ARMADILHAS DO CRÉDITO
Pesquisa do Idec constata que anúncios publicitários de cinco modalidades de crédito usam mensagens apelativas e induzem o consumidor ao erro, violando o CDC. Empresas não se preocupam com o endividamento dos cidadãos
Qual é o seu maior sonho? Comprar a casa própria, ter um carro do ano, dar a volta ao mundo, fazer um intercâmbio? Tudo isso custa dinheiro. Bastante dinheiro, na verdade. No mundo ideal, a pessoa economizaria o máximo que pudesse e investiria para pagar à vista o que deseja comprar. Mas na vida real, não é bem assim. Seduzidos por campanhas publicitárias agressivas, muitos cidadãos brasileiros acabam contratando um empréstimo sem refletir nas consequências e, assim, se endividando. De acordo com pesquisa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) realizada em junho deste ano, 64% das famílias brasileiras estão endividadas. Destas, 30% estão superendividadas, o que significa que não são capazes de pagar suas dívidas.
A publicidade das mais variadas formas de crédito costumam destacar a facilidade de contratação, a rapidez para a liberação do dinheiro, o pagamento em parcelas a perder de vista e a praticidade (nos bancos, o crédito pode ser contratado na agência, pelo aplicativo, no internet banking e nos caixas eletrônicos; nas financeiras, são pedidos poucos documentos; nas fintechs, tudo é resolvido online). Contudo, as propagandas escondem os riscos a que um cidadão que pede empréstimo está sujeito e não informam adequadamente as taxas de juros elevadas e o Custo Efetivo Total (CET) da operação.
CONTRATAÇÃO CONSCIENTE
- Avalie se realmente precisa do dinheiro que pretende pegar emprestado;
- Planeje a contratação de crédito e avalie se consegue pagá-lo;
- Compare as condições oferecidas por várias empresas;
- Blinde-se contra propagandas que vendem "felicidade" e "realização de sonhos", lembrando-se de que não existe dinheiro fácil;
- Leia todas as informações presentes na propaganda, inclusive as que estão no rodapé em letras quase inelegíveis.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Analisamos propagandas de cinco linhas de crédito: crédito pessoal, crédito consignado, cartão de crédito, crédito para negativados e crédito para renegociação de dívida. Em- bora o cheque especial seja um dos maiores vilões quando se fala em superendividamento, ele ficou de fora desta pesquisa, pois não costuma ser explorado pelos bancos em campanhas publicitárias.
O material foi coletado nas ruas do centro de São Paulo (SP) em agosto. Também visitamos as estações de trem e metrô da cidade, além de pontos de ônibus, agências bancárias, financeiras e lojas de departamento, onde recolhemos folhetos publicitários e anúncios de jornais e revistas.
As propagandas online foram coletadas em julho e agosto no site das instituições financeiras, em canais do Youtube e em Instagram.
As publicidades pertencem a 31 empresas: 12 bancos, oito financeiras, oito fintechs (empresas de tecnologia financeira que atuam exclusivamente online) e três correspondentes bancários (empresas que representam os bancos). O conteúdo das propagandas foi analisado de acordo com o tipo de instituição financeira, o tipo de mídia e a linha de crédito. O objetivo era verificar se elas respeitam o Código de Defesa do Consumidor e avaliar o impacto delas no superendividamento dos cidadãos brasileiros.
Enviamos cartas com os resultados da pesquisa para todas as empresas. Como essa pesquisa faz parte do Guia dos Bancos Responsáveis (GBR), as respostas serão publicadas no site https://guiados bancosresponsaveis.org.br.
Ione Amorim e Gustavo Machado de Melo, pesquisadores do programa Serviços Financeiros do Idec
"Há algum tempo, a publicidade de crédito vem sendo popularizada com merchadising em novelas e programas de auditório, geralmente feito por artistas populares que deixam o assunto leve e camuflam as graves consequências da contratação de crédito de forma irresponsável", declara a especialista em proteção e defesa do consumidor Neide Ayoub, do Procon-SP. Para o Idec, esse tipo de publicidade é extremamente preocupante, pois as instituições vendem a realização de sonhos como se o crédito fosse resolver problemas num passe de mágica. "Falta transparência e adequação das mensagens ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), pois a maioria delas induz o consumidor a erro e pode levá-lo ao endividamento", critica Michel Roberto de Souza, advogado do Idec.
Em 2016, o Idec avaliou propagandas que ofertavam crédito no Brasil e constatou que elas eram agressivas e focavam no imediatismo e na praticidade para conquistar consumidores. Este ano, o Instituto realizou nova pesquisa para verificar se a situação mudou nesses três anos. Para isso, analisou o teor das campanhas publicitárias para checar se elas estão adequadas ao CDC e se há abusividades (veja mais sobre como foi feita a pesquisa no quadro da página 17).
SUPERENDIVIDAMENTO, UM PROBLEMA GRAVÍSSIMO
Tratar o superendividamento de forma eficiente é mais do que urgente. Uma esperança é o PL no 3.515/2015, que tramita na Câmara dos Deputados. Ele inclui o tema "superendividamento" no Código de Defesa do Consumidor. Ainda que seu foco seja a prevenção e o tratamento do endividamento, ele também dispõe sobre a publicidade de crédito.
O artigo 54-B determina que "a oferta de crédito ao consumidor deve indicar, no mínimo, o custo efetivo total, o agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento". Já o artigo 54-C proíbe o uso das expressões "sem juros", "gratuito", "sem acréscimo", com "taxa zero", entre outras; que se anuncie que a operação de crédito pode ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor; que oculte ou dificulte a compreensão sobre os ônus e riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo; e que assedie ou pressione o consumidor para contratar o crédito, inclusive à distância, por meio eletrônico ou por telefone, principalmente se ele for idoso, analfabeto, doente ou vulnerável.
DIREITOS VIOLADOS
A pesquisa constatou que a publicidade de crédito está concentrada nos meios digitais. "Algoritmos associam os interesses do consumidor à necessidade de empréstimo, e ele é bombardeado com ofertas", informa Ione Amorim, economista do Idec e coordenadora desta pesquisa. Não foi encontrada nenhuma propaganda em jornais e revistas.
Nas publicidades que destacam o número e o valor das parcelas, a informação sobre a taxa de juros não é clara, o que viola o CDC. Em duas publicidades analisadas, a taxa de juros estava no rodapé ou no verso do folheto, em letras bem pequenas. Em quatro não havia informação. Os caracteres minúsculos do rodapé também são encontrados na página inicial dos sites das fintechs. Normalmente, a homepage contém somente informações básicas, sem exibir o risco das operações.
Considerando todos os problemas identificados, o Idec recomenda que o Banco Central, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e os Procons sejam mais rigorosos na fiscalização e punição das empresas que descumprem o CDC. "Já as empresas devem se preocupar com a transparência e não explorar a vulnerabilidade do consumidor nem usar termos apelativos", recomenda Amorim.
DIREITOS GARANTIDOS
O CDC estabelece, em seu artigo 6º, inciso III, direitos básicos à informação clara e adequada e à boa fé nas relações de consumo, além da proteção contra a publicidade enganosa e abusiva (artigos 6º, IV, e do 30 a 38). De acordo com o CDC, publicidade enganosa é aquela que é inteira ou parcialmente falsa ou capaz de induzir o consumidor a erro.
Entretanto, no caso da publicidade de crédito, é difícil o consumidor relacionar a publicidade abusiva ao superendividamento. "Por conta disso, as regras previstas no CDC precisam ser mais bem fiscalizadas pelo poder público e atualizadas para acompanhar a evolução tecnológica", defende Souza.
Além do CDC, as publicidades são autorreguladas, ou seja, as empresas se comprometem voluntariamente a seguir determinadas regras. Contudo, elas não têm a força de uma lei. Um exemplo é o Normativo SARB (Sistema de Autorregulação Bancária) nº 10/2013, desenvolvido pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban). O problema é que ele só é aplicado a 22 bancos associados ao órgão e signatários dessa autoregulação. Assim, bancos pequenos, financeiras, fintechs, comparadores de crédito e lojas de departamentos não estão sujeitos a essas regras.
Outra autorregulação é a do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, cujo cumprimento é fiscalizado pelo Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar). No entanto, somente 4 das 31 instituições financeiras avaliadas nesta pesquisa são associadas ao Conar: Bradesco, Caixa Econômica Federal, Itaú e Santander.
Há ainda diversos projetos de lei (PLs) sobre o tema em debate. Destacamos, além do PL nº 3.515/2015 (veja quadro na página 18), o PLS nº 354/2018, que tramita no Senado. Ele altera o CDC a fim de proibir o uso das expressões: "parcelamento sem juros", "gratuito", "sem acréscimo", "taxa zero", entre outras. Atualmente, o projeto é analisado pela Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC), após passar por audiência pública, em outubro, da qual o Idec participou.
Resta agora que deputados e senadores façam a sua parte para que essas propostas saiam do papel.
MODALIDADES DE CRÉDITO E SUAS ARMADILHAS
Modalidade mais tradicional, com taxas de juros altíssimas.
Foco no acesso rápido, na disponibilização imediata e na contratação fácil.
Frases comuns:
- No momento que você mais precisa;
- Buscando desenrolar as contas;
- Rápido, fácil e sem burocracia;
- O jeito mais rápido e fácil para você ficar livre das preocupações;
- Seu dinheiro com mais agilidade.
Pertence ao segmento de crédito pessoal e também tem juros altíssimos. O público-alvo são pessoas inadimplentes.
Foco na urgência.
Frases comuns:
- Dinheiro rápido na sua mão;
- Dinheiro em até 24h, mesmo se estiver negativado;
- Até 45 dias para pagar a 1ª parcela;
- Precisando de dinheiro? Nós temos a solução.
É a modalidade que mais leva ao endividamento, por conta do acesso fácil, do uso do rotativo e do parcelamento.
Foco na praticidade e no poder.
Frases comuns:
- Tá em todo lugar;
- Quem tem pode tudo;
- É o XXX (nome do cartão) facilitando sua vida;
- Só tem vantagem.
As parcelas da dívida são automaticamente retiradas da conta da pessoa.
Foco nos juros reduzidos, parcelamento em até 96 vezes e na comodidade.
Frases comuns:
- Com ele, você cobre gastos do dia a dia e ainda realiza projetos, como a reforma da sua casa e uma viagem de férias;
- Precisa de uma força para pagar as dívidas ou reformar a casa?;
- A força que você precisa para conquistar mais;
- Aproveitar a melhor fase da vida. Com a XXX (nome da empresa) você pode.
Oferece a possibilidade de renegociar a dívida com outras modalidades de crédito (cartão de crédito, cheque especial, crédito pessoal etc.) por meio de nova dívida.
Foco na solução de problemas e no parcelamento facilitado.
Frases comuns:
- Aproveite para organizar suas pendências e ficar em dia com o banco;
- A gente te ajuda a ficar em dia;
- Você no azul;
- Condições especiais para você quitar suas dívidas e ficar no azul.
- Crédito pessoal
- Crédito para negativados
- Cartão de crédito
- Crédito consignado e cartão de crédito consignado
- Crédito para renegociação de dívidas
A PUBLICIDADE E A PSICOLOGIA ECONÔMICA
Vera Rita de Mello Ferreira é doutora em psicologia econômica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua na área há 25 anos. É consultora independente.
Por que as publicidades de crédito – muitas vezes agressivas e até mesmo abusivas – são perigosas?
Vera Rita de Mello Ferreira: o marketing aproveita o lado das pessoas que quer ser enganado (o famoso "me engana que eu gosto"). A oferta de crédito é particularmente atraente porque dá a impressão de que o dinheiro vem rápido e fácil. No pagamento, as pessoas pensam depois. Aqui, temos o viés do presente: o ser humano toma decisões com base na satisfação imediata de suas necessidades.
Que outros vieses podem ser notados em propagandas de crédito?
VRMF: a propaganda apela à fantasia de que somos capazes de realizar nossos sonhos. Eu me preocupo com a palavra sonho, mesmo quando usada em educação financeira. Para muita gente ter um sonho é motivador, mas pode fazer o indivíduo achar que vale fazer de tudo para realizá-lo, por exemplo, pegar empréstimo. E aí entra outra característica humana que é o otimismo excessivo: quando se contrata crédito, acredita-se que vai dar conta de pagar, não se olha para os riscos. Outro ponto é a autoconfiança exagerada: a pessoa acha que com ela nada vai dar errado. A família inteira pode estar no vermelho, mas com ela vai ser diferente.
Nos últimos 10 anos, o acesso ao crédito foi facilitado. Como os consumidores podem se defender das propagandas?
VRMF: essa é a pergunta que não quer calar. Eu sempre proponho que os mecanismos usados nas propagandas sejam expostos e debatidos publicamente, para que as pessoas sejam conscientizadas e possam se defender. Eu tenho defendido o que chamo de quinteto fantástico: conhecimentos em psicologia e ciências comportamentais aplicadas (antropologia, sociologia, biologia etc.); educação financeira e políticas públicas; proteção do consumidor; regulação do setor; e arquitetura da escolha, que propõe um desenho que transforme os vieses comportamentais em aliados.
O Idec constatou que 63,2% das propagandas usam imagem de pessoas felizes e, desse total, 74,7% mostram pessoas sozinhas, o que pode passar a sensação de independência. Como você avalia esses dados?
VRMF: ao vermos imagens de pessoas sozinhas, nos sentimos amparado e pensamos: "se tudo der errado, eu não preciso pedir ajuda a ninguém, eu pego um empréstimo". As pessoas preferem usar o cheque especial ou o cartão de crédito em vez de conversar com o gerente do banco, para evitar constrangimento. Fazer um trâmite eletrônico ou automático, no caso do cheque especial, dá a sensação de que nos viramos sozinhos. E quando vemos fotos de pessoas felizes temos a impressão de que todo mundo está se dando bem menos a gente. Daí entra o comportamento de manada: o crédito acaba sendo contratado para que nos igualemos aos outros e possamos ostentar.