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Artigo pubicado no site VejaSaúde, em 23/10/2020
O debate sobre a sustentabilidade financeira do SUS foi reaquecido recentemente após a aprovação, na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), do medicamento mais caro do mundo. É o Zolgensma, voltado para crianças com atrofia medular espinhal. Preço estimado: R$ 12 milhões por paciente. Esse registro milionário gera preocupação não apenas por ser um dos primeiros dessa magnitude, mas porque o Supremo Tribunal Federal está definindo em que condições os brasileiros podem ter acesso a tratamentos não incorporados na rede pública. Geralmente, a discussão deságua em um dilema: é preciso escolher o que pagar e o que não pagar em um sistema universal, como é o SUS.
Considerar aspectos como custo-efetividade das tecnologias de saúde e prioridades dos gastos é sem dúvida essencial para qualquer debate que se proponha democrático na área da saúde. É compreensível até certo ponto gastar mais dinheiro com um produto mais eficaz. Mas essas conversas acabam por deixar de lado um ponto essencial: faz sentido um medicamento custar tão caro? Ou ainda melhor: faz sentido ter um preço tão alto?
Aqui cabe diferenciar custo e preço. O custo é o valor gasto pelo produtor para fabricar um item ou pelo prestador para executar um serviço. O preço é dinheiro gasto pelo consumidor (intermediário ou final) para adquirir o produto ou o serviço.
O preço de um medicamento engloba, como qualquer mercadoria, custos de produção, logística, gastos com tributos e etc. No entanto, raramente isso explica todo o problema. Remédios cujo preço atinge a casa dos milhares ou mesmo dos milhões têm ainda uma especificidade. De acordo com as empresas, o preço incorpora também custos de inovação — ou seja, custos dispendidos em pesquisa e desenvolvimento para a criação de novos tratamentos.
A comprovação de que tais preços são justificados, no entanto, é difícil. Há pouca transparência no setor e o processo de inovação geralmente envolve recursos públicos, tanto financeiros como de infraestrutura de pesquisa. Basta pensar nos laboratórios universitários, que frequentemente custeiam as fases iniciais da pesquisa, onde há maior risco envolvido.
Sobram casos para ilustrar esse percurso: o sofosbuvir, tratamento para hepatite C, teve seu preço contestado em várias partes do mundo todo e foi objeto inclusive de investigação pelo Senado dos Estados Unidos. A startup que desenvolveu o medicamento – e foi posteriormente adquirida pela atual fornecedora, a Gilead – contou com forte incentivo público. Na fase final de pesquisas, quando o remédio estava perto de ser registrado, o comprador arbitrou um preço elevadíssimo para sua aquisição.
De acordo com a organização Knowledge Ecology International, o próprio Zolgensma mencionado anteriormente teve uma fase de teste clínico com 21 pacientes infantis em um hospital americano e com fundos públicos para pesquisa.
No campo das vacinas, tão caras em tempos de pandemia, a situação é semelhante. O imunizante contra o ebola foi desenvolvido quase que integralmente com recursos públicos em um laboratório canadense. A vacina de Oxford, como ficou conhecida uma das principais candidatas contra a Covid-19, não só foi desenvolvida em uma universidade pública britânica como faz parte de um conjunto de esforços públicos de financiamento e execução — que iniciou com 65,5 milhões de libras do governo britânico e que em breve devem incluir o Brasil e seus laboratórios públicos, com a assinatura do acordo entre o governo federal e a empresa responsável.
Assim, além de nos perguntarmos quanto estamos dispostos a pagar, enquanto sociedade, por esses produtos, é preciso lançar a dúvida de por que existem medicamentos tão caros e o que justifica realmente esses preços. Aliada à análise de custo-efetividade, é preciso outro conjunto de medidas que force os preços para baixo.
Uma delas é reconhecer as limitações dos monopólios. Esses medicamentos geralmente estão em situação de monopólio legal, por causa da concessão de patentes. É essencial aprimorar o sistema de patentes, evitando monopólios injustificados, assegurando segurança jurídica para concorrentes e usando mecanismos legais de suspensão de patentes, como licenciamento compulsório, quando preciso.
Há também o chamado monopólio de fato, situação em que, mesmo sem patentes, não há concorrente no território capaz de produzir. É assim essencial desenvolver as capacidades produtivas brasileiras no setor farmacêutico, especialmente pelos laboratórios públicos, para produzir fármacos essenciais que o setor privado não fabrica ou o faz cobrando muito. Vale lembrar que atualmente três laboratórios públicos estão envolvidos em projetos internacionais de transferência de tecnologia para desenvolvimento e produção de vacinas para Covid-19.
No mais, devemos estabelecer um melhor sistema de regulação e transparência de preços no setor farmacêutico. Esse controle de preços de medicamentos não é novidade no mundo, e cada vez mais países se valem de iniciativas dessa natureza. O Canadá, por exemplo, criou em 2018 um órgão federal apenas para regular o preço de medicamentos com patente, com o objetivo de reduzir os preços.
No Brasil, o mercado é regulado desde a década de 1950, com um pequeno hiato na década de 90 que levou a um aumento considerável dos preços e foi seguido de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Criada após esse período, a regulação brasileira atual, encabeçada pela Cmed (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos), ainda precisa ser aprimorada, especialmente quando nos deparamos com preços máximos muito elevados, distantes da realidade do mercado.
A regulação brasileira poderia ganhar muito monitorando os preços efetivamente praticados na ponta e incorporando exigências internacionais sobre transparência no setor farmacêutico. Por que não ampliar o acesso às informações sobre custos de pesquisas clínicas, participação de investimento público, políticas de desconto e preços reais praticados em outros mercados? A transparência que hoje se exige na lei é restrita aos custos de produção e logística no momento do registro — e pode ser dispensada pela Anvisa.
Essa ideia foi bem consolidada na Itália e ganha força na sociedade civil de diversos países, como França, Canadá e África do Sul. Em 2018, a Assembleia Mundial da Saúde, cúpula da OMS (Organização Mundial da Saúde), aprovou uma resolução sobre o tema. Aliás, essa proposta contou com a participação da delegação brasileira. Aperfeiçoar essa ferramenta no nosso país seria um imenso ganho e reduziria os preços astronômicos, cada vez mais frequentes no setor.
O enfrentamento dos preços altos também deve fazer parte do conjunto de medidas para efetivação do direito à saúde e para a sustentabilidade do sistema público. Discutir como gastar recursos limitados com custos infinitos às vezes nos faz esquecer que custo não é preço. E que entre esses dois polos há um enorme espaço de ação para tirar esse direito do papel.
*Matheus Falcão é advogado e especialista em Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).
*Ana Carolina Navarrete é advogada e coordenadora do programa de Saúde do Idec