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Copa sem direitos não dá jogo

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Atualizado: 

13/10/2017
Guilherme Varella
Reivindicando-se autoridade superior aos Estados soberanos, a FIFA (Fédération Internationale de Football Association) aterrissa no País afrontando conquistas históricas da sociedade e com o pé na porta do ordenamento jurídico brasileiro.
 
Munida do único argumento da “excepcionalidade” da Copa do Mundo de Futebol, a entidade descaradamente exige que o Governo Federal afaste o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto do Idoso, o Estatuto do Torcedor e a meia entrada estudantil para o ano de 2014. Resta saber se o Estado – Executivo e Legislativo - vai cumprir seu papel de zelar pelos direitos sociais ou vai ceder às exigências desmedidas dessa organização alienígena.
 
Pelo andar da carruagem, que galopa com o envio do Projeto de Lei Geral da Copa (PL 2.330/2011) ao Congresso e com as recentes declarações do Governo sobre o cumprimento das exigências da FIFA, tudo indica que a segunda opção pode triunfar.
 
Caso isso ocorra, brasileiros e brasileiras terão seus direitos suspensos para que se criem poderes especiais a esta entidade sui generis, que ganhará prerrogativas e privilégios exclusivos e passará ilesa às determinações legais.  
 
Um absurdo, se considerarmos que ela atuará em diversos segmentos protegidos constitucionalmente, como a defesa do consumidor, o livre comércio, a garantia da concorrência leal, a defesa da ordem econômica, o direito à cidade e a proteção trabalhista.
 
No que tange à defesa do consumidor, a situação é especialmente preocupante. A FIFA - e pelo jeito também o Governo Federal - desconsidera que o torcedor é antes de tudo um consumidor. Um consumidor que vai adquirir produtos e serviços (ingressos de jogos, hospedagens, passagens aéreas, camisetas de times, souvenires, alimentos, bebidas, etc.) e que, na relação com o fornecedor de todos esses itens, é obrigatoriamente protegido pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).
 
O CDC, que é uma das principais conquistas da sociedade, com mais de 20 anos, imprescindível para reequilibrar juridicamente uma situação socialmente desequilibrada: a relação consumidor-fornecedor.
 
No entanto, o Projeto da Lei Geral da Copa não apenas retoma esse desequilíbrio, como o eleva exponencialmente, criando um superfonecedor no mercado brasileiro: a FIFA.
 
O texto do PL deixa isso muito claro. A FIFA – incluídos seus parceiros - terá áreas exclusivas de exploração comercial, não apenas nos estádios, mas nos entornos e principais vias de acesso; plenos poderes para estabelecer preços de ingressos, cancelamento, reembolso, remarcação de datas, locais e horários, sem a respectiva obrigação de aviso prévio aos torcedores; a prerrogativa de modificação unilateral dos contratos; e a autorização para a realização de práticas e imposição de cláusulas contratuais consideradas abusivas pelo Código de Defesa do Consumidor.
 
Pelo grau de desrespeito, algumas destas chamam a atenção. Primeiramente, o PL da Copa não considera o CDC como legislação subsidiária, de maneira a manter o diálogo de fontes da mesma área jurídica e visando preencher as lacunas do texto da lei. Considera, por exemplo, várias leis de propriedade intelectual em seu art. 42, o que reforça ser caráter de combate à pirataria.
 
No entanto, esquece de considerar que a responsabilidade dos fornecedores, objetiva e solidária, também vale para a FIFA, como prevê o CDC. Aliás, esquece-se completamente de elencar os deveres e responsabilidade da entidade no PL, numa total omissão. Sobra previsão de responsabilização civil até para a União, mas para a FIFA, nada.
 
A venda casada, por exemplo, um dos grandes males do mercado de consumo nacional, passa a ser autorizada para a FIFA, com o projeto recém-chegado ao Congresso. Prática abusiva condenada pelo art. 39, I, do CDC, a venda casada é a obrigatoriedade de compra de um determinado produto ou serviço para que consiga adquirir outro, de seu interesse.
 
A superfornecedora FIFA, pelo art. 33, II, do texto do PL, poderá, a seu exclusivo critério, determinar se venderá os ingressos individualmente ou em conjunto com outra coisa. Assim, num jogo de pouca procura, tais ingressos podem ser baratos e avulsos. Mas, num Brasil e Argentina – e torçamos para que a “amarelinha” esteja bem -, o ingresso pode ser condicionado à venda de uma camiseta, uma caneca, o ingresso de outro jogo, ou até pacotes turísticos (hotéis e passagens), especialmente pra pessoas de outras localidades.
 
O projeto prevê também uma cláusula penal nos contratos que a FIFA imporá aos torcedores (contratos de adesão). Apesar da margem à arbitrariedade que todo o PL permite para atuação da FIFA, não é o caso de prever pena de prisão aos consumidores.
 
No entanto, o dispositivo prevê multa em caso de desistência do ingresso em qualquer hipótese (art. 33, III). Contudo, o CDC, em seu art. 49, garante o direito do consumidor de devolver qualquer produto comprado à distância (como através da internet) em até sete dias, sem necessidade de justificativa e sem qualquer tipo de multa.
 
Se pensarmos que a grande maioria dos ingressos da Copa será vendida pela Internet, há aqui um conflito direto de normas, que caso se mantenha, vai prejudicar milhares de torcedores.
E esses danos aos consumidores fatalmente deverão ocorrer caso a Lei da Copa seja aprovada como está. Especialmente pelo fato de criar um grande impasse judicial.
 
Com a omissão dos deveres e responsabilidades da FIFA – como o dever de indenizar os consumidores por danos morais e patrimoniais em caso de problemas com os produtos e serviços oferecidos -, e com o conflito da Lei Geral da Copa com outras leis nacionais, os problemas que surgirem deverão ser encaminhados ao Judiciário que, atualmente já sobrecarregado, não terá tempo hábil para processá-los e resolvê-los.
 
Assim, ainda que o torcedor posteriormente consiga reverter seu prejuízo na Justiça, já terá perdido o objeto central da sua relação de consumo, que é o jogo da Copa.
 
A onda de insatisfação será grande, antes e depois da Copa. E o ônus do problema ficará no Brasil, no Judiciário, nos órgãos de defesa do consumidor e no Governo, já que a FIFA, saciada, sairá triunfante pela porta da frente.
 
Dessa maneira, é imprescindível que haja a imediata revisão do Projeto de Lei Geral da Copa. Não para incluir mais exigências faltantes do extenso rol da FIFA, mas para excluir os artigos  que ferem diretamente o Código de Defesa do Consumidor e outras leis.
 
É preciso que seja garantida a meia entrada aos estudantes e idosos; que seja prevista a plena responsabilidade da Fifa por danos causados aos torcedores-consumidores;  que sejam proibidas áreas exclusivas de exploração comercial da organização na cidade; que seja garantido o respeito aos trabalhadores e pequenos comerciantes brasileiros evitando o qualquer tipo de monopólio no entorno dos estádios; e que se estabeleçam claramente os deveres e responsabilidades da Fifa durante o período de vigência da Lei.
 
Por isso, o Idec enviou essa semana uma carta à Presidente Dilma Rousseff, aos Ministros José Eduardo Cardozo e Orlando Silva, e a todos os deputados e senadores, reivindicando a imediata alteração do PL.
 
Além disso, iniciamos a campanha “Copa sem direitos não dá jogo”, para que a sociedade participe diretamente cobrando das autoridades governamentais e esportivas a realização da Copa sem qualquer tipo de retrocesso nos direitos sociais e garantias constitucionais.
A Copa é um evento importante para todos os brasileiros, que não precisam ter seus direitos violados para dela participar e torcer. O país do futebol não pode se rebaixar à FIFA. A FIFA é que tem que abaixar a bola.