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Cuscuz: símbolo afetivo do Nordeste e de todo o Brasil

O cuscuz de milho ganhou o coração dos brasileiros, mas cada lugar, no país e no mundo, tem seu cuscuz, feito com diferentes ingredientes. Conheça essa história!

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Atualizado: 

10/09/2024
Cuscuz: símbolo afetivo do Nordeste e de todo o Brasil

É muito provável que ao ler cuscuz, naturalmente a sua mente visualize a iguaria feita com flocos de milho. Esse é o único tipo possível de cuscuz? Como ele chegou ao Brasil, agradou milhares de paladares e se tornou uma identidade do povo nordestino?

Essa será uma viagem saborosa e riquíssima pela história, vem com a gente!

 

Peraí, o cuscuz não é 100% original do Brasil?

Não, suas origens são africanas e vamos contar como ele chegou à mesa das famílias brasileiras. Mas tudo tem início na Era Comum, onde povos deixaram de ser nômades e passaram a se estabelecer em locais fixos, iniciando o cultivo de grãos. 

Após colher e selecionar as melhores sementes, surgiu a necessidade de encontrar maneiras de preparar os grãos para torná-los mais saborosos. Assim, uma técnica rudimentar foi desenvolvida para triturar os grãos, utilizando-se da pedra mó.

Vamos pular para o registro histórico onde muitos creditam o começo do consumo de cuscuz. A parte Norte e Noroeste da África, chamava-se Magrebe, território que compreende atualmente os países: Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia. 

Nessa área habitavam o povo berberes, e evidências arqueológicas apontam que eles preparavam grãos com água. Eram usados: semolina, arroz, farinha de trigo, sorgo e tinham uma textura granulada ao ser consumidos.

Então, por volta do ano 711, os berberes, invadiram a península Ibérica (um trecho de terra na parte mais ocidental do continente europeu, situada entre o Mar Mediterrâneo e o Oceano Atlântico) e popularizaram alguns hábitos e costumes culturais para portugueses, franceses e espanhóis.

E assim, por meio dos portugueses, e, posteriormente, dos africanos, o cuscuz chegou ao Brasil. 

Mas como era feito somente com semolina, que é um tipo de farinha de trigo, que não é uma espécie natural do nosso país e naquela época era caro e de difícil acesso, em solo brasileiro o cuscuz foi logo substituído pela farinha de milho, abundante no Brasil e amplamente consumida pelos povos indígenas. 

 

E afinal de contas, o que é cuscuz? 

Como pudemos constatar na origem do prato e como também veremos a seguir, o cuscuz não é apenas de milho. Mas podemos afirmar que este nome diz mais sobre o modo de preparar grãos e cozinhar. 

Cuscuz é aroma e sabor. É um preparo milenar que segue sendo perpetuado por povos diferentes mas com formas muito parecidas de executar os mesmos alimentos. 

Podemos então considerar que aqueles primeiros grãos citados lá em cima na história evolutiva que eram triturados com o uso da pedra mó, foram os primeiro exemplares de “couscous”.

E diversos autores brasileiros, em suas várias formações, afirmam em seus escritos, como aqui a escritora cearense Rachel de Queiroz diz: “sua receita dá o modo de fazer e de cozinhar o cuscuz. Feito de milho seco, que ficou de molho e depois foi moído. Depois de descansar, essa massa é levada à cuscuzeira que já tem água no fundo, e deixa-se cozinhar no vapor até a massa ficar bem cozida. Sente-se isso pelo cheiro de milho cozido”.

 

Porque cuscuz se chama cuscuz? 

A nossa panela de cozinhar cuscuz, a cuscuzeira, também tem influência no recipiente árabe onde era cozido o couscous. 

O tagine é o nome do recipiente de cerâmica que os povos berberes usavam para cozinhar os grãos. A vasilha é pontiaguda, facilitando uma circulação maior de ar na parte superior, assim como acontece na nossa cuscuzeira. 

E por fim, em berbere, a palavra “k'seksu” vem do som do vapor na cuscuzeira durante o cozimento. A palavra couscous é a versão francesa de “k'seksu”, criada pelos franceses que colonizaram a Argélia.

 

O cuscuz é um prato presente na culinária de várias regiões do Brasil?

Sim, ele representa a adaptação cultural de uma iguaria africana que, ao chegar ao Brasil, foi influenciada por várias populações locais. 

Esse alimento passou por um processo de ressignificação, refletindo a diversidade gastronômica de cada região do país. 

Assim, uma técnica tradicional foi reinventada, dando origem a novos sabores, formas e narrativas culinárias.

Por isso, 

  • O cuscuz nordestino nasce muito parecido com esse cuscuz original africano, com a farinha hidratada ganhando complementos saborosos, como charque, carne seca, jabá, ovo e manteiga, mas também doce, com adição de leite de coco. Atende mais como um acompanhamento de outros pratos e é bem soltinho.
  • Em São Paulo, o cuscuz adquiriu novas variações. Como observou o escritor Luís da Câmara Cascudo, ele passou a ser preparado com a "mistura de carnes, crustáceos e legumes", algo pouco comum no Brasil até então. No território dos bandeirantes, conhecidos por desbravarem o interior do país, o cuscuz tornou-se uma refeição prática para viagem, composto por ingredientes como farinha de milho, carne de porco, peixe (principalmente bagre), cebola e pimenta. 
  • Já no do Rio Grande do Sul, o cuscuz leva o nome de campeiro e o prato inclui charque, carne e linguiça.
  • Em Minas Gerais, Maria Stella Libânio Christo, no livro “Fogão de Lenha Quitandas e quitutes de Minas Gerais" expõe duas receitas de cuscuz. A primeira leva “fubá mimoso”, cozinhado no vapor, em cuscuzeiro untado com manteiga. E a segunda receita se chama “Cuscuz torrado”, usa farinha de trigo e fubá mimoso, misturadas a uma banha de porco derretida. Mas este é assado no forno.
  • Em Santa Catarina, destaca-se o bijajica, um cuscuz à base de mandioca, amendoim cru e açúcar mascavo, cozido no vapor da cuscuzeira. 
  • No Paraná, existe a mandipuva, feita com mandioca fermentada e espremida, temperada com sal, erva-doce e canela, ou acrescida de amendoim, ovos e banha de porco. 
  • Na Bahia, há uma variação que utiliza inhame e farinha de mandioca. 
  • No Maranhão, o prato é preparado com flocos de arroz e tapioca.
  • No livro de receitas de Maria Letícia Monteiro Cavalcanti, “História dos sabores pernambucanos", encontramos três receitas de cuscuz. A primeira se chama “cuscuz de Massa de Mandioca", a seguir vem a receita de “cuscuz”, feito com milho e, por fim, “Cuscuz com coco”, feito de fubá de milho.

 

Existem outros preparos de cuscuz na África?

Por lá a cultura do cuscuz segue viva tanto quanto aqui e no Norte da África, por exemplo, ele é frequentemente servido com ensopados de carneiro. 

Já na Argélia, é comum acompanhá-lo com molhos de legumes, e em algumas regiões, com peixes, frutos do mar, aves e até mesmo carne de camelo. 

Há também versões em que o cuscuz é cozido com patas de carneiro ou bezerro.

E uma outra forma comum dele ser consumido por lá é com a adição de frutas secas, como o prato chamado "seffa", uma preparação adocicada com mel, passas, manteiga, canela, flor de laranjeira e amêndoas escaldadas, com uma textura solta, semelhante à farofa.

 

2020: o ano em que o cuscuz foi eleito patrimônio imaterial

Antes de chegarmos efetivamente ao merecido título, é importante destacar o peso que o cuscuz tem no Nordeste e em outras partes do mundo. 

Além de saboroso e atrativo, o cuscuz é considerado um prato que oferece sustento para enfrentar o cotidiano, reafirmando a identidade do povo nordestino.

O consumo de cuscuz na Argélia está profundamente ligado a fatores socioculturais e religiosos, influenciando tanto sua preparação quanto os momentos e locais onde é consumido. Isso por acaso não tem muita semelhança com o jeito de viver em torno do cuscuz aqui no Brasil? 

Esse prato é símbolo de convivência e compartilhamento, fortalecendo laços de amizade e alianças familiares, além de representar solidariedade, reconciliação e hospitalidade, valores essenciais para a coesão de qualquer comunidade.

Talvez por essa razão, em 2018, quatro dos países que compunham o Magrebe — Marrocos, Mauritânia, Argélia e Tunísia — submeteram à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) um pedido para que o "couscous" fosse reconhecido como Patrimônio Imaterial da Humanidade. 

Em dezembro de 2020, foi concedido o título de Patrimônio Cultural da Humanidade aos conhecimentos e práticas relacionados ao preparo do cuscuz.