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Energia pré-paga: boa pra quem?

Energia pré-paga: boa pra quem?

A Aneel está discutindo a regulamentação do pré-pagamento de energia elétrica no Brasil. Mas, enquanto os riscos para o consumidor são muitos, as vantagens do sistema ainda não estão muito claras

IMAGEM DE DESTAQUE

Pagar primeiro e utilizar o serviço depois, até o limite dos créditos. O consumidor já sabe bem como isso funciona no celular, mas, no que depender da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o pré-pago passará a ser uma opção de acesso à energia elétrica também. Em julho, a Aneel abriu a Audiência Pública (AP) no 48/2012 para discutir a regulamentação do pré-pagamento para esse serviço, como já acontece na Argentina, África do Sul, Colômbia, Austrália, Inglaterra, em Moçambique, e muitos outros países. Pelo texto proposto pela agência, que fica aberto a contribuições até o fim de setembro (o Idec está preparando suas propostas), o sistema pré-pago de energia elétrica será opcional tanto para as distribuidoras quanto para os consumidores, ou seja, a empresa só oferta se quiser, e o usuário também pode aderir ou não a ele.

Quando se fala em pré-pagamento, a comparação com a telefonia móvel é inevitável, mas os dois serviços são bastante diferentes. “O consumidor pode ficar com um celular sem créditos, mas não pode ficar sem luz em casa”, resume Mariana Alves, advogada do Idec. “No caso da telefonia móvel, [quando o crédito acaba] o consumidor pode utilizá-lo parcialmente (não faz ligações, mas as recebe), enquanto o corte de luz é total. Além disso, o consumidor tem outras opções de acesso ao serviço de telefonia, como o telefone fixo ou público. No caso da energia elétrica, não há outra alternativa”, compara Nelson Fonseca Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).

Outra diferença crucial é que a energia elétrica é um serviço essencial à saúde e segurança dos consumidores, conforme dispõe a Lei no 7.783/1989 (artigo 10, inciso I). “O acesso à energia é parte do direito a uma vida digna e condição fundamental para o bem-estar do cidadão. A possibilidade de corte imediato de energia, que pode ocorrer no pré-pagamento, vai contra a noção de essencialidade do serviço”, ressalta Mariana. A Aneel discorda. “A suspensão do fornecimento por falta de pagamento já pode acontecer no sistema atual [pós-pago], com o agravante de que, muitas vezes, quando isso ocorre, uma dívida já se formou”, argumenta Marcos Bragatto, superintendente de Regulação e Comercialização de Eletricidade da agência. Porém, no sistema convencional de conta de luz, há algumas restrições para a desconexão, conforme disciplina a Resolução no 414/2010 da Aneel: as empresas são obrigadas a notificar o consumidor sobre a suspensão, que só pode ocorrer em até 90 dias depois do inadimplemento. “Com isso, o consumidor ganha tempo para regularizar sua dívida e evitar o corte, enquanto no pré-pagamento, quando os créditos expiram, o usuário pode ficar sem luz imediatamente”, compara Mariana. A proposta da Aneel prevê que as distribuidoras disponibilizem um “crédito de emergência”, cujo valor será descontado quando o consumidor fizer nova recarga.

Segundo o texto, o crédito emergencial deve ser de no mínimo 5 kWh, o que dá para pouco mais de um dia, considerando que o consumo médio mensal dos brasileiros é de 120 kWh, de acordo com os cálculos do presidente da Abradee.

PROBLEMA SOCIAL

Os consumidores de baixa renda são notadamente os mais vulneráveis ao corte de energia por falta de capacidade de comprar novos créditos. Mas, para as empresas, esse grupo pode ser justamente o “alvo” mais interessante para a oferta do pré-pago, a fim de reduzir os índices de inadimplência e de furto de energia (o chamado “gato”). “Será que o consumidor de baixa renda e que está endividado não será compelido a migrar para tal sistema?”, questiona Teresa Liporace, assessora de projetos do Idec. A Aneel minimiza o problema. “O prépagamento será uma opção para o consumidor. Em nenhuma hipótese a distribuidora poderá impô-lo, seja para a população de baixa renda, seja para qualquer grupo. E se o usuário não se adaptar a ele, poderá voltar para o sistema convencional de conta”, afirma Bragatto.

O superintendente da agência defende o pré-pago, alegando que com ele o consumidor consegue controlar melhor os gastos e adequar o consumo de energia às suas finanças. “O medidor [de pré-pagamento] terá um display que permitirá ao usuário acompanhar o consumo de energia e, quando os créditos estiverem se esgotando, emitirá sinais sonoros e visuais”, aponta. Mas, para Teresa, a necessidade de reduzir os gastos de acordo com a possibilidade de compra de créditos leva, na verdade, ao racionamento forçado de energia elétrica. “O consumidor pobre pode se ver diante da difícil escolha entre comprar comida ou créditos para ter luz em casa”, critica a assessora do Idec. “Além disso, o consumidor de baixa renda já tem uma rotina, com uma data mensal para o pagamento da fatura; com os créditos, o pagamento será fracionado e poderá comprometer o orçamento familiar no fim do mês”, acrescenta Mariana Alves.

VANTAGENS E DESVANTAGENS

De acordo com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, para que o pré-pagamento traga algum benefício aos usuários, é fundamental que haja descontos na tarifa em relação ao faturamento tradicional, assim como postos de venda de crédito de fácil acesso – para evitar que o consumidor percorra grandes distâncias para encontrar um –, além da possibilidade de recarga pela internet ou por SMS. Porém, nenhum desses pontos está garantido na proposta de regulamentação em análise.

Segundo os defensores do sistema de pré-pagamento, ele propicia redução de custos para a distribuidora (já que garante a receita, elimina os gastos com leitura e emissão de contas, entre outros) e, consequentemente, poderia levar à diminuição da tarifa de energia. No entanto, de acordo com a Abradee, as empresas têm redução de custos de um lado, mas aumento de outro (por exemplo, com a instalação de postos de atendimento e venda de créditos, que hoje não existem). Além disso, o presidente da Abradee comenta que há uma questão tributária a ser resolvida. Atualmente, há leis estaduais que estabelecem tributação progressiva para o consumidor de energia, de acordo com sua faixa de consumo. Em Minas Gerais (MG), por exemplo, quem gasta até 90 kWh por mês não paga Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). “Ainda não se sabe como será a tributação no caso da compra fracionada de energia elétrica; se o consumidor fizer várias recargas no mês e, no fim, ultrapassar os 90 kWh [no caso mineiro], em que momento o imposto será cobrado?”, questiona Leite.

O controle do consumo de energia, alardeado como um dos grandes benefícios do sistema, também é uma questão controversa, pois traz ao consumidor o ônus dessa gestão: enquanto com o pós- -pagamento há a comodidade de utilizar a energia e depois receber a conta em casa, com o pré é preciso se programar, ficar atento aos gastos e, dependendo da tecnologia utilizada, se deslocar para adquirir um cartão de recarga de créditos. Saiba mais sobre os tipos de tecnologia disponíveis no quadro acima.

O único caso em que o pré-pagamento parece realmente interessante é em locais em que a energia é usada esporadicamente, como casas de campo e de veraneio, por exemplo, pois eliminaria o gasto com a tarifa mínima de luz e possibilitaria a compra de energia elétrica apenas quando fosse necessário. Porém, a minuta da norma proposta pela Aneel prevê que as distribuidoras poderão encerrar o contrato caso o consumidor não adquira créditos no prazo de seis meses. “Essa previsão derruba a vantagem mais evidente do pré-pagamento, é desproporcional e pode ser considerada abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor”, aponta a advogada do Idec.

Todos esses poréns demonstram que, enquanto os riscos e os possíveis problemas do sistema pré-pago saltam aos olhos, as vantagens ainda não estão muito claras. Teresa Liporace, do Idec, finaliza com uma indagação “A quem interessa, afinal, essa regulamentação?”

IMAGEM DE DESTAQUE Caráter experimental

A Aneel autorizou três distribuidoras (Ampla, que atua na baixada fluminense; Celpa — Centrais Elétricas do Pará — e Eletrobras Amazonas Energia, ambas da região Norte) a experimentarem o sistema pré-pago de energia elétrica. Segundo Marcos Bragatto, da Aneel, o caso da Amazonas Energia, que implantou o sistema em comunidades isoladas da Região Amazônica, em 2009, está dando certo. As outras duas desistiram do projeto.

Como funciona o pré-pagamento de energia

Segundo Nelson Fonseca Leite, da Abradee, existem dois sistemas de pré-pagamento, o Standalone e o AMR (Automatic Meter Reading). A regulamentação proposta pela Aneel não define qual modelo será adotado, logo, cada distribuidora poderá escolher o que preferir. Conheça as características de cada um:

No modelo Standalone, o consumidor precisa adquirir cartão de recarga (smart card), semelhante ao de celular pré-pago, e inseri-lo no aparelho medidor (ou digitar um código numérico, que é decodificado e se transforma em créditos de energia elétrica). Esse sistema exige que a administradora tenha infraestrutura para comercializar os cartões.

Já o AMR é mais avançado, pois tem interface de comunicação em rede e permite à distribuidora enviar um “sinal” para o aparelho medidor com a quantidade de energia adquirida pelo consumidor. Como não depende de cartão, o crédito pode ser adquirido pela internet, em centrais de venda telefônica etc.

SAIBA MAIS

- Participe da Audiência Pública nº 48 em http://goo.gl/ktsUH, até 25 de setembro

- Deixe seus comentários sobre a energia pré-paga em nosso Banco de Dados de Monitoramento da Regulação http://goo.gl/jGYP5