Gato por lebre
Imagine que você está no supermercado ou na farmácia, na seção que vende leite em pó. Ao avaliar as marcas disponíveis, vê que, em algumas latas, o rótulo destaca que o produto é fonte de cálcio, ferro e zinco, além de conter um “mix” de vitaminas. Parece uma boa opção para crianças, certo? No entanto, se comprar esse produto pensando que é leite, você estará levando gato por lebre. Embora a embalagem seja muito semelhante à do leite em pó, esse produto é, na verdade, um composto lácteo – mistura de leite (51% no mínimo, de acordo com a legislação) e de ingredientes diversos, como soro de leite, óleos vegetais, açúcar e substâncias químicas para dar sabor, aroma, aumentar a durabilidade etc., chamadas de aditivos alimentares.
Mais grave é o risco de confusão com fórmulas infantis e fórmulas de seguimento, alimentos artificiais substitutos do leite materno, indicados para recém-nascidos de até 6 meses e para bebês entre 6 meses e 1 ano de idade, respectivamente. “Embora não exista produto industrializado que se equipare aos benefícios e à proteção à saúde da mãe e do bebê proporcionados pelo aleitamento materno, as fórmulas infantis e de seguimento são desenvolvidas para suprir as necessidades nutricionais do bebê quando a amamentação não é possível”, explica Rosana de Divitiis, ex-presidente e atual conselheira da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan, na sigla em inglês) no Brasil.
O composto lácteo, ao contrário, não deve ser oferecido para crianças com menos de 1 ano. Porém, a Ibfan detectou problemas na oferta desses produtos, que podem levar o con- sumidor a erro em relação à sua composição e para quem ele é indicado.
Em 2017, a organização fez novamente seu monitoramento anual do cumprimento da legislação que visa a proteger o direito à amamentação no Brasil, a chamada NBCal, composta por resoluções, portarias e pela Lei Federal no 11.265/2006, regulamentada pelo Decreto no 8.552/2015. A norma reúne regras sobre rotulagem, comercialização e publicidade de uma série de produtos que podem atrapalhar o aleitamento materno, desde alimentos (leites artificiais, outros produtos lácteos e papinhas, por exemplo) a acessórios como chupetas, mamadeiras e bicos.
Das 266 infrações à legislação identificadas pela Ibfan, 46 eram relativas a compostos lácteos – 18% do total. Basicamente, o problema diz respeito às peças promocionais, que não apresentam a frase de advertência exigida pelo Ministério da Saúde para alertar que o produto não substitui o aleitamento materno e que não é indicado para determinada faixa etária. A ausência da frase de advertência ocorre nos pontos de venda (como supermercados e farmácias), em folhetos promocionais, na internet e em sites e redes sociais, inclusive dos próprios fabricantes. “A indústria utiliza as mídias sociais, onde fala diretamente com o consumidor – a maioria mães aflitas por soluções – para alegar propriedades nutritivas e funcionais para além daquilo que é seguro e aceitável”, critica Divitiis. “No caso do composto lácteo isso é bem preocupante. Na página oficial de uma grande indústria no Facebook há relatos de mães que oferecem o produto para bebês desde o nascimento, por exemplo”, completa.
FÓRMULAS, LEITE EM PÓ E COMPOSTO LÁCTEO
Embora a aparência do pó e as embalagens sejam parecidas, os produtos têm composições muito distintas, assim como são as faixas etárias indicadas para consumo. Entenda a diferença.- Fórmula infantil: alimento artificial indicado para recém-nascidos e bebês de até 6 meses quando a amamentação não é possível ou suficiente.
- Fórmula de seguimento: alimento artificial indicado para bebês entre 6 e 12 meses quando a amamentação não é possível ou suficiente.
- Leite em pó: produto obtido por desidratação do leite de vaca integral. Deve conter somente proteínas, açúcares, gorduras e outras substâncias minerais próprias do leite. Não é indicado para crianças menores de 1 ano e não substitui o leite materno.
- Composto lácteo: produto resultante da mistura de leite (no mínimo 51%) e outros ingredientes lácteos ou não lácteos. Costuma conter açúcar e aditivos alimentares. Não é indicado para crianças menores de 1 ano e não substitui o leite materno.
BRECHAS NA LEI
A ausência de frases de advertência é a ponta do iceberg de um problema maior: a falta de clareza na NBCal sobre quais regras os compostos lácteos deveriam seguir. Indício disso é que, após notificação da Ibfan, três grandes fabricantes responderam discordando de que havia irregularidade na oferta do produto, porém utilizando argumentos diferentes.
A Danone, dona da marca Milnutri, alegou que a exigência de frase de advertência não se aplica ao composto lácteo, que deve cumprir apenas as regras de rotulagem previstas no Decreto no 8.552/2015. Já a Nestlé disse que os produtos da linha Ninho (entre eles o composto lácteo Ninho Fases) não estariam no escopo do decreto porque são dirigidos a crianças acima de 3 anos, enquanto a lei cita produtos para lactentes e crianças de primeira infância. A Mead Johnson, fabricante do Enfagrow, por sua vez, alega que o produto “é um alimento como qualquer outro”, que não é destinado a uma categoria específica de consumidores e, portanto, não estaria sujeito às restrições impostas pela legislação protetora da amamentação.
A conselheira da Ibfan destaca que, de fato, o composto lácteo não está claramente descrito como um produto de abrangência da lei – ele é enquadrado por exclusão, já que é um produto à base de leite, mas que não é leite. “A falta de clareza na lei e no decreto sobre o composto lácteo tem contribuído para que os fabricantes o promovam da forma como quiserem”, observa Divitiis. A nutricionista e pesquisadora do Idec Laís Amaral concorda. “Essas brechas na lei levam a diferentes possibilidades de interpretação pelos fabricantes, o que resulta, muitas vezes, em rótulos e publicidades confusos e enganosos para o consumidor, que acaba comprando o produto achando que é leite”, diz. “A frase de advertência, da maneira como é exigida pelo decreto, não é suficiente para esclarecer a natureza do produto para o consumidor”, completa.
Para Divitiis, a única solução para dirimir conflitos de interpretação é o composto lácteo ser inserido na norma como uma categoria distinta, com regras específicas. Já Amaral ressalta que, para evitar engano pelo consumidor, a norma deveria exigir sua descrição de forma clara e visível na parte da frente da embalagem. “Além disso, o ideal seria que as empresas diferenciassem mais as embalagens de cada tipo de produto”, defende a nutricionista do Idec.
PROBLEMA MUNDIAL
A confusão entre composto lácteo e leite não é de hoje. Em 2012, o Procon São Paulo abriu uma investigação sobre a atuação da Nestlé na promoção do Ninho Fases após um consumidor denunciar que a embalagem do composto era muito parecida com a do leite da mesma marca, induzindo a erro.
De acordo com o Procon, o processo administrativo resultou em multa de R$ 4,6 milhões à empresa por publicidade enganosa do Ninho Fases e por outras infrações. “A empresa recorreu – nas duas instâncias às quais tem direito –, mas a multa foi mantida e está em prazo de pagamento”, informa a assessoria de imprensa do órgão.
A conduta da empresa também se repete em outros países. Em dezembro passado, a Nestlé e a Gloria, outra marca multinacional de alimentos, foram multadas no Peru por vender compostos lácteos como se fossem leite. As empresas foram punidas com multa equivalente a US$ 4 milhões.
Além disso, em outros países, que têm regras mais frouxas que as do Brasil, o problema envolve também a oferta de fórmulas lácteas dirigidas a recém-nascidos e bebês. Um relatório divulgado em fevereiro pela organização britânica Changing Markets Foundation faz duras críticas às estratégias de marketing da Nestlé, que é líder mundial nesse segmento. A entidade avaliou a oferta de 70 produtos da marca voltados para bebês menores de 1 ano em 40 países. O documento aponta, por exemplo, que em alguns casos, a Nestlé anuncia que suas fórmulas são “inspiradas” ou “parecidas” com o leite materno, associação que contraria as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse tipo de mensagem é proibido no Brasil.
NUTRITIVO OU DESNECESSÁRIO?
As propagandas dos compostos lácteos os promovem como um alimento nutritivo, que ajudaria no desenvolvimento e aprendizado das crianças. No entanto, de acordo com Silvia Médici Saldiva, nutricionista e pesquisadora científica do Instituto de Saúde de São Paulo, o produto é desnecessário. “Se a criança tiver uma alimentação saudável, ela não precisa de nada disso. Não é preciso comprar produto industrializado, um suposto ‘superalimento’. Quanto mais natural [a alimentação], melhor será para a criança”, ela afirma.
A nutricionista do Idec concorda e acrescenta que o composto lácteo é um produto ultraprocessado, uma formulação criada pela indústria com ingredientes que não são adequados para crianças, como o açúcar, que não é recomendado até os 2 anos de idade. “O ideal é priorizar alimentos de verdade, introduzidos corretamente e de forma variada”, destaca Amaral.
Segundo o levantamento da Ibfan, muitos compostos lácteos contêm maltodextrina, um tipo de açúcar com alto índice glicêmico, ou seja, que fornece quantidade elevada de calorias. As instruções de uso do produto sugerem que ele seja oferecido de duas a três vezes por dia, mas a entidade alerta que o alto teor calórico pode contribuir para a obesidade infantil. Caso seja erroneamente oferecido para crianças menores de 1 ano, a bomba calórica é ainda maior. Considerando as informações nutricionais de um composto lácteo de uma marca famosa, em apenas 100 ml do produto diluído, um bebê de 7 a 12 meses ingere mais da metade do consumo energético recomendado para um dia todo.
Ao comparar as informações nutricionais desse composto lácteo com as do leite em pó da mesma marca, a Ibfan verificou que o primeiro tem quase duas vezes mais açúcar, com 8,5 gramas por 100 ml, contra 4,9 g do leite. “O consumo excessivo de açúcar é sabidamente prejudicial à saúde, especialmente de crianças. Além da relação com sobrepeso, diabetes e cáries, o consumo exagerado durante a infância educa o paladar ao sabor doce, o que pode acarretar o desenvolvimento de hábitos alimentares não saudáveis”, alerta a nutricionista do Idec.
"O CONSUMO EXAGERADO DE AÇÚCAR DURANTE A INFÂNCIA EDUCA O PALADAR AO SABOR DOCE E PODE ACARRETAR HÁBITOS ALIMENTARES NÃO SAUDÁVEIS"
Laís Amaral, nutricionista e pesquisadora do Idec