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Direito de existir

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Conversamos com a historiadora Aline Nascimento, do ID_BR, sobre racismo nas relações de consumo

Em 20 de novembro, celebramos o Dia da Consciência Negra. E nós, do Idec, queremos falar sobre o racismo nas relações de consumo. Se você é negro, sabe bem do que estamos falando, pois já deve ter enfrentado várias situações discriminatórias em lojas, supermercados, shoppings etc., como a nossa entrevistada, a historiadora Aline Nascimento, membro do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR). Se você é branco, talvez não tenha dimensão da gravidade do problema, pois não sabe o que é ser, o tempo todo, considerado suspeito. Na entrevista a seguir, feita por telefone, Nascimento fala com propriedade sobre o tema, levanta pontos importantíssimos relacionados à pauta racial e nos toca profundamente ao dar exemplos de experiências de preconceito, discriminação e racismo, que ela conhece tão bem.

 

ALINE NASCIMENTO é historiadora, mestra em Relações Étnico-Raciais na área de políticas públicas pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet/RJ) e pesquisadora na área de patrimônio cultural, memória negra, raça, letramentos de reexistência, políticas públicas e Baixada Fluminense. É coautora dos livros Nas sombras da diáspora: patrimônio e cultura afro-brasileira na Baixada Fluminense e Achadouros: 400 anos de devoção da 1612-2012. No Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), está à frente do pilar de empregabilidade.

 

 

Qual a diferença entre racismo, preconceito e discriminação?

Aline Nascimento: O professor Silvio de Almeida, no livro Racismo Estrutural, explica essa diferença. O preconceito tem a ver com juízo de valor, por exemplo, quando xingamos alguém ou criamos um estereótipo para uma pessoa. Vários grupos experimentam preconceito. A discriminação ocorre quando uma pessoa, por conta de sua cor, de sua raça, de sua religião, de seu gênero é impedida de acessar um espaço, uma oportunidade de emprego etc. O racismo é a forma sistêmica da discriminação, voltada para grupos raciais, e se estrutura como uma relação de poder. Muitas pessoas dizem: "eu também sofri racismo quando alguém me xingou de A ou B". Isso não é racismo, é preconceito.

Criar um estereótipo para uma pessoa branca não impede que ela consiga um emprego, que ela entre num shopping e compre um produto. É por isso que quando falamos de racismo estamos falando de um grupo inteiro. Quando olhamos para o Poder no Brasil, quem ocupa o Executivo, o Judiciário, a liderança nas grandes empresas? São pessoas majoritariamente brancas. O racismo exclui pessoas negras da estrutura de poder.

No caso em que João Alberto Silveira Freitas, negro, foi espancado até a morte num supermercado da rede Carrefour, em Porto Alegre (RS), qual desses conceitos se aplica?

AN: Essa situação configura-se como racismo, porque tem a ver com o fato de ele ter vivido o estereótipo de que uma pessoa negra não tem dinheiro para pagar e é violenta. Criou-se uma leitura social de que homens negros cometem mais violência. Por conta disso, entende-se que, se ele tá vivendo aquilo, provavelmente ele fez alguma coisa.

Nossa jurisprudência diz que todo mundo é inocente até que se prove o contrário, porém, quando se trata de uma pessoa negra, primeiro ela é culpada e depois se prova que é inocente. Isso se aplica ao João, na história do Carrefour, ao rapaz acusado de furtar uma bicicleta no Rio de Janeiro, à jovem adolescente impedida de entrar em uma padaria no Ceará.

O João sofreu preconceito, pois por ser um homem negro, foi considerado suspeito, e discriminação, porque foi retirado do supermercado, como se seu corpo não pertencesse àquele espaço.

Na mesma semana do caso do João, teve o de uma família que foi ao shopping no Rio de Janeiro e entrou numa loja da Kopenhagen para comprar chocolate. Chegou uma família branca, e a mulher reclamou para a atendente que ela queria sentar, mas tinha uma família negra na única mesa "disponível". Então, é sobre o espaço que você pode ocupar. No caso do Carrefour, o espaço que cabia a João era o do silêncio, de não questionar a autoridade, que foi violenta. A violência foi contra um indíviduo, mas atingiu o coletivo, pois ativou um gatilho em muitas pessoas negras que já viveram situações iguaizinhas a essa. Quando não é só uma pessoa que experimenta uma situação discriminatória, são várias, ainda que não se conheçam, é racismo.

Quais seriam as razões para que, em 2021, os casos de racismo nas relações de consumo ainda sejam tão frequentes?

AN: Falar em razões é muito subjetivo, mas a pobreza no Brasil (o maior percentual de pobres é de pessoas negras) e a inexistência de oportunidades de emprego para pessoas negras impactam as relações de consumo, ou seja, impactam como essas pessoas são vistas quando elas precisam adquirir qualquer item. Se elas precisam comprar uma roupa ou alimentos, podem ser consideradas suspeitas e serem "perseguidas" no estabelecimento comercial.

Eu gosto de falar em viés inconsciente. Nós aprendemos a "limpar imagens" de um jeito inconsciente. Por exemplo, quando brincamos de "Onde está o Wally", limpamos todas as imagens para conseguir encontrar o menino de blusa listrada. Isso faz com que tenhamos uma leitura muito rápida de códigos de informação. Da mesma forma, criamos vários códigos para gerar a imagem da pessoa suspeita de um crime e de quem não é suspeito, quem é o presidente de uma empresa, quem é o cliente perfeito etc. E é pelo viés de memória que nos transportamos pelo tempo para entender como uma sociedade passou a pensar que o suspeito é uma pessoa negra e que um cliente em potencial é uma pessoa branca.

Posso afirmar que a minha experiência, como uma pesssoa negra, é diferente da experiência de uma pessoa branca por N motivos: eu vou ter de deixar minha mão sempre à vista, para que ninguém ache que eu tô colocando algo no bolso. E quando eu for pegar (ou guardar) alguma coisa no bolso eu vou falar alto o que eu estou fazendo, narrando o movimento.

No Ceará, a filha de um defensor público foi impedida de entrar numa padaria porque o segurança achou que ela era pedinte. Muitas outras meninas precisam saber que situações como essa acontecem para saber como se portar diante delas. Precisamos falar sobre isso, questionar essas experiências e alardear como o racismo acontece, para que essas situações não voltem a ocorrer.

Qual seria a melhor forma de o consumidor lidar com uma situação discriminatória?

AN: No caso da jovem no Ceará, foi a amiga dela, branca, que disse "isso é discriminação, você precisa contar para o seu pai". Porque o mais comum é a gente silenciar.

As empresas precisam proteger seus funcionários quando eles sofrem racismo e também se posicionar para o cliente falando de diversidade. Não significa dar uma palestra para o cliente sobre o tema, mas é importante que o espaço comunique minimamente por que a diversidade é tão importante.

É comum a pessoa que foi preconceituosa e discriminou alguém dizer: "Não foi a intenção, desculpa se você se ofendeu". Não é sobre eu me ofender. Por que parece que se eu não me ofendesse, tudo bem ela ter cometido a violência. Não conseguimos mensurar a intenção, mas podemos notar o efeito que produz. Então, tem de falar com o gerente e, se ele não escutar, procurar a Ouvidoria, se for uma empresa grande. Também é importante chamar a Polícia Militar quando for uma violência, e fazer uma denúncia à Secretaria de Direitos Humanos.

No caso da padaria no Ceará, não seria suficiente demitir o colaborador e dizer que foi uma situação individual, porque muitas vezes ele está apenas reproduzindo um direcionamento da empresa. É importante um compromisso dessa empresa para criar um ambiente mais inclusivo, que de fato acolha toda a população. É importante informar e esclarecer, pois a principal raiz do preconceito e da discriminação e, portanto, do racismo no Brasil, passa pela ausência de informação.

As empresas precisam ter Ouvidoria, uma área estruturada de diversidade e uma equipe que saiba acolher. E os clientes precisam saber com quem falar quando passarem por uma situação discriminatória. No caso de estabelecimentos pequenos, a pessoa pode conversar com o dono, que deve reunir a equipe, seja ela de duas ou cinco pessoas, para conversarem sobre o ocorrido e pensarem num atendimento cuidadoso à comunidade que consome o serviço.

Você acha que iniciativas de grandes empresas contra o racismo, motivadas pela morte do consumidor negro num supermercado Carrefour, podem coibir práticas discriminatórias/racistas?

AN: Para coibir essas práticas, o caminho ainda é longo. Mas essas iniciativas são uma forma de assumir a responsabilidade social diante da mudança e da transformação que a gente de fato quer no mundo. Falamos muito disso na nossa campanha "Sim à Igualdade Racial". Quando essas grandes empresas começam a comunicar mais e melhor a pauta racial e o direito à diversidade e inclusão, elas começam a impactar seus fornecedores e fomentar o debate. Quando a Magazine Luiza lançou o primeiro programa de trainee exclusivo para negros, as pessoas começaram a falar sobre o tema. Além disso, ela impactou a sociedade, ao criar mil vagas para profissionais negros. Quando mudamos a realidade de uma pessoa negra, estamos mudando a realidade de uma família inteira.

Pesquisa do Procon- SP, de 2019, revelou que 57% das vítimas de discriminação racial não tomaram nenhuma atitude. Por que o número de denúncias sobre esse tipo de crime é baixo?

AN: Primeiramente, porque pessoas negras não vivem para responder ao racismo. Elas vivem para existir, para serem o que elas quiserem ser. Elas respondem ao racismo só para garantir seu direito de existir. E elas naturalizam coisas, como a noção de que não vai dar em nada, de que tudo acaba em pizza.

Vamos pensar no jovem negro acusado de roubar uma bicicleta no Rio de Janeiro. Quando ele denuncia e mostra para todo mundo o que está acontecendo, é ele quem tem de provar que comprou a bicicleta, mesmo já tendo sido provado que ele não roubou, pois filmagens identificaram o verdadeiro ladrão.

Se tiver de denunciar todas as vezes que eu experimentar o racismo, eu não vivo. Eu vou ter de viver praticamente para isso. E a gente experimenta o racismo várias vezes ao longo de um único dia. Então, é sobre escolher as batalhas. Esse é o principal ponto para falar sobre denúncia.

De acordo com "A Voz e a Vez – Diversidade no Mercado de Consumo e Empreendedorismo", estudo inédito encomendado ao Instituto Locomotiva pelo Instituto Feira Preta, os negros no Brasil representam 54% da população e movimentam R$ 1,7 trilhão por ano. Embora a participação do negro na economia venha aumentando gradativamente, esse cenário não reflete em seus direitos, pois ele está submetido a uma lógica branca de mercado, que limita suas experiências. Por que isso acontece?

AN: As pessoas não veem o negro como um cliente em potencial, e não existem muitos produtos e serviços voltados para as necessidades da pessoa negra, que não são as mesmas de uma pessoa branca que mora numa área nobre do País. O negro que mora na periferia consome, mas de outra forma. Eu gosto muito de acompanhar os estudos do Feira Preta, porque trazem muito da realidade da periferia (de consumo e empreendedorismo negro), apesar de olhar bastante para São Paulo.

É possível mudar essa realidade?

AN: Eu acho que eu só acordo e levanto todo dia para trabalhar porque eu acredito que é possível mudá-la. E eu não quero ser apenas a pessoa que mostra o problema, mas a que aponta soluções. É possível fazer isso, como sociedade, se nos responsabilizarmos e olharmos de forma responsável para as mudanças que a gente precisa gerar no mundo urgentemente. Só dá pra fazer isso se for em conjunto. Não pode ser só a população negra falando sobre isso. Toda a sociedade brasileira tem de olhar para esses problemas.

Qual a força e o potencial de reivindicações como o movimento #SeNãoMeVejoNão Compro, no qual a população negra exige representatividade nas campanhas publicitárias?

AN: Olhar para as campanhas publicitárias não é mais suficiente. Queremos ver negros produzindo, queremos pessoas negras trabalhando por trás dos produtos, para entregar itens de qualidade e de acordo com as necessidades de seu grupo. Então, não é mais sobre se ver em propagandas. Essa era a pauta lá trás. Ela já se ampliou e, agora, é sobre a participação no processo criativo.