Bloco Associe-se

Associe-se ao Idec

Justiça coletiva

Justiça coletiva

IMAGEM DE DESTAQUE Em 1985, no contexto de redemocratização do País, foi criada a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), com o objetivo de promover a defesa dos direitos coletivos e de facilitar o acesso à Justiça. Por meio de uma ação civil pública (ACP) é possível que, com uma única decisão, todos os indivíduos lesados por um mesmo fato sejam amparados. Ela é o instrumento adequado para reivindicar a responsabilização de uma empresa que provocou danos ambientais em determinada região, a redução de reajustes ilegais em um serviço privado ou a qualidade de um serviço público, por exemplo.
Para comentar a importância desse instrumento no sistema jurídico brasileiro, entrevistamos o advogado João Ferreira Braga, professor de pós-graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), entre outras instituições, e membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Por e-mail, Braga respondeu às perguntas da Revista do Idec e analisou os desafios para fortalecer a ACP no Brasil.

Idec: Passados quase 30 anos da introdução da ação civil pública, qual é a sua avaliação sobre o uso desse instrumento no Brasil?
JOÃO FERREIRA BRAGA: As principais legislações atuais sobre as ações coletivas – Lei da Ação Civil Pública, Lei da Ação Popular e disposições próprias do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo – conferem ao Brasil importante posição no cenário jurídico internacional. O Estado brasileiro foi precursor no tratamento processual de conflitos de massa. Mas ainda existem dúvidas quanto à sua interpretação.
Em alguns momentos, o Poder Judiciário tem dispensado à ação civil pública tratamento próprio, reconhecendo a autonomia do processo coletivo. Em outras ocasiões, são aplicadas técnicas do processo civil individual. Esse tratamento dual, do meu ponto de vista, não pode prevalecer, porque ele esvazia as principais características e potencialidades do processo coletivo, comprometendo os seus resultados e gerando um indesejável descrédito popular quanto à sua efetividade.

Idec: Em comparação com outros países, a tutela coletiva está fortalecida e é bem utilizada na Justiça brasileira?
JFB: Podemos afirmar, com convicção, que o Estado brasileiro, assim como o colombiano, tem a legislação mais avançada no âmbito das tutelas coletivas, o que se deve, principalmente, à intensa produção acadêmica sobre o tema. Contudo, ainda predomina no Brasil a cultura da sentença individual, a busca pela tutela clássica, em prejuízo de outros instrumentos igualmente valiosos na obtenção da proteção jurídica do cidadão. Ainda é tímida a aplicabilidade das formas "alternativas" de resolução de conflitos, como mediação, conciliação e arbitragem, assim como da tutela judicial coletiva.

Idec: Em sua opinião, o Poder Judiciário está preparado para lidar com a tutela coletiva? Os magistrados têm dado decisões que convergem com a natureza das ações civis públicas?
JFB: Se avaliarmos a atuação dos juízos de primeiro e segundo graus, encontraremos diversidade de posicionamentos na condução dos processos coletivos. Entretanto, se limitarmos a análise aos julgamentos do Superior Tribunal de Justiça [STJ] – corte competente para uniformizar o entendimento sobre a legislação federal infraconstitucional – constataremos que, apesar de apresentar notórios avanços, ainda persiste, em determinados aspectos, a aplicação de técnicas do processo civil clássico.
Assim, é possível dizer que os nossos tribunais têm mantido a política das portas abertas às ações coletivas, denotando estarem ambientados com elas. Contudo, ainda é necessário que eles reconheçam a sua autonomia de forma definitiva, e deixem de buscar soluções típicas do processo individual para desafios próprios do processo coletivo.

Idec: A lei brasileira legitima a proposição de ação civil pública por órgãos diversos, como Ministério Público, associações e sindicatos. Por que ainda há, até hoje, questionamentos sobre a legitimidade de associações civis, como o Idec, para fazer uso de processos coletivos?
JFB: Um dos aspectos que compõem a legitimação para ingressar ações coletivas é o conceito de representatividade adequada, ou seja, a exigência de que o órgão apresente condições de seriedade, credibilidade, capacidade técnica, idoneidade intelectual e até econômica, para que exerça com competência o seu papel na discussão judicial. Afinal, se as obrigações processuais forem descumpridas, todos os membros do grupo, categoria ou classe de pessoas "representadas" serão prejudicados. Desse modo, a representatividade adequada é avaliada a partir do caso concreto.

Idec: Uma das possibilidades da ACP é que uma única decisão atinja todos os indivíduos lesados da mesma maneira. Porém, a Lei nº 9.494/97 passou a prever a limitação territorial dos efeitos da decisão, para ter validade apenas no Estado onde correu o processo. Essa lei enfraqueceu a ação civil pública?
JFB: Sem dúvida, a limitação territorial contraria os fundamentos principais da tutela coletiva e contribui para o aumento de processos. É importante lembrar que o próprio Poder Judiciário foi beneficiado pelos processos coletivos, em termos de projeção, uma vez que a sociedade passou a interagir de forma mais acentuada com esse Poder, e também de racionalização do trabalho.
Porém, mais recentemente, em um julgamento de outubro de 2011, o STJ passou a atentar para uma interpretação diferente sobre essa questão, apontando a necessidade de rever a antiga jurisprudência [sobre a limitação territorial], a fim de atender o propósito das ações coletivas, que é viabilizar um comando judicial célere e uniforme. Portanto, essa decisão inaugurou uma nova linha de interpretação na Corte, em que se destaca a necessidade de levar em conta as potencialidades de abrangência da ação civil pública.

Idec: Está em discussão no STJ a limitação da abrangência de uma ação civil pública movida pelo Idec contra o Banco do Brasil, que tornou-se definitiva em 2009 sem nenhuma restrição territorial aos beneficiários. Uma modificação desse tipo pode causar insegurança jurídica?
JFB: Conheço os julgamentos relativos à questão proposta. Porém, o Superior Tribunal de Justiça, em processos de relatoria dos Ministros Antonio Carlos Ferreira e Isabel Gallotti, por exemplo, tem reconhecido que a alteração da abrangência de uma decisão, com a imposição de restrições territoriais não preconizadas pela sentença, aviltaria a decisão e, consequentemente, o princípio da segurança jurídica.

Idec: Em 2010, o STJ reduziu o prazo para ingressar com ações civis públicas de 20 para cinco anos e, em 2012, reduziu também para cinco anos o prazo para execução de ações coletivas. Qual é a sua opinião sobre essas mudanças?
JFB: Entendo, com todo o respeito, que o posicionamento assentado pelo STJ propicia debates, no mínimo em relação à aplicação do prazo previsto na Lei da Ação Popular. A ação popular apresenta cunho punitivo e, nesse ponto, é justificável prazo menor para a propositura da ação judicial. Como a ação civil pública não tem a mesma finalidade, não soa adequada a aplicação análoga do mesmo prazo prescricional. Além disso, a redução do prazo pode comprometer o acesso efetivo à proteção judicial coletiva, já que, em muitos casos, o período para reclamar à Justiça de forma individual é superior a cinco anos.

Idec: À medida que limita o prazo para a propositura e para a execução de ações civis públicas, o STJ contribui para o aumento de processos individuais. Não é um contrassenso, considerando que o Judiciário já enfrenta um excesso de demandas?
JFB: Perfeitamente. Não tenho dúvida de que as decisões do STJ estabelecem uma contracultura ao processo coletivo, estimulando a busca e a pulverização das demandas individuais. O próprio STJ tem se debatido com um extensíssimo número de processos individuais relacionados à saúde que poderiam ser substituídos por uma única ação coletiva. As vantagens seriam claras, sobretudo no que se prende à racionalização da atuação do Poder Judiciário, permitindo que aquela Corte se dedicasse a causas de teor federal.

Idec: O projeto do Novo Código de Processo Civil, aprovado em março na Câmara, prevê a possibilidade de transformar uma ação individual em coletiva quando houver diversos processos individuais com o mesmo objeto.Qual é o propósito dessa medida e de que forma ela seria implementada?
JFB: O propósito é atribuir maior efetividade às decisões judiciais, conferindo-lhes a condição de precedente obrigatório a situações fáticas e jurídicas semelhantes. A medida permitirá que o juiz, ao reconhecer a numerosidade de ações sobre a mesma tese jurídica, possa determinar a suspensão dos processos assemelhados até que um processo eleito para esse propósito – chamado de "caso paradigma" – seja julgado, fixando o posicionamento a ser aplicado nos demais casos.

SAIBA MAIS

Leia na matéria de capa desta edição as ameaças que a ação civil pública vem sofrendo no Judiciário.