O rótulo pode ser melhor
Pesquisa identifica dificuldades dos consumidores para entender informações nutricionais e capta a opinião deles sobre o que pode mudar. A boa notícia é que é possível tornar o rótulo mais fácil e o Brasil caminha para isso
Quantidade de calorias, teor de sódio, gorduras totais, carboidratos. O consumidor brasileiro já está acostumado a encontrar essas informações na embalagem dos alimentos. Desde 2003, esses e outros dados são obrigatórios no rótulo dos produtos vendidos no país e, hoje, sua importância para garantir o direito de saber o que comemos é incontestável – ainda mais com o aumento da incidência do sobrepeso, o que torna urgente a adoção de hábitos mais saudáveis.
No entanto, não é novidade também que as pessoas não entendem tão bem assim as informações nutricionais no formato disponível hoje. Uma nova pesquisa realizada pelo Idec reforça esse fato: 39,6% dos consumidores disseram compreender parcialmente ou muito pouco a tabela nutricional. O levantamento foi realizado pela internet entre junho e julho deste ano, e o questionário foi respondido por 2.651 internautas. Considerando o pequeno grupo que disse não entender nada (0,4%), chega a 40% a parcela dos que admitem ter dificuldade de compreensão.
Os outros 60% informaram que entendem totalmente (25,1%) ou quase totalmente (34,8%) as informações nutricionais. Mas esse percentual elevado pode estar relacionado ao perfil dos consumidores que responderam à pesquisa: mais de 70% declaram ter ensino superior completo ou pós-graduação. Na população brasileira em geral, apenas 16% dos trabalhadores têm formação superior, segundo dados da Pesquisa Nacional de Domicílios (Pnad), de 2014. "É provável que esse resultado esteja superestimado. Se pessoas com esse perfil têm dificuldade de compreensão, imagine o restante da população", avalia REVISTA DO IDEC l SET-OUT 2016 17 Ana Paula Bortoletto, nutricionista e pesquisadora do Idec.
A dificuldade mais apontada pelos consumidores é a letra pequena (61%), à frente de aspectos mais complexos, como o uso de termos técnicos (lembrado por 51%) e a necessidade de cálculos (41,6%). O problema também foi relatado na pesquisa de opinião sobre o mesmo tema feita pelo Idec em 2013. Na ocasião, 28% dos participantes, em média, disseram que a visualização das informações era muito difícil. Para Bortoletto, essa reclamação dos consumidores não pode ser desprezada. "Parece que esse é um problema 'menor', mas, na verdade, é uma questão fundamental. Se as pessoas não enxergam direito as informações, como poderão compreendê-las?", destaca.
MUDANÇAS BEM-VINDAS
A pesquisa também consultou a opinião dos consumidores sobrealgumas mudanças que já vêm sendo discutidas para aperfeiçoar o rótulo dos alimentos. Uma delas é a declaração da quantidade de açúcar na tabela nutricional – hoje, só é obrigatório indicar o teor de carboidratos, grupo que inclui os açúcares. Para 98,3% dos participantes, o açúcar deveria constar do rótulo. O Idec levanta essa bandeira há anos.
Segundo Rodrigo Vargas, especialista da área de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável pelas regras de rotulagem de alimentos no Brasil, o órgão está atento a essa demanda e a inclusão do açúcar foi um dos principais motivos que levou a agência a criar um Grupo de Trabalho (GT) para propor melhorias nas regras de rotulagem nutricional, em 2014. O GT durou dois anos e contou com a participação de especialistas de diversos setores – do meio acadêmico, da indústria, do governo e da sociedade civil, entre eles o Idec.
Outra mudança bem avaliada por três em cada quatro participantes da pesquisa é a exigência da informação nutricional por 100 gramas do alimento. Hoje, ela é baseada em porções não padronizadas, que muitas vezes não condizem com a quantidade real de consumo do alimento (2,5 biscoitos, por exemplo). Essa forma de apresentar os dados exige que o consumidor faça cálculos e dificulta a comparação entre produtos de marcas diferentes. "A padronização da informação nutricional por 100g ou por embalagem foi um dos pontos que defendemos no GT da Anvisa", conta Bortoletto.
RÓTULO FRONTAL: A BOLA DA VEZ
Uma proposta que também teve forte apoio dos participantes da pesquisa foi o uso de algum tipo de rotulagem suplementar na parte da frente da embalagem: 93,3% avaliaram que essa forma de apresentação ajudaria muito a compreender as informações nutricionais e a fazer escolhas mais saudáveis. O objetivo do rótulo frontal é permitir que o consumidor identifique de forma mais rápida e fácil a composição de produtos não saudáveis, já que a tabela nutricional "completa" fica na parte de trás da embalagem.
No questionário, o Idec mostrou dois exemplos de rótulos frontais: um utilizado no Equador, que se baseia nas cores do semáforo (verde, amarelo e vermelho) para indicar se o alimento tem baixo, médio ou alto teor de nutrientes críticos, como sódio, açúcar e gorduras. Um modelo semelhante também é adotado no Reino Unido desde 2008. O outro exemplo apresentado foi o do Chile, que consiste em "selinhos" pretos que alertam se o produto tem teores elevados desses nutrientes críticos e/ ou de calorias. O modelo equatoriano foi preferido por 71,2% dos consumidores.
De acordo com a nutricionista do Idec, a exigência de informações simplificadas na parte da frente da embalagem é uma tendência mundial. "A medida está sendo discutida por muitos países e é apoiada por órgãos de saúde. A Opas [Organização Panamericana da Saúde] já listou a rotulagem frontal como uma meta no plano de ação para combater a obesidade infantil nos países da região, e uma recomendação semelhante da OMS [Organização Mundial da Saúde] deve sair em breve", informa Bortoletto.
Para ela, esse é um ponto que não pode ficar de fora na revisão das regras de rotulagem brasileiras. Segundo Vargas, da Anvisa, os rótulos frontais foram uma das principais sugestões feitas no GT da agência e sua adoção é uma possibilidade muito forte.
MODELO BRASILEIRO
Se já existe certo consenso quanto à necessidade de rótulo frontal, as dúvidas ficam por conta de qual modelo adotar. As experiências dos outros países servem de inspiração, mas também sofrem críticas. O rótulo do tipo semáforo nutricional, por exemplo, pode confundir em alguns casos. "Um refrigerante zero fica com selo verde em açúcar e calorias, mas isso não significa que ele seja saudável", ressalta a pesquisadora do Idec. A nutricionista Ana Carolina Fernandes, do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (Nuppre/ UFSC), concorda. "Pode ser difícil para o consumidor interpretar a informação. Um produto com quatro selos amarelos é melhor ou pior do que um com dois verdes e dois vermelhos?", questiona.
Para ela, é fundamental ter mais pesquisas sobre o tema. "Precisamos estudar melhor o entendimento do consumidor brasileiro para saber se [o rótulo frontal] vai realmente ajudá-lo a fazer escolhas mais saudáveis", pontua. O especialista da Anvisa acrescenta ainda que um modelo que deu certo em outro país não necessariamente vai funcionar no Brasil. "[O rótulo] deve ser adaptado às necessidades do brasileiro, que tem um nível de educação e de conhecimento nutricional muito diferente do de consumidores de outros países onde estudos estão sendo feitos", aponta Vargas.
Segundo Bortoletto, os especialistas que participaram do GT da Anvisa acreditam que o ideal é que o Brasil crie um modelo de rótulo frontal próprio e, preferencialmente, alinhado aos conceitos do Guia Alimentar para a População Brasileira, documento do Ministério da Saúde elogiado mundialmente. "A ideia é que o consumidor possa ter uma visão mais global da composição do alimento, não só dos nutrientes de forma isolada", declara a nutricionista. Uma das possibilidades é dar mais enfoque aos ingredientes. "Destacar os três primeiros ingredientes da lista na parte da frente da embalagem ajudaria o consumidor a saber o que está consumindo, pois são os que estão presentes em maior quantidade no produto", acredita Fernandes.
Outra sugestão da pesquisadora da UFSC é agrupar na lista os açúcares adicionados ao produto. Atualmente, todos os ingredientes são listados em ordem decrescente, mas os fabricantes utilizam diversas nomenclaturas para o açúcar, de forma a dispersá-los. "Se fossem agrupados, os açúcares poderiam aparecer em posições mais à frente da lista", observa.
PRÓXIMOS PASSOS
Os consumidores reclamam e a Anvisa reconhece que existem problemas e até já criou uma instância para debatê-los e propor soluções. O que falta para as mudanças saírem do papel? De acordo com Vargas, a área de alimentos da agência está elaborando um relatório a partir das contribuições recebidas durante o GT para avaliação da diretoria do órgão. "O GT ajudou muito a fazer os diagnósticos e a pensar em alternativas regulatórias. Agora, falta elaborar a estratégia para essas mudanças", diz. Ele afirma que o objetivo é incluir a revisão da rotulagem nutricional na agenda regulatória da Anvisa – a lista de temas prioritários da agência – do ano que vem.
No entanto, mudanças concretas ainda podem demorar muito, pois, em princípio, não dependem só da Anvisa. Atualmente, as regras de rotulagem de alimentos são unificadas entre os países do Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Venezuela) e as expectativas quanto ao prazo para debate sobre o tema no bloco não são nada animadoras. "O Mercosul discute há anos mudanças nas regras de rotulagem geral [que envolve aspectos como data de validade, peso etc.] e ainda não conseguiu concluir. Se for iniciar ciar o debate sobre o rótulo nutricional, que nem consta da agenda ainda, vai levar mais 10 anos", critica a nutricionista do Idec. "O Brasil precisa avançar e colocar os interesses de saúde pública acima dos econômicos e políticos nessa questão", ela defende.
Bortoletto lembra que a Anvisa aprovou recentemente uma norma sobre informação de ingredientes alergênicos de forma independente, sem passar pelo Mercosul. Mas o especialista da agência argumenta que a situação era diferente. "A alergia envolve um risco agudo à vida, e havia uma pressão social muito forte, com demandas judiciais. Esse contexto motivou a agência a iniciar um processo unilateral", afirma Vargas, que não descarta a possibilidade de que algo parecido seja feito no caso do rótulo nutricional. "Mas a decisão cabe à diretoria da agência", diz.
Para a nutricionista do Idec, o contexto internacional pode favorecer o Brasil a isso. O Codex Alimentarius, comissão ligada à Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e à OMS responsável por fixar normas globais sobre alimentos, vai discutir ainda este ano diretrizes para rotulagem frontal. "Essa iniciativa é muito importante porque a OMC [Organização Mundial do Comércio] tem as regras do Codex como referência. Assim, os países podem adotá-las sem receio de sofrer sanções no comércio internacional, pois a OMC está acima do Mercosul", ela explica. Além disso, no contexto interno, o plano é não deixar o assunto esfriar. "Nós vamos fazer muita pressão para a Anvisa aprovar logo essas mudanças", promete Bortoletto.
O QUE VOCÊ MUDARIA?
Perguntamos a especialistas e autoridades em nutrição: se pudesse fazer apenas duas mudanças no rótulo dos alimentos, quais seriam elas?
"Adotaria uma rotulagem frontal que destacasse os riscos que o alimento oferece à saúde, aumentaria o tamanho da letra da lista de ingredientes e padronizaria a sua nomenclatura".
Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec
"Faria a rotulagem frontal, que, pelas experiências que começam a surgir em outros países, tem uma linguagem muito mais direta, que facilita a escolha. Também tiraria qualquer tipo de personagem, pois o rótulo tem de se ater ao produto em si, não ser um veículo de publicidade".
Elisabetta Recini, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB)
"A mudança mais eficaz é a rotulagem frontal com advertências para alimentos processados ou ultraprocessados, que podem fazer muito mal [à saúde]. Também melhoraria a lista de ingredientes, pois, hoje, a indústria os combina e chama de 'mistura sabor chocolate', sem dizer quais são os componentes".
Carlos Monteiro, coordenador-científico do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP)
"Colocaria as informações nutricionais mais relevantes na parte frontal do rótulo e buscaria uma informação mais qualitativa, com o uso de cores ou outros mecanismos. Estudos mostram que essas medidas podem ajudar o consumidor a identificar mais rapidamente a informação nutricional".
Rodrigo Vargas, especialista da área de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
"Exigiria mais transparência na informação sobre o uso de gordura trans, tanto na tabela nutricional quanto na lista de ingredientes, por meio de uma nomenclatura única. Além disso, agruparia os açúcares na lista de ingredientes e incluiria essa informação na tabela nutricional".
Ana Carolina Fernandes, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (Nuppre-UFSC)