POR DIREITOS IGUAIS
Conscientização, fiscalização, denúncia e punição exemplar são armas para lutar contra o racismo nas relações de consumo, defende o Idec.
"Eles já sabem o que é o racismo porque viveram isso na pele e aprenderam da pior maneira possível". A declaração é de um pai que passou, junto com os dois filhos, de 8 e 12 anos, por uma situação que considera típica de racismo nas relações de consumo. Há alguns meses, Paulo Passos, que é gestor de mobilização, fazia compras com sua família em uma loja de importados num shopping de São Paulo (SP). Ao passarem no caixa, receberam um tratamento diferente daquele dado aos outros clientes. Segundo Passos, a atendente fez uma fiscalização exagerada nas notas que eles entregaram, de R$ 20 e R$ 50, chamando a atenção de toda a fila. "Parecia que éramos ladrões, falsários, estelionatários ou qualquer coisa do tipo", conta ele, acrescentando: "Ela só fez isso na nossa vez. As pessoas que pagaram antes da gente, que eram brancas, não sofreram esse constrangimento".
José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, também já passou por muitas situações desconfortáveis. Certa vez, num restaurante, outros clientes pediram que ele buscasse seus carros deduzindo que ele era o manobrista. "Ou quando um lojista me oferece produtos mais baratos porque acredita que nenhuma pessoa negra tem condições de adquirir mercadorias de valor mais alto", exemplifica.
Já com o administrador Fernando Novais, a discriminação aconteceu dentro de um supermercado de Curitiba (PR). "Fiquei incomodado com um segurança que me acompanhava bem de perto e minha reação foi correr e dar de frente com ele no próximo corredor", ele relata. Novais deixou o funcionário sem reação. "Ele não estava esperando o confronto. Quando perguntei se tinha alguma coisa para resolvermos, ele disse que não estava me seguindo, apenas passando pelos corredores, pediu desculpas e saiu", relembra.
Casos como esses não são exceção. De acordo com um estudo feito pelo departamento Sintonia com a Sociedade, da área de Pesquisa e Conhecimento da Globo, divulgado em outubro, 70% dos negros ouvidos disseram que já foram seguidos ou viram alguém sendo seguido por funcionários ou seguranças. Essa mesma pesquisa, que entrevistou 1.667 pessoas acima de 18 anos, das classes A, B e C, constatou que a discriminação no momento das compras impacta os hábitos de consumo das pessoas negras no Brasil: 81% dos entrevistados afirmaram que não compram mais, reduzem o consumo ou deixam de ir a lojas físicas após sofrerem discriminação racial. Os filhos de Passos ilustram bem esse dado. "Pode passar o tempo que for, os meus filhos não querem mais entrar naquela loja, porque ficaram traumatizados", diz o pai.
Em situações como as relatadas acima, perde o consumidor, perde a sociedade e perdem as empresas. Ainda mais em um país onde a maioria da população é negra. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2022, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56% da população se autodeclarou preta e parda. Ou seja, temos uma multidão que enfrenta problemas na hora de consumir.
O QUE É RACISMO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO?
Para Eneida Souza, supervisora da área de Relacionamento com o Associado do Idec, o racismo nas relações de consumo sempre permeou a história e pode ser identificado quando há negativa de atendimento, a pessoa é ignorada, intimidada ou sofre violência física, ou quando há abordagens diferenciadas para pessoas brancas e pretas. "O correto seria que todo mundo recebesse o mesmo tratamento, independentemente de seus traços raciais e étnicos", declara Souza. Para esclarecer como o racismo se manifesta nas relações de consumo e como podemos combatê-lo, o Procon-SP elaborou a cartilha 10 princípios para o enfrentamento do racismo nas relações de consumo (veja quadro abaixo).
JUNTOS CONTRA O RACISMO
Diante do crescente número de casos de racismo reportados por consumidores, órgãos de defesa do consumidor começaram a agir.
Em novembro de 2021, o Procon-SP, em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares, criou o Procon Racial, um canal que recebe denúncias de consumidores que acreditam ter sofrido discriminação racial. A universidade passou a ter uma base de atendimento do Procon-SP em seu campus, para orientar esses consumidores presencialmente. "Trata-se de um importante instrumento de combate ao racismo, que pode e deve ser acessado sempre que houver necessidade", declara Vicente. Por meio de nota, o órgão explicou que as denúncias que recebem são analisadas e, havendo elementos que os fiscais considerem passíveis de serem comprovados, a empresa pode ser fiscalizada e multada. E os casos mais graves podem ser encaminhados ao Ministério Público.
ENTENDENDO O RACISMO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
1) Racismo nas relações de consumo constitui crime inafiançável e imprescritível;
2) Todas as pessoas devem ser tratadas com respeito e consideração;
3) O racismo é uma violência contra a dignidade da pessoa humana;
4) Nenhuma pessoa pode ser desrespeitada ou ofendida pela cor de sua pele;
5) Nas relações de consumo, nenhuma pessoa pode sofrer preconceito em razão da cor de sua pele, raça, etnia e quaisquer outras formas de discriminação;
6) São atos discriminatórios proibir ou constranger o ingresso ou a permanência em estabelecimento aberto ao público, em razão da cor da sua pele, raça, etnia e quaisquer outras formas de discriminação;
7) O atendimento deve ocorrer sem qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória;
8) Não se pode abordar, revistar ou imobilizar nenhuma pessoa em razão da cor da sua pele, raça, etnia ou qualquer outra forma de discriminação;
9) Nenhuma pessoa pode desrespeitar, ofender ou agredir verbal ou fisicamente funcionário ou prestador de serviço por conta da cor da sua pele, raça, etnia ou qualquer outra forma de discriminação;
10) Nas relações de consumo, todas as pessoas devem agir com respeito e fraternidade, sem compactuar com atos discriminatórios, conscientes de que todas são dotadas de igualdade e dignidade.
O Procon de Alagoas, em cooperação com a prefeitura de Maceió, também lançou, este ano, um Procon Racial. E Brasil afora outros órgãos se mobilizam. Em agosto, por exemplo, o Procon-MG formalizou um protocolo de intenções com estratégias para enfrentar o racismo estrutural nas relações de consumo.
Em maio, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) lançou 10 diretrizes para o combate ao racismo nas relações de consumo. À época, o Idec parabenizou o órgão pela iniciativa e sugeriu a criação de um canal de comunicação para acolher pessoas consumidoras negras vítimas de racismo e práticas discriminatórias. No início de novembro, a Senacon comunicou que a ferramenta deve ser divulgada ainda este ano.
O Idec também está atento a essa questão. Desde 2021, o Grupo de Trabalho de Diversidade vinha atuando com o tema discriminação em vários aspectos, principalmente a comunicação inclusiva voltada para pessoas com alguma deficiência. Porém, este ano, surgiu a ideia de criar um espaço para tratar de racismo. Souza, da área de relacionamento com o associado, é quem lidera o processo. Ela explica que o trabalho ainda é embrionário, mas os envolvidos já estudam formas de dar efetividade às ações. "Entre tantas frentes a atuar, temos visto com frequência o tratamento diferenciado dado às pessoas pretas nas relações de consumo. Relatos de humilhação e até de morte têm sido comuns. Não podemos fingir que nada acontece", afirma. Ela adianta que mudanças internas já estão em andamento para criar uma estrutura forte de combate ao racismo nas relações de consumo.
O CAMINHO PARA UM MUNDO IGUALITÁRIO
O advogado, professor e pesquisador Jonas Sales defende que "para problemas estruturais, medidas igualmente estruturais". Isso significa que é preciso atuação em várias frentes para vencer um racismo praticado durante séculos. De acordo com o pesquisador, em primeiro lugar é preciso uma rigorosa fiscalização, para que empresas com condutas racistas não sejam premiadas, destacadas ou contempladas, como a rede de supermercados Carrefour, que após a morte do consumidor negro João Alberto Silveira de Freitas em uma de suas lojas, recebeu um prêmio por conta da segurança em seus estabelecimentos. Depois, é necessário letramento racial, que na prática é a conscientização para que todos possam reconhecer, criticar e combater atitudes racistas em seu cotidiano; além do suporte de uma legislação voltada para o tema. Souza, do Idec, concorda: "Acreditamos que a mudança virá a partir do conhecimento, do letramento, do envolvimento e da participação da sociedade civil".
ESCRIVIVÊNCIA
Jonas Sales perdeu as contas de quantas vezes foi discriminado como consumidor. Algumas, porém, ficaram marcadas: quando era adolescente, saiu a pé de um supermercado e foi seguido por cerca de 2 km por um segurança da loja. "Ele me parou e pediu que eu apresentasse a nota fiscal. Depois, pegou a sacola, olhou tudo e me devolveu, sem dizer qualquer palavra", ele conta.
Também na juventude, foi conhecer um restaurante caro num shopping de Brasília (DF). Mas em vez de experimentar a comida, provou a sensação de total indiferença. "Foram cerca de 30 minutos falando com as paredes, pois nem os garçons nem o gerente olharam para mim, embora eu estivesse pedindo e gesticulando para ser notado", relata.
Calejado após tantas experiências ruins, o advogado resolveu se debruçar sobre o tema e, hoje, faz o que a escritora Conceição Evaristo chama de "escrivivência". Ou seja, ele pesquisa e escreve a partir da sua própria experiência. Integrante da Comissão de Igualdade Racial da OAB/DF, vice-presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/DF e membro diretor da Comissão de Diversidade e Novas Vulnerabilidades do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcom), Sales tem um estudo emblemático, intitulado Compensa ser uma empresa racista no Brasil?. No trabalho, ele analisou as últimas 20 decisões de processos judiciais que condenaram os réus ao pagamento de danos morais por racismo em relações de consumo. E concluiu que, sim, vale a pena ser racista no Brasil, pois as indenizações ficaram entre R$ 5 e R$ 35 mil. "Esses valores são ínfimos se comparados ao que lucra a maioria dessas empresas anualmente", ele afirma, indignado. Com esse cenário, muitas empresas têm assumido o risco de serem punidas. "Isso se dá pela sensação de impunidade e, como visto em meu estudo, pela tímida resposta do Judiciário a condutas racistas nas relações de consumo", ele conclui.
Para Vicente, é fundamental estabelecer o sentimento antirracista nos estabelecimentos comerciais de todos os setores. "É necessário revisar e adequar protocolos, além de treinar funcionários, começando pelas pessoas que ocupam os cargos de diretoria e liderança. Também é preciso mudar os espaços físicos. Por exemplo, o quartinho da revista não pode mais existir", ele opina.
Sales tem uma espécie de mantra: "Denuncie! Denuncie por você, pelo passado, pelo presente e pelo futuro!" Para isso, há alguns caminhos, como procurar os Procons estaduais, o Procon Racial ou o Disque Direitos Humanos, discando 100. A vítima de racismo ou injúria racial também pode registrar um boletim de ocorrência numa delegacia ou pela internet. E vale ressaltar que está na Lei nº 7.716/1989: racismo, seja por qual meio for, é crime.
No papel de consumidor, profissional, pai e homem negro, Passos define o que é básico, mas ainda precisa evoluir muito: "As pessoas pretas não querem mais direitos do que as pessoas brancas. Elas querem apenas ser tratadas da mesma forma".
Souza reconhece que a transformação para atingirmos a igualdade exige mudanças estruturais em nossa sociedade, como abordado na introdução do livro Branquitude – diálogos sobre o racismo e antirracismo. "Compreender o lugar das pessoas brancas na produção e reprodução do racismo é condição fundamental para o seu enfrentamento", ela finaliza.
Saiba mais
- Procon Racial: https://bit.ly/3tHoiGt
- Diretrizes para combater o racismo nas relações de consumo: https://bit.ly/42ZOWGs