Os serviços no Brasil são caros e de má qualidade, mas isso é decorrente de uma escolha pelo lucro imediato e expansão acelerada de vendas em detrimento da assistência pós-venda, da fidelização pela qualidade e da boa informação ao consumidor
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11/09/2014
Atualizado:
26/05/2015
Carlos Thadeu C. de Oliveira - Gerente técnico do Idec
O título deste artigo sugere um paradoxo, um antípoda mesmo ao senso comum, que diz que quem vende muito oferece um bom serviço ou produto.
Muito embora os preços de diversos serviços no Brasil estejam já bastante próximos daqueles praticados na Europa, Ásia e EUA, ainda não dispomos da qualidade que está presente nesses locais. Em relação aos produtos, é sabido que muitos preços daqui já são superiores.
Isso não ocorre apenas nos serviços privados, mas também nos serviços públicos. Essa foi uma das razões das manifestações que afloraram em junho/julho de 2013.
A questão dos preços merece outro artigo, mas falemos da qualidade.
Não há país democrático do mundo em que os serviços privados sejam de boa qualidade sem que os públicos estejam em um patamar semelhante. Quando o padrão de qualidade mínima desaparece, a tendência é a queda geral.
Vários dos serviços que são objeto de queixas dos brasileiros são prestados por empresas privadas, mas são públicos e concedidos, ou ainda de interesse público, como a educação privada. Além disso, há os serviços chamados “suplementares”, como os planos de saúde que, por este nome, deveriam adicionar, somar (sim, é isso mesmo!) ao que é oferecido pelo SUS. E os serviços privados simplesmente.
Na maior parte dos casos, o papel do Estado é essencial para a manutenção da qualidade, seja porque ele presta serviço básico ou semelhante, seja porque ele pode e deve exigir o cumprimento de parâmetros e metas na prestação dos entes privados. Mas, não raro, o Estado não consegue fiscalizar de maneira eficaz a prestação dos mesmos e, tampouco ameaça retomar concessões quando há falha reiterada e grave.
O Estado, aqui, não é só o governo federal, evidentemente, mas um caso exemplar é o das agências reguladoras e das autarquias que tem sob sua tutela atividades como serviços financeiros, telecomunicações – incluindo aí o telefone celular, o fixo, a internet e a TV por assinatura – e assistência à saúde, para ficar apenas em três exemplos.
Os órgãos federais encarregados de zelar pela boa prestação desses serviços estão bastante suscetíveis a influências do próprio setor regulado, muitas vezes, até, com a presença de pessoas ocupando cargos de direção e que estiveram recentemente nas empresas reguladas. Ou ainda, as agências pautam sua atividade regulatória e fiscalizadora por regras específicas do setor, esquecendo-se dos direitos do consumidor. Elas obedecem a dinâmica econômica do próprio setor regulado e não visam, necessariamente, a melhoria da qualidade dos serviços ao consumidor e ao cidadão.
Por exemplo: o Banco Central esquiva-se de punir e corrigir a má prática recorrente de bancos em relação ao consumidor, alegando que seu papel é apenas “zelar pela higidez do sistema financeiro”. Caberia perguntar por que razão ele mantém um índice de reclamações atualizado mensalmente em seu site. Se não é para agir, para que serve?
Os exemplos poderiam se multiplicar e se estender a estados e municípios: lixo e transporte metropolitano, saneamento básico, segurança e educação.
Mas não é só o governo que falha. Uma sociedade madura tem que deixar de lado essa ladainha de culpar só o outro e esquecer do que pode fazer para melhorar. Se a lei for cumprida, por exemplo, já será uma grande coisa. Temos leis excelentes e outras nem tanto, mas nosso déficit não é legal ou normativo.
Inúmeras pesquisas do Idec fotografam práticas ruins de prestadores de serviços. Fazemos nossas pesquisas e testes sempre na perspectiva de um consumidor comum, isto é, sondamos aspectos básicos na oferta e prestação de serviços.
As empresas argumentam que as irregularidades encontradas decorrem de acidentes ou equívocos pontuais, mas sempre encontramos os mesmos problemas a cada vez que testamos os serviços, e isso ao longo de 27 anos de atividades do Idec!
Bancos não entregam contratos e nem informam taxas e outros valores quando alguém contrata um empréstimo, impõem a venda casada de seguros e outros serviços, cobram tarifas diferentes das pactuadas inicialmente com seus clientes, enviam cartões de crédito sem solicitação do consumidor e por aí afora.
O mesmo pode ser dito das empresas de telefonia e de serviços de telecomunicações e entretenimento. Os planos ilimitados nunca são exatamente isso, os valores atraentes são sempre “promocionais” e duplicam em pouco tempo, as taxas por serviços adicionais são surpreendentemente altas e os pacotes são alterados segundo o desejo e conveniência das empresas – isso é bastante comum nos serviços de TV por assinatura. Para não falar na baixa qualidade propriamente dos serviços – a lentidão e a irregularidade da telefonia e da internet – e da omissão e inépcia na assistência pós-venda.
No setor de saúde suplementar – os planos de saúde – o padrão de qualidade é igualmente sofrível. Quando não se pode pagar um plano de elevadíssimo padrão, o que verificamos em 90% dos casos é a negativa de cobertura diante da necessidade de um tratamento, internação ou cirurgia, a exclusão de um profissional, hospital ou laboratório da lista dos credenciados e, finalmente, os aumentos muitas vezes superiores à inflação, que nos chegam todos os anos e a cada vez que ultrapassamos uma determinada idade.
Isso está estampado não apenas em nossas pesquisas e testes, mas nos milhões de queixas de consumidores nos Procons do país, nas redes sociais e páginas da internet, nos SACs das empresas, nas ouvidorias e nas agências reguladoras. São milhões de conflitos de consumo, mas ainda subdimensionados.
Temos, portanto, um déficit enorme de qualidade que está ligado a várias razões, mas certamente não é de incapacidade técnica dos prestadores e tampouco de falta de normas e leis. Não obstante nosso baixo nível educacional, as empresas atuantes no Brasil têm padrão técnico internacional – até porque muitas são transnacionais. Nossas leis, ao menos as mais importantes relativas a serviços, como o Código de Defesa do Consumidor, são excelentes. Esse déficit de qualidade está intimamente ligado a uma escolha pela maximização dos lucros a qualquer preço, por expandir mais e conservar menos, por informar pouco e faturar muito, por investir pesado em vendas e quase nada em assistência e suporte.
Sugiro refletirmos: o que importa mais para uma empresa, vender ou fidelizar? É impossível fazer os dois ao mesmo tempo? Para uma empresa ciosa de sua reputação é tão importante a venda como a pós-venda? O consumidor é rei só quando leva a mão ao bolso ou também quando precisa de alguma assistência após contratar o serviço? Promoções e ofertas podem obter sucesso sendo verdadeiras e prestando todas as informações relevantes ao consumidor? Com serviços cada vez mais intercambiáveis e reversíveis, deve-se buscar a fidelização do consumidor apenas por meio de multas e cláusulas contratuais?
Se a reflexão provocasse mudança real, talvez, empresas de telecomunicações não conseguissem vender milhões de pacotes, mas gerariam menos problemas aos seus clientes; operadoras de saúde teriam de lucrar menos, mas a saúde dos consumidores agradeceria por não correr riscos desavisadamente; cartões de crédito e empréstimos seriam usados com mais parcimônia, mas a inadimplência e o endividamento diminuiriam.
Qual escolha estamos fazendo? Quem a está fazendo?
Muitos relatam a diferença de serviços e práticas existentes entre os EUA e o Brasil. Poderíamos, para certos serviços, ainda com mais razão, acrescentar a Europa e Ásia. Lá, dizem, podemos trocar de operadora de celular a qualquer hora, sem multa ou outra obrigação; pode-se mandar de volta um produto comprado pela internet ou mesmo devolver algo comprado numa loja sem precisar esclarecer o motivo; sabemos que o ônibus e o metrô passarão na hora informada; que terei a assistência à saúde necessária e adequada. Os exemplos são incontáveis.
Aqui, foi preciso baixar, em 2008, um decreto para estipular como os SACs devem atender seus clientes! E, mesmo assim, a coisa não anda bem... O governo baixou um decreto para regulamentar o comércio eletrônico. Há um cipoal de normas e resoluções em serviços financeiros, telecomunicações, saúde suplementar e outros temas, e sempre é preciso editar novas para detalhar o que já sabemos.
Nosso apego à letra e ao bacharelismo, como dizia Sérgio Buarque de Hollanda nos faz, no fundo, desprezarmos a prática e o espírito presentes na lei, mas nos apegarmos a suas vírgulas e lacunas.
O Código de Defesa do Consumidor completa em 11 de setembro 24 anos de sua promulgação e não é exagero dizer que ele prevê em poucos artigos quase todas as situações aqui referidas. É uma das mais avançadas leis de proteção ao consumidor no mundo todo e um ótimo guia de boas práticas.
O desafio que vivemos neste momento de expansão de serviços é, portanto, de passarmos das melhores leis para as melhores práticas. Essa não é uma tarefa só dos governos, mas também das empresas. Isso não precisa esperar por mais e novas leis.