Ação civil pública em perigo
Em meio a um imbróglio jurídico que se estende há mais de 20 anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pode, em breve, encerrar mais uma discussão que tenta questionar o já reconhecido direito dos consumidores a ressarcimento dos prejuízos causados pelos planos econômicos. O STJ sinaliza que, dentro de não muito tempo, pode acabar com a pretensão dos bancos de destruir os efeitos de uma ação civil pública (ACP) ajuizada pelo Idec contra o Banco do Brasil, em favor dos antigos poupadores do Plano Verão. Em 2009, este processo já havia sido decidido, definitivamente, em favor da causa defendida pelo Idec, mas voltou à pauta do judiciário em função de um recurso colocado pela instituição bancária.
Aliás, a estratégia dos bancos, como a Revista do Idec tem alertado, tem sido mesmo tentar rever tudo o que já foi decidido a favor dos poupadores, com recursos intermináveis e protelatórios.
Dessa vez, o "novo" julgamento do tema começou, no mês passado, porque o Banco do Brasil tenta limitar a aplicação da decisão da Justiça apenas aos associados do Idec residentes no Distrito Federal, onde o processo correu, em vez de poupadores de todo o país. O julgamento foi suspenso por pedido de vistas do ministro João Otávio de Noronha, mas a maioria dos juízes que se manifestou até o momento votou pela manutenção da abrangência da ação a todos os brasileiros prejudicados pela medida.
Apesar da sinalização de que os direitos já conquistados serão preservados, o Idec avalia que a sustentação que o Banco do Brasil faz nesse caso é perigosa, na medida em que atinge um importante instrumento jurídico como a ação civil pública. "Parece que os bancos não estão querendo aceitar a regra do jogo, que vale para todos os demais brasileiros", salienta o advogado Walter Faiad, representante do Idec no julgamento ocorrido em junho. "Eles querem modificar uma decisão em que já houve transitado em julgado, o que é expressamente proibido pela Constituição Federal."
O fato de tentar limitar o alcance de um mecanismo que deveria servir para garantir direitos de forma coletiva é um dos problemas que também preocupa neste caso, além da demora em ressarcir os consumidores. "A questão é complicada porque entra na mira também a ação civil pública. Os bancos podem acabar com um direito que está na lei, talvez o mais importante instrumento de acesso a pessoas carentes ao Poder Judiciário", alerta o advogado.
Ameaça não superada
Recentemente, a eficácia da ação civil pública esteve sob forte ameaça. Trata-se do julgamento sobre o início da contagem dos juros de mora na execução de uma ACP, ocorrido em maio. O caso tratava de uma ação sobre planos econômicos também, mas uma decisão contrária prejudicaria todas as ações civis públicas que envolvessem algum tipo de pagamento individualizado, independentemente do assunto tratado.
Felizmente, a decisão do STJ garantiu que o cálculo dos juros de mora de qualquer ACP ocorresse desde o momento em que o processo dá entrada na Justiça. No caso dos planos econômicos, em que a maioria das ações foi movida há cerca de 20 anos, isso faz toda a diferença na quantia que os bancos devem pagar aos poupadores.
Porém, apesar da vitória, não está descartada a hipótese de que os bancos queiram "ressuscitar" a questão novamente. Desde que a decisão foi proferida, as instituições financeiras deram declarações indicando que recorreriam da sentença. "Como a vitória no STJ foi apertada, com apenas um voto de diferença, essa é uma questão que ainda não pode ser dada como superada", afirma Faiad, "Mas estamos confiantes, pois a Corte deu claros sinais de que não cederá às pressões dos números fictícios apresentados pelos bancos", complementa.
Decisão do STF como artifício
Além dessas investidas no STJ, o Banco do Brasil e outras instituições bancárias estão se valendo de um caso recentemente tratado no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar deslegitimar o caráter coletivo da ação civil pública. Trata-se de uma decisão a respeito dos beneficiários de uma ação movida por uma associação de promotores que buscava aumento salarial, situação que não tem qualquer relação com ação civil pública e jamais poderia ser aplicada ao caso dos poupadores.
Embora seja responsável por questões constitucionais, o Supremo tem o poder de vincular de modo hierárquico suas decisões às outras instâncias do sistema judiciário no país. Ou seja, uma decisão tomada pelo STF passa a valer para todos os outros processos do tipo em todos os outros tribunais do país.
Assim, os bancos passaram a argumentar, com base nesse posicionamento recente do STF, que, nas ações civis públicas sobre planos econômicos movidas por associações (como as do Idec), as decisões abrangeriam apenas os seus associados que tiverem autorizado expressamente sua representação no processo. Acontece, porém, que a decisão do Supremo envolve uma ação ordinária (comum) – e não ACP – em que o STF determina com clareza que sejam beneficiadas apenas as pessoas associadas à entidade que os representou no processo. Objetivamente, trata-se de uma manobra jurídica para tentar se livrar do pagamento aos poupadores. "Os bancos partem de um pressuposto errado, querendo induzir o Superior Tribunal de Justiça em erro. Realmente, nas ações ordinárias concordo que só devem ser vinculadas na decisão final as partes envolvidas, o que jamais pode acontecer em uma ACP. Do contrário, seria o fim da defesa coletiva no país", afirma Walter Faiad.
"Os bancos se valem também da distância do cidadão comum do sistema judiciário", acrescenta o advogado Márcio Casado, responsável por defender os poupadores no julgamento de maio sobre os juros de mora no STJ. Ele endossa a tese de que o argumento usado para defesa do Banco do Brasil, na verdade, não passa de um artifício. "O sistema democrático não funciona assim. Não podemos pensar que existem pessoas ou instituições acima da lei."
Vale lembrar que o processo sobre o Plano Verão contra o Banco do Brasil já deveria ter sido encerrado em 2009, mas os réus não param de recorrer para postergar a decisão da Justiça. "Tem de haver uma limitação para o excesso de demandas. Do ponto de vista do sistema e da segurança jurídica, os processos têm de acabar em algum momento. Alguns pleitos são tão descabidos que as Cortes poderiam começar a considerá-los de má fé", encerra.
A importância da ação civil pública
A ação civil pública é um instrumento processual, previsto na Constituição Federal, destinado à defesa de interesses difusos e coletivos, regulamentada pela Lei nº 7.347, de 1985. Essencialmente, é o mecanismo jurídico criado para garantir direitos com o objetivo de priorizar a coletividade.
Uma ACP pode ser ajuizada pelos Ministérios Públicos, pela União, Estados e Municípios, bem como autarquias de governo, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e também associações constituídas há mais de um ano.
No caso dos processos movidos pelo Idec sobre os planos econômicos, como o que está em questão agora no STJ, a ACP é utilizada de modo a envolver a defesa dos interesses de todos aqueles poupadores que foram prejudicados pela perda no rendimento das cadernetas de poupança. Isto é, trata-se de uma ação ajuizada essencialmente para a defesa de interesses coletivos.
Além disso, por seu caráter, as ACPs, de certo modo, agilizam a atuação do Poder Judiciário porque reúnem em um único processo o interesse de vários cidadãos que poderiam prestar várias queixas individuais à Justiça em vez de uma única ação coletiva. "Em uma só ação, você consegue resolver o problema de milhões de pessoas", explica o advogado Márcio Casado.
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