Já para a cozinha!
"Cozinhar é como ler e escrever: todo mundo deveria saber." Essa defesa entusiasmada da culinária é a marca da chef Rita Lobo, idealizadora do Panelinha, um dos mais antigos e reconhecidos sites de receitas brasileiros. A afirmação de Rita não é mero corporativismo: para ela, cozinhar é fundamental para ter uma alimentação mais saudável, pois significa não depender da indústria de alimentos ultraprocessados. Além de falar sobre a importância de cozinhar, Rita Lobo também explica nesta entrevista por que ser saudável não tem a ver com ser light ou fitness, mas sim com comer comida de verdade.
Na descrição do seu blog, você diz que que todo mundo deveria saber cozinhar, assim como ler e escrever. De que maneira cozinhar se relaciona com comer melhor e de forma mais saudável?
Rita Lobo: Uma boa alimentação é feita com alimentos frescos, in natura, minimamente processados e até alguns processados. Para transformar isso em uma refeição gostosa, você precisa saber cozinhar. Se não sabe, ou depende que alguém que faça isso por você, ou depende da indústria, que não vai conseguir fazer isso. Mesmo que esteja [escrito] "caseiro" na embalagem, a gente sabe que essa comida não é caseira, é feita na fábrica. E para aguentar todo o tempo entre sair da fábrica, ficar no supermercado até o momento em que você for comer, esse produto precisa ter um monte de conservante e outras coisas que já o descaracterizam como "comida de verdade". Por isso, saber cozinhar é uma ferramenta para uma vida melhor.
Em sua opinião, quais são as maiores barreiras para as pessoas cozinharem? E como superá-las?
RL: Se você perguntar para qualquer pessoa qual é a barreira, [ela vai responder que] é o tempo. Mas não acho que seja tempo, e sim uma questão de priorizar o assunto. As pessoas muitas vezes consideram que cozinhar é uma espécie de "dom", ou você sabe ou não sabe. Mas cozinhar é como ler e escrever também no sentido de que é preciso aprender. Ninguém nasce sabendo. Pode se levar mais ou menos jeito para a coisa, mas sempre se aprende. Para isso, é preciso investir, não só tempo, como também pesquisar, se dedicar, colocar a mão na massa. E também se planejar, pois cozinhar vai além de grelhar um bife. Você precisa ter o bife; para ter o bife, precisa ter feito compras; para fazer compras, precisa pensar antes quantas refeições você vai fazer em casa, quantas pessoas vão comer etc. Quando a comida vira uma prioridade, naturalmente vai se percebendo que é preciso planejar, armazenar, conhecer algumas técnicas culinárias, reaproveitar sobras etc., e tudo fica mais fácil.
O Panelinha lançou recentemente um blog sobre alimentação saudável, mas, diferentemente do que se costuma ver por aí, ele não traz receitas lights ou fitness. O que vocês consideram alimentação saudável?
RL: O blog é feito em parceria com o Nupens [Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da Universidade de São Paulo], com o objetivo de unir teoria e prática. A ideia é mostrar as armadilhas da indústria de alimentos e do mercado editorial. Para a indústria, é importante que se acredite que barrinha de cereal light é uma opção saudável. E as pessoas amam coisas do tipo "perca 3 kg em uma semana". Só que isso não é sustentável. É uma ilusão para vender revista, para a matéria ter cliques. Então, a ideia do blog é justamente alertar e fazer as pessoas repensarem: você acha mesmo que existem "superalimentos"? Um único alimento pode transformar a sua alimentação e, consequentemente, a sua saúde? É um pouco um banho de água fria para muita gente, mas é também um alívio! Por exemplo, será mesmo que não pode comer a pele do frango assado? Pode! Pode comer comida, não podecomer o que não é comida.
O blog também é uma forma de a gente se posicionar sobre essa confusão em torno do que é alimentação saudável. As pessoas confundem dieta e regime com alimentação saudável, acham que "ser saudável" é comer salada e legumes no vapor, e não é isso. É simplesmente comer comida de verdade. Lá [no blog], você não encontra low carb [termo em inglês para baixo teor de carboidratos], porque não acreditamos nisso e levamos a sério a ideia de que receita é ferramenta para a pessoa aprender a cozinhar.
Dentro do conceito de alimentação saudável, você tem uma preocupação em abordar a forma como os alimentos são produzidos, como os produtos orgânicos?
RL: Não tratamos desse assunto no Panelinha porque a gente quer muito que as pessoas entrem na cozinha. Só de a pessoa chegar em casa depois do trabalho e preparar o jantar, já acho genial. Se ainda tiver que se preocupar se é orgânico ou não... Sim, é melhor comer alimentos orgânicos, mas não queremos que isso vire um obstáculo. Ainda estamos no primeiro passo de dizer: "vá para a cozinha". A partir do momento em que cozinhar vira um hábito, as pessoas passam a ter essas preocupações sozinhas..
No Guia Alimentar para a População Brasileira, documento do Ministério da Saúde elogiado mundialmente, a principal recomendação é substituir alimentos ultraprocessados por refeições caseiras. Para quem não sabe cozinhar, por onde começar a seguir essa recomendação?
RL: A primeira coisa é cortar refrigerante. Não precisa nem saber cozinhar. Se trocar refrigerante por água, você já melhora sua alimentação. A segunda, são os "lanchinhos". Comer uma maçã no lugar da barrinha também já ajuda muito. Mas para começar a cozinhar, é preciso experimentar. Uma boa dica é começar a fazer receitas com legumes. À medida em que a pessoa começa a experimentar alimentos in natura nas refeições, vai ficando mais segura.
Em uma das temporadas do Cozinha Prática, você ensina a preparar refeições básicas (arroz, feijão etc.), o que também foge das expectativas de um programa de culinária. Como surgiu essa ideia e qual foi a receptividade do público?
RL: Escrevo receitas há 20 anos. Com isso, sempre tive muito contato com o público e com as questões das pessoas – e elas não sabem o básico. Elas podem até saber fazer um risoto para o fim de semana, já que cozinhar está na moda. Mas esse público do Panelinha e do GNT não sabe cozinhar um arroz, um feijão, não sabe como se descasca uma mandioca. As pessoas precisam saber esse básico não só porque individualmente é importante, mas também porque é importante para o país que a gente mantenha nossas tradições culinárias. Foi uma série de muito sucesso, tanto que tive vontade de fazer o primeiro livro do Cozinha Prática, que é um enorme sucesso editorial.
E não é só no Brasil que as pessoas não sabem o básico. Muito porque as mulheres saíram para trabalhar e a indústria começou a contar que a gente não precisava mais cozinhar porque está tudo pronto. Temos uma geração com um gap, que não aprendeu a cozinhar e não soube passar isso para os filhos. Essa geração mais nova entendeu que precisa cozinhar, porque não dá pra comer comida pronta a longo prazo.
No lado oposto, há hoje muitos programas de sucesso de culinária gourmet, que são apenas para as pessoas assistirem, não para fazer em casa. Qual é a sua opinião sobre esse fenômeno? Eles podem despertar o interesse pela cozinha ou podem afastar ainda mais?
RL: No fundo, são programas de entretenimento, que usam a comida como fator hipnotizante. As pessoas falam que tem muito programa de culinária, mas na verdade existe mais programa em que a comida é só o assunto. O Masterchef [reality show exibido na Band], por exemplo, não tem nada de culinária. Mas acho superpositivo, porque o fato de a comida virar um assunto faz com que as pessoas se interessem por entrar na cozinha. Mesmo sendo receitas muito difíceis, elas também querem fazer jantares especiais. É que o meu foco na televisão é muito o dia-a-dia, não o público gourmet.
No seu programa de TV e site, há sempre dicas de reaproveitamento de "sobras" de comida e incentivo à marmita. Além de economia financeira, quais são os benefícios de adotar essas medidas no dia a dia?
RL: Penso que isso faz parte do processo. Cozinhar é isso: pensar o cardápio, planejar as compras, preparar, reaproveitar as sobras... É uma coisa só. Tradicionalmente, a mesa do brasileiro é farta. Não é uma mesa "contadinha", como a francesa, onde as porções são pensadas para aquela refeição. As gerações anteriores de brasileiros que tinham habilidades culinárias sabiam aproveitar isso. À medida que essas habilidades foram se perdendo, as pessoas fazem um monte [de comida] e também jogam fora um monte. Enfim, reaproveitar faz parte [de cozinhar] e pode ser tanto do que sobra, quanto pode ser um reaproveitamento planejado, ou seja, fazer porções a mais para congelar.
A indústria de alimentos ultraprocessados costuma patrocinar programas de culinária e contratar chefs para publicidade. Como adota um discurso de certa forma contrário a esses produtos, você tem alguma política em relação a isso?
RL: Em relação ao Cozinha Prática, é o departamento comercial da emissora quem comercializa [publicidade e patrocínio]. Já merchandising, que é algo que tem a ver diretamente comigo, eu não faço de produtos nos quais não acredito. Assim como no Panelinha. O anunciante natural [do site] seria a indústria de alimentos ultraprocessados, mas não fazemos porque não utilizamos esse tipo de produto. No Youtube, os anúncios são programáticos, e é uma coisa sobre a qual não temos muito controle. Mas acho que a essa altura do campeonato a indústria já entendeu que não dá muito para associar minha imagem a alimentos ultraprocessados.