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RTE: Distribuidoras lucram e consumidores pagam a conta?

Além de uma reflexão específica sobre os pedidos de RTE, o caso exige uma análise profunda sobre a adequabilidade do modelo do setor e sua necessidade de modernização

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Atualizado: 

05/10/2020
Clauber Leite

 

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Artigo publicado no Canal Energia, em 05/10/2020

São constrangedores os pedidos de recomposição tarifária extraordinária (RTE) das distribuidoras de energia elétrica relativos aos efeitos da pandemia de covid-19 sobre suas contas. Enquanto a economia brasileira se deteriora, os níveis de desemprego atingem níveis alarmantes e o pequeno consumidor segue com dificuldades para sobreviver, os resultados financeiros positivos de empresas da cadeia setorial deveriam por si só servir de evidência de que alguma coisa está muito errada no esforço do segmento de repassar, para os consumidores, eventuais custos atrelados à pandemia.

Além de uma reflexão específica sobre os pedidos de RTE, o caso exige uma análise profunda sobre a adequabilidade do modelo do setor e sua necessidade de modernização: um modelo que penaliza os consumidores justamente nos momentos mais críticos e permite que decisões sejam tomadas em seu nome sem o adequado tratamento precisa ser repensado. Temos de avançar para que as regras setoriais reflitam o fato de que o consumidor é a única razão de ser do setor elétrico.

Hoje a realidade é justamente o contrário, como evidencia o repasse das contas da crise de covid-19 às tarifas: mais uma vez os consumidores do ambiente regulado de contratação (ACR) são o elo de ajuste do setor elétrico. Nesse contexto, não só a análise dos pedidos de RTE tem de ser feita pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) da maneira mais cautelosa possível, considerando as demais consequências da crise na sociedade, como é preciso avançar com agendas que têm demorado a caminhar no setor e que, se já tivessem sido aprovadas, teriam atenuado de maneira significativa os efeitos da atual crise e de outras que ainda estão por vir.

No que diz respeito aos processos de RTE, o regulador tem de exigir a adequada comprovação de eventuais desequilíbrios dos contratos de concessão. Na análise das informações, é fundamental que se separem os efeitos específicos da pandemia e o que se deve a problemas administrativos das próprias concessionárias ou a alterações naturais do mercado, como as migrações de consumidores ao mercado livre. Além disso, todas as informações sobre o assunto devem ser apresentadas e discutidas com a sociedade com total transparência e qualquer decisão tem de considerar a modicidade tarifária, que ganha ainda mais relevância neste momento de grave crise.

Quanto à revisão do modelo setorial, é fundamental que o regulador tome atitudes proativas em favor da modernização do setor, incluindo a adoção de medidas como a separação completa das atividades de distribuição e comercialização de energia combinada à abertura do mercado para todos os consumidores de maneira coordenada. Também são necessários dispositivos que forneçam maior flexibilidade às distribuidoras para gerir as alterações em seus mercados, além de uma alocação correta dos riscos, custos e benefícios setoriais, em linha com o previsto no Projeto de Lei do Senado 232, de 2016.

Do ponto de vista dos custos que penalizam as tarifas de energia, é urgente rever e reduzir, de maneira mais acelerada, os subsídios incidentes no setor. Isso vale tanto para a substituição dos subsídios às fontes renováveis que negociam energia no mercado livre por alternativas que valorizem seus atributos ambientais, como o fim do subsídio à micro e minigeração distribuída – se os subsídios para a expansão dos projetos de GD ainda forem considerados necessários, deveriam ser cobertos por outras fontes de recursos, como o Tesouro Nacional.

Ainda com relação à redução de subsídios, é necessário antecipar a descontratação de térmicas caras, pouco eficientes e poluentes, o que também contribuiria para a redução de custos setoriais de maneira geral, bem como uma completa revisão da matriz cara e ineficiente de geração a diesel nos sistemas isolados, com sua substituição por projetos com fontes renováveis mais econômicos. A suspensão e o descomissionamento das obras de Angra III completam o cenário para que os custos setoriais futuros favoreçam a modicidade tarifária.

Vale observar, que apesar de esses aspectos não serem alvo da consulta pública sobre a RTE, têm de ser priorizados na agenda, pois poderão aliviar os impactos das condições adversas do setor elétrico sobre os consumidores residenciais, na medida em que ajudam a reduzir custos e promovem maior eficiência setorial.

Por fim, qualquer discussão relativa às condições do setor elétrico associadas à pandemia não pode deixar de considerar as condições da conta-covid, em que os consumidores foram chamados a fazer um empréstimo que não necessariamente lhes interessava com altas taxas de juros. Além da falta de transparência no processo, não houve qualquer esforço das diferentes instâncias governamentais em favor da injeção de recursos do Tesouro para socorrer o setor, evitando o repasse aos pequenos consumidores.

Todos esses esforços são necessários para se evitar que, mais uma vez, os consumidores sejam os grandes penalizados pela crise, enquanto a acionistas de empresas do setor celebram lucros que, mesmo eventualmente inferiores aos previstos, são absurdos numa situação crítica como a atual. Hoje, não só os usuários da energia são o elo mais frágil da cadeia setorial, como têm de assumir custos e riscos que fogem totalmente do seu controle. A reversão do quadro atual é o reconhecimento de que o consumidor é a principal razão de ser do setor elétrico e não pode mais funcionar apenas como seu tomador de recursos de última instância.

*Clauber Leite é coordenador do Programa de Energia e Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

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