz, traz argumentos que colocam em dúvida o processo de estabelecimento desses níveis. Ao analisarem os dados existentes sobre a intoxicação por determinado princípio ativo, os avaliadores assumem as condições “ideais” de exposição, de acordo com as instruções, que dificilmente são alcançadas nos contextos reais de aplicação e consumo. Outro ponto é a ausência de informações sobre os efeitos na saúde decorrentes de efeitos sinérgicos (resultantes do uso concomitante de dois ou mais ingredientes ativos). Tampouco são avaliados os efeitos da exposição crônica da população a doses contínuas e variadas de agrotóxicos ao longo dos anos.

Contaminação ambiental

Outro problema central dos agrotóxicos é a contaminação do meio ambiente pelos seus princípios ativos. Essas substâncias podem contaminar o solo, a água e até o ar. Um relatório produzido pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) aponta a contaminação de cursos d’água e aquíferos em todas as regiões do Brasil. Já há registro de contaminação por agrotóxicos nos maiores reservatórios de água do país, incluindo o aquífero Guarani.

Um reflexo disso é a contaminação da água encanada de 1 em cada 4 cidades do país, fato revelado por uma investigação da Repórter Brasil. Outra evidência foi encontrada novamente na cidade de Lucas do Rio Verde (MT). Uma pesquisa encontrou resíduos de agrotóxicos no ar, na água dos poços e na água das chuvas, além de animais com má formação causada por agrotóxicos.

O glifosato tem como uma de suas características a alta capacidade de contaminação do solo e dos lençóis freáticos. Por ser uma substância com provável potencial carcinogênico, nos Estados Unidos e em diversos países da Europa é obrigatório divulgar sua presença na água quando a concentração ultrapassa 0,1 micrograma por litro. No Brasil, no entanto, só é preciso divulgar essa concentração quando ela chega a 500 microgramas por litro, um valor 5 mil vezes maior.

Transgênicos e Biotecnologia

É impossível entender a produção de alimentos no Brasil sem considerar o impacto das lavouras transgênicas. Legalizados em 2003, os OGMs (Organismos Geneticamente Modificados) são criados com a inserção de uma parte do código genético de uma espécie em outra, com o objetivo de criar na espécie resultante as características desejadas. Os transgênicos trouxeram a promessa de maior produtividade no campo com menor uso de agrotóxicos.

AGROTÓXICOS EM ALTA
Crescimento da venda desses produtos foi quase cinco vezes o da área plantada

Os dados mostram, entretanto, que o que aconteceu foi o oposto: o consumo de agrotóxicos vem aumentando junto com a maior ocorrência de plantações geneticamente modificadas. Entre 2000 e 2018, a área plantada no Brasil foi de 51,8 milhões para 78,5 milhões de hectares, um crescimento de 51%. No mesmo período, a venda de agrotóxicos aumentou 238%: de 162 mil toneladas para 549 mil toneladas de princípio ativo vendidas no país.

Atualmente, quase metade da área destinada à agricultura no país tem lavouras transgênicas. De acordo com dados da Consultoria Céleres, mais de 95% da produção nacional de soja vem de sementes transgênicas, seguida pelo algodão e pelo milho, com produções transgênicas de 89% e 88% respectivamente.

Nesse assunto, o glifosato está novamente no centro do debate. Esse princípio ativo é um herbicida de amplo espectro, ou seja, é utilizado para impedir o crescimento de qualquer outro tipo de planta, exceto a lavoura em questão, que não é morta justamente por ser transgênica. Essa característica proporcionou o crescimento exponencial do glifosato no Brasil, uma vez que as lavouras transgênicas tornaram-se o padrão.

O uso das sementes transgênicas permite uma aplicação indiscriminada do glifosato e outros venenos, e isso traz a possibilidade de que lavouras próximas (e não transgênicas) sejam afetadas diretamente. Uma situação desse tipo envolvendo o herbicida dicamba fez a Bayer-Monsanto e a Basf serem condenadas, em fevereiro de 2020, a pagar uma indenização de US$ 265 milhões para um agricultor nos EUA. Ele afirmou que todos os cultivos de sua fazenda, de mais de 400 hectares, foram danificados de forma irreparável por herbicidas produzidos pelas duas empresas, que caíram em sua propriedade após serem aplicados em fazendas vizinhas. Entre os documentos apresentados no processo estavam relatórios internos das empresas, que mostram que elas estavam cientes dos riscos envolvidos no uso do agrotóxico dicamba nas lavouras.

Além do uso intensivo dos agrotóxicos, as sementes transgênicas geram outro tipo de preocupação. Não há estudos que comprovem ou descartem riscos à saúde humana. A OMS atesta que até agora não foram encontrados efeitos adversos de seu consumo, mas ressaltou que mais pesquisas são necessárias.

Outra questão é que as sementes transgênicas precisam ser compradas a cada plantio. Isso significa que o agricultor não pode guardar uma parte da produção para ser usada como sementes na safra seguinte. Isso gera uma dependência do produtor com as fabricantes de sementes, uma situação amplamente desvantajosa para pequenos agricultores.

A diminuição progressiva da variedade de alimentos produzidos é outra consequência da produção de transgênicos, já que as sementes crioulas deixam de ser cultivadas. Isso também acontece pois as sementes transgênicas, no caso do milho por exemplo, são tão agressivas que conseguem contaminar plantações próximas de milho crioulo (por meio do vento, da chuva, pássaros e insetos) diminuindo as variedades disponíveis.

SEMENTES CRIOULAS

são aquelas que vêm sendo multiplicadas por agricultores ao longo do tempo. Podem ou não ser originais do local de cultivo. Geralmente se adaptam ao ambiente por seleção natural, seleção artificial feita pelo agricultor ou pela combinação de ambas. As sementes crioulas não tiveram sua estrutura genética modificada pela indústria e não são patenteadas.

Transgênicos

A produção global de sementes transgênicas é controlada por cinco empresas: BASF, Bayer (que comprou a Monsanto em 2018), DuPont, Dow Chemical e Syngenta. São multinacionais com capacidade de compra de publicidade massiva e de capilaridade junto ao mercado de produtores rurais. Por meio de estratégias agressivas de mercado, lobby e marketing, além do financiamento de pesquisas, essas companhias disseminam as teses que embasam o uso de transgênicos e agrotóxicos. Além disso, em muitos casos as mesmas empresas vendem tanto as sementes quanto os agrotóxicos necessários para o seu cultivo, o que gera acusações de venda casada.

Informação

Desde a introdução e autorização do uso de transgênicos no Brasil em 2003, uma importante conquista foi a obrigação de os fabricantes informarem quando determinados produtos alimentícios são feitos integralmente ou em parte com OGMs. Isto é feito a partir da inserção de um “T” em triângulo amarelo no canto das embalagens. Essa é uma garantia que volta e meia é ameaçada por um projeto de lei que está no congresso brasileiro.

Agronegócio

O termo agronegócio não está ligado apenas à produção agrícola e pecuária, mas também à indústria que gira em torno de todas as atividades rurais. O termo foi criado para expressar as relações econômicas entre o setor agropecuário e aqueles situados na esfera industrial, comercial e de serviços. Embora agronegócio seja uma expressão abrangente, existem diferenças profundas dos modos e relações de produção e utilização de insumos em comparação com outros modelos.

No Brasil, as terras produtivas são divididas entre proprietários detentores de grandes áreas territoriais e agricultores familiares. A agricultura familiar, embora ainda utilize o “método convencional” de cultivo, que é à base de agrotóxicos, não deve ser contabilizada no conjunto econômico do agronegócio, pois possui outra dinâmica de produção. De acordo com a ONG Oxfam, com base os dados do Censo Agropecuário, 1% dos estabelecimentos rurais detém metade da área rural no Brasil, enquanto estabelecimentos com menos de 10 hectares ocupam menos de 2,3% da área rural total.

O agronegócio é responsável por uma fatia relevante da economia brasileira. Segundo o Ministério da Agricultura, Agropecuária e Abastecimento em 2018, a soma de bens e serviços gerados no agronegócio chegou a R$ 1,44 trilhão ou 21,1% do PIB brasileiro. Esse número mostra que, no Brasil, a produção agrícola é realizada no modelo latifundiário monocultor e destina-se majoritariamente para abastecer o setor pecuário e a indústria alimentícia nacional ou global. O aumento da produção brasileira nos últimos anos não reflete um cenário de autossuficiência na produção de alimentos: o Brasil ainda precisa importar alimentos como o trigo, por exemplo.

ÁREAS DE CULTIVO NO BRASIL
Produção de commodities como soja e cana-de-açúcar vem aumentando ao longo dos anos enquanto lavouras de alimentos básicos encolhem

Essa é uma questão central no entendimento da disputa de narrativas sobre a produção de alimentos. O que se consolidou como agronegócio diz respeito a um modelo com uso intensivo de agrotóxicos, sementes transgênicas, concentração de terras e diminuição e homogeneização de variedades e espécies alimentares. Existe ainda uma falsa premissa, ou meia verdade, entoada pelos grandes representantes do agronegócio, e comumente reproduzida, de que o objetivo do agronegócio é “acabar com a fome”. Como vimos ao longo destes capítulos, a questão da fome é muito mais complexa do que a discussão sobre produção e produtividade: inclui soberania e segurança alimentar e nutricional, implementação de políticas públicas, e também diz respeito aos determinantes de saúde e sustentabilidade dos sistemas alimentares.

O modelo hegemônico do agronegócio tem por objetivo a maximização de lucros e, justamente por isso, é atualmente um dos grandes responsáveis pelos impactos negativos na saúde das pessoas e do planeta. Por essa razão, existe um grande acúmulo de evidências e urgência na transição para outros modelos de produção e consumo de alimentos alternativos ao agronegócio que serão detalhados adiante.

A importância da agricultura para o PIB (Produto Interno Bruto) nacional é a justificativa central para uma política agressiva de subsídios fiscais para agrotóxicos. Um relatório produzido pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) mostra que, apenas em 2017, benefícios fiscais concedidos aos agrotóxicos se aproximam de 10 bilhões de reais. O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) é responsável por 63% dessa desoneração, seguido pelo IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), com 16,5% e Pis/Pasep (Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), com 15,6%.

Esses benefícios distorcem os custos dos diferentes métodos de produção, favorecendo a agroindústria em detrimento de alternativas menos danosas ao ambiente e aos trabalhadores. O modelo de incentivos fiscais aos agrotóxicos está em julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) desde 2016, na ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5553, da qual diversas organizações sociais são amicus curiae (amigos da corte), como o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Por outro lado, políticas públicas de incentivo à agricultura familiar têm perdido força e investimento. O PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) é um exemplo. Criado em 2003 pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Social, no âmbito do Programa de Combate à Fome, ele atua em duas pontas. De um lado, compra de agricultores familiares. De outro, distribui parte à população mais ameaçada pela insegurança alimentar e nutricional.

De acordo com um levantamento realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), desde sua criação, em 2003, os recursos destinados pelo governo federal ao programa cresceram todos os anos até 2012, quando atingiu R$ 1,2 bilhão, o maior valor da série. Em 2018, no entanto, foram aplicados apenas R$ 253 milhões.

Produções orgânicas e agroecológicas e seus desafios

O modelo de agronegócio convencional fundado na monocultura e no uso de agrotóxicos tem graves consequências para a saúde individual e coletiva. Para além disso, a produção de alimentos, tal como é hoje, tem forte impacto sobre o meio ambiente, gerando resíduos de alto risco de contaminação, como agrotóxicos, além de prejudicar o equilíbrio da biodiversidade. A monocultura extensiva e a flexibilização de legislações também encorajam o desmatamento, inviabiliza o reúso do solo e pode causar desertificação.

É comum a confusão entre agricultura orgânica e agroecologia, mas existem diferenças importantes entre elas:

AGRICULTURA ORGÂNICA

Plantação sem agrotóxicos. No Brasil, o alimento só pode ser categorizado como orgânico se possuir a certificação Produto Brasil Orgânico, emitido por certificadoras credenciadas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e acreditada pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial).

AGROECOLOGIA

é uma forma de agricultura sustentável que não utiliza agrotóxicos e incorpora as questões sociais, políticas, ambientais e éticas em sua produção. Existem diversas práticas agroecológicas diferentes, como permacultura, cultivo biodinâmico, sistema sintrópico, sistemas agroflorestais, sistemas compostos com criação de animais e com extrativismo

A agricultura orgânica, a agroecológica e as diferentes formas de produção que não utilizam insumos químicos são saídas possíveis para uma mudança real na produção mundial de alimentos. Mesmo com pouco incentivo, alternativas de produção vêm sendo desenvolvidas no Brasil. Em unidades pequenas ou grandes, diversas experiências de prática da agricultura e criação orgânicas têm alcançado viabilidade econômica, a despeito de discursos contrários e dos desafios técnicos de produzir de maneira diferente do modelo comercial. Nessas culturas, utilizam-se técnicas que aplicam apenas defensivos naturais, sem aditivos sintéticos e, em regra, são livres de sementes ou rações com componentes transgênicos. Alguns pontos são importantes para entender a produção orgânica:

Custo da produção e preço ao consumidor

É comum o discurso de que os alimentos orgânicos são mais caros, pois sua produção seria mais onerosa. Isso não é verdade. Os preços dos produtos orgânicos podem ser maiores ou menores dependendo de qual rede de distribuição acessam e de quem está vendendo. Grandes cadeias de supermercado tendem a lidar com os orgânicos como um produto de maior valor agregado, em razão de uma certa glamourização e da exploração do medo da contaminação por agrotóxicos. De fato, o custo da certificação dos produtos orgânicos ainda é um desafio a ser contornado, mas a melhor solução encontrada até o momento tem sido a realização de vendas em feiras locais, livres e comunitárias, próximas aos próprios locais de plantio, em que os produtores vendem diretamente a consumidores, sem intermediários. O Idec mantém um mapa colaborativo com feiras orgânicas em todo o país, o que ajuda a conectar produtores e consumidores de orgânicos.

Estética

Uma característica que muitos consumidores ainda consideram importante na priorização da escolha dos alimentos é a aparência homogeneizada e brilhante de frutas, verduras e legumes. Contudo, é um grande mito dizer que esses alimentos são melhores e que necessariamente os alimentos orgânicos são menores ou “mais feios”. Nesse caso, educação ambiental e a circulação de conteúdos informativos podem desfazer essas noções que servem para enganar os consumidores.

Lucratividade e diversificação de espécies de cultivo

Como a maioria da produção orgânica é realizada em pequenas áreas, seu volume de produção é baixo e sua sustentabilidade financeira ainda é um desafio. Historicamente, pequenos produtores rurais diversificam suas culturas, dividindo o terreno em plantio de hortaliças, frutas e grãos, bem como realizam a criação de pequenos rebanhos para produção de leite e/ou queijos e criam aves para a coleta de ovos ou mesmo abate. Para a agricultura orgânica, não só essa prática tem se mostrado uma solução econômica como também é mais viável para os cultivos; por contraste com as monoculturas, está cada vez mais evidente que o controle de pragas vegetais, fungos e insetos que causam males à produção de alimentos tendem a diminuir conforme seja maior a variação de espécies em uma área. O próprio equilíbrio ecológico é a defesa natural para o desenvolvimento saudável das culturas.

Dentro desse contexto, pequenos produtores conseguem realizar o resgate de conhecimentos tradicionais sobre o uso do solo, combinado com tecnologias que respeitam os ciclos da natureza e o bioma original de onde se localiza um determinado terreno. Essas técnicas são mais efetivas em longo prazo do que um modelo que interfere na composição do solo, contamina a água e altera toda a dinâmica ambiental a favor da produção de curto prazo e grande volume. Em linhas gerais, o que se contrapõe entre esses grandes modelos é uma escolha entre o agronegócio e a agroecologia.

As principais questões relacionadas ao preço, lucratividade e diversificação das plantações orgânicas e agroecológicas não estão relacionadas à viabilidade desses modelos, mas sim à falta de incentivos. Os alimentos orgânicos e agroecológicos, ao contrário daqueles que levam agrotóxicos, não recebem incentivos fiscais ou outras formas de estímulo. Faltam políticas mais robustas que apoiem os produtores que queiram parar de usar agrotóxicos, como assistência técnica rural e linhas de crédito específicas favorecendo a transição agroecológica, por exemplo. Essas iniciativas poderiam baratear esses alimentos e aumentar sua disponibilidade para toda a população.

Matizes da agroecologia

Agências internacionais têm recomendado a implementação de sistemas agroflorestais e de todos os tipos de agroecologia no Brasil e no mundo, em substituição ao modelo convencional do agronegócio. A definição dessa prática é ampla. A ABA (Associação Brasileira de Agroecologia) define a agroecologia como ciência, movimento político e prática social, portadora de um enfoque científico, teórico, prático e metodológico que articula diferentes áreas do conhecimento de forma transdisciplinar e sistêmica, orientada a desenvolver sistemas agroalimentares sustentáveis em todas as suas dimensões.

Já a Pnapo (Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica) define a produção de base agroecológica como aquela que otimiza a integração entre capacidade produtiva, uso e conservação da biodiversidade e dos demais recursos naturais, equilíbrio ecológico, eficiência econômica e justiça social. Apesar da existência do plano, ela não é prioridade na política de produção de alimentos no Brasil.

A aplicação da agroecologia é um objetivo fundamental para o cumprimento das metas acordadas pelos países no Acordo de Paris, na COP-21 (21ª Conferência do Clima), sobre recuperação de áreas degradadas. O compromisso assumido pelo Brasil, como um dos maiores países do mundo e cujo território abriga a maior parte da floresta Amazônica, seria fundamental para o alcance da preservação e da recuperação de florestas, de acordo com as projeções do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas) para conter o aquecimento global. A contribuição prometida pelo país, ratificada em 2016, no que diz respeito a florestas é de não desmatar novas áreas, assim como restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até 2030.

A agroecologia já se tornou um universo próprio, contendo diversas correntes de aprendizado, de ativismo – ambiental, econômico, educacional, nutricional – e de pensamento. É um sistema de conhecimento vivo e em construção. Algumas das principais terminologias da agroecologia são o cultivo biodinâmico, a permacultura e os sistemas agroflorestais. Priorizar essas formas de produção de alimentos é um objetivo fundamental para melhorar o sistema alimentar global.

Compreender as correlações que a Sindemia Global estabelece significa reconhecer que os sistemas alimentares vigentes têm sido incapazes de garantir saúde e preservar os recursos naturais. É sob esta perspectiva que pretendemos enquadrar os olhares e entendimentos em relação à produção e ao consumo de alimentos.

É urgente e necessário mudarmos para um modelo de produção e consumo de alimentos que seja mais saudável e sustentável. Existem alternativas concretas e com exemplos exitosos, mas que precisam ser incentivados a partir da redução progressiva e responsável do uso de agrotóxicos atrelados à transição para modelos de produção de base agroecológica.

SINDEMIA GLOBAL

As epidemias globais de obesidade e de desnutrição e o fenômeno das mudanças climáticas vêm sendo chamados por pesquisadores de sindemia global. Esses três fenômenos têm em comum a mesma raiz: o modelo atual de produção de alimentos, baseado na monocultura extensiva. A devastação de biomas causadas pela expansão da agricultura e da pecuária em todo o mundo é uma das principais causas da emergência climática. O produto final dessa indústria – produtos ultraprocessados e carne vermelha em excesso – são responsáveis, de um lado, pelo avanço da obesidade no mundo e, de outro, pela desnutrição, uma vez que a segurança alimentar é afetada pelo clima, pelo acesso à terra, pelo tipo de alimentos e pelo custo da alimentação. Para mais detalhes, ver capítulo 3.

NA PRÁTICA

A cobertura relacionada à produção de alimentos no campo costuma partir da premissa de que o modelo de monocultura para exportação não pode ser superado. Isso é um erro. É preciso buscar visões que contraponham essa crença.

Recomendações para embasar a cobertura:

  • Busque e mantenha fontes que falem/discutam sobre outras formas de produção.
  • A combinação de latifúndio monocultor e agrotóxicos não forma o único modelo de produção de alimentos possível, mas para haver uma mudança, é preciso investimento maciço em agricultura familiar e sistemas agroecológicos.
  • A produção de alimentos relaciona-se com a questão climática e a saúde da população. Essa conexão deve ser feita sempre que necessário.
  • Produtos transgênicos têm aparência similar aos não transgênicos. Por isso, não devem ser retratados nas imagens das matérias como frutas estranhas (uma mistura de laranja e melancia, por exemplo). Isso faz com que haja uma percepção de que é possível distinguir os alimentos transgênicos na hora da compra.

Ferramentas úteis

A Campanha Chega de Agrotóxicos é uma iniciativa de 15 organizações sociedade civil contra o Projeto de Lei 6670/2016, que institui a PNaRA (Política Nacional de Redução de Agrotóxicos).

O Mapa de feiras orgânicas do Idec tem o objetivo de informar aos consumidores onde é possível comprar alimentos orgânicos de maneira mais barata.

O portal Por trás do alimento é um site jornalístico criado pela Repórter Brasil em associação com a Agência Pública para cobertura do tema da produção de alimentos.

Os repositórios de conhecimento sobre Agroecologia e sobre Alimentação Sustentável e Agricultura, da Organização das Nações Unidas, trazem informações embasadas sobre esses temas.

O Painel de Especialistas sobre Sistemas Alimentares da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, sigla do inglês Food and Agriculture Organization) traz documentos aprofundados sobre agricultura sustentável.

O e-book do Idec 10 mitos e verdades sobre agrotóxicos apresenta uma série de discussões com base em pesquisas científicas para desmistificar afirmações sobre o tema.

Análise de casos

Nesta seção, estudamos matérias sobre o assunto, com exemplos de como as abordagens podem ser ampliadas

Agrotóxico faz mal? É possível não usá-lo? Veja o que é verdade e mentira no debate

Essa longa matéria publicada na Folha de São Paulo em 2019 busca responder a questões comuns quando o assunto é o uso de agrotóxicos.

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PONTOS DE ATENÇÃO

  • Apesar de trazer diversas ponderações importantes, o texto afirma categoricamente que é impossível uma produção de alimentos em escala nacional ou global sem o uso de agrotóxicos. Existem exemplos já na atualidade da viabilidade da produção orgânica em grande escala. O Brasil é hoje o maior produtor de arroz agroecológico da América Latina.
  • O modelo de produção atual não pode prescindir de agrotóxicos por conta de suas especificidades: uso de sementes transgênicas, monocultura, exploração máxima do solo, produção voltada para alimentação de animais e produção de alimentos ultraprocessados. Entretanto, outros modelos são possíveis.

Agricultura estima impacto de R$ 12 bi a produtor com fim de isenção a defensivos

O texto, publicado em fevereiro de 2020 no site da Isto É Dinheiro, repercute uma nota do Ministério da Agricultura sobre o impacto econômico do possível fim das isenções fiscais aos agrotóxicos no país.

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PONTOS DE ATENÇÃO

  • A matéria foca apenas na questão financeira envolvendo a produção agrícola, sem pesar as externalidades que estão envolvidas na questão, como degradação ambiental e ameaças à saúde de agricultores e consumidores.
  • Não há contraponto à visão do agronegócio.

Alimento orgânico não é mais nutritivo que o convencional, diz pesquisa

Essa matéria publicada na Revista Veja, em 2012, reporta um estudo da Universidade de Stanford, que concluiu que não há diferenças nutricionais entre alimentos convencionais e orgânicos.

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PONTOS DE ATENÇÃO

  • A diferença entre os alimentos convencionais e orgânicos não está em uma suposta superioridade nutricional, e sim na ausência de agrotóxicos.
  • O título e o texto levam o leitor à conclusão de que o consumidor está sendo enganado em relação aos orgânicos. Esse engano foi criado pelo texto, não pelas características desses alimentos.