Bloco Associe-se

Associe-se ao Idec

Overbooking, tarifas e os direitos do novo consumidor do transporte aéreo

separador

Atualizado: 

13/10/2017
Lucas Cabette

Nos últimos oito anos, o número dos consumidores dos serviços de aviação civil teve um aumento significativo no Brasil.  De acordo com dados coletados em recente estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, o número de passageiros cresceu a uma taxa média anual de 10,2% ao ano e saltou, em termos absolutos, de 71,22 milhões no ano de 2003, para 154,32 milhões em 2010 [1].

Segundo o Instituto, o aumento da demanda não foi acompanhado de um incremento proporcional na capacidade dos principais aeroportos [2], nem de um crescimento do número de aeronaves em atividade [3].

De acordo estudo, o crescimento do mercado teria sido viabilizado, em grande medida, pela adoção de novas práticas e tecnologias pelas Companhias aéreas. Tais práticas teriam aumentado o índice de ocupação efetiva das aeronaves e, consequentemente, reduzido o custo das passagens aéreas [4].

O resultado de muitas dessas práticas visando à redução de custos já pode ser sentido pelo consumidores.  Direitos e comodidades que, antes, estavam incluídos no preço do serviço de transporte aéreo, passaram e ser cobrados de forma separada e tiveram seu padrão de qualidade/conforto, em muitos casos, reduzido.  Tais mudanças têm gerado reclamações por parte dos usuários mais habituados a circular pelos aeroportos [5].

A princípio, a cobrança apartada por serviços e comodidades acessórios transporte aéreo de passageiros não é, por si só, prática ilegal.  Embora se trate de um mercado regulado, sujeito a fiscalização e controle por parte da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), vigora, para o setor, a regra da liberdade tarifária (artigo 49 da Lei 11.182/2005).

Não se pode perder de vista, entretanto, que a prestação dos serviços de transporte aéreo está sujeita às regras do Código de Defesa do Consumidor (artigos 2º e 3º, parágrafo 2º, da Lei 8.078/1990).  Dentro desta perspectiva, tem se verificado que, pela forma como são anunciadas e realizadas, muitas das novas práticas relativas ao mercado de aviação civil são, realmente, abusivas.

A primeira dessas práticas abusivas consiste no chamadooverbooking: a venda passagens acima da capacidade da aeronave para um determinado voo.  A prática costuma ser justificada pelas companhias aéreas com o argumento de que, em geral, muitas das passagens vendidas acabam sendo canceladas ou seus titulares não comparecem.  A venda de passagens acima do número assentos efetivamente existentes visaria a evitar que o lugar dos “desistentes” permanecesse desocupado.  Isso permitiria uma ocupação mais eficiente das aeronaves, com uma consequente redução dos custos da passagem.

Embora não se ignore a força do argumento econômico das companhias aéreas; do ponto de vista jurídico, a prática dooverbooking é absolutamente ilegal. Consiste na venda de serviço que sabe-se não estarem disponíveis, negando informação essencial do consumidor e colocando-o em situação de risco, em violação ao princípio da boa-fé objetiva (artigos 6º, incisos III e VII, e 51, incisos IV e XIII).

Caso a companhia aérea, devido à prática de overbooking, recuse o embarque de um passageiro, deverá informá-lo por escrito do motivo da preterição, conforme determina o artigo 10 da Resolução Anac nº 141/2010 [6].  De acordo, ainda, com a mesma resolução, a empresa deverá, nesse caso, oferecer opções de reacomodação em outro voo, reembolso do preço da passagem ou  realização do serviço por outro meio de transporte (artigo 12, incisos).

É importante ressaltar que tais modalidades de ressarcimento material, previstas em norma administrativa, não têm o condão de mitigar o dever de indenização integral previsto na Constituição (artigo 5º, incisos V e X), no Código Civil e no CDC.  A Resolução apenas assegura formas específicas de compensação que devem ser disponibilizadas ao consumidor no aeroporto, no momento em que seu embarque é preterido.  Ainda que o consumidor aceite e lhe seja efetivamente concedida a reacomodação em outro voo ou a devolução do dinheiro da passagem, por exemplo; terá o direito de pleitear a indenização por danos emergentes (inclusive morais) e lucros cessantes advindos do atraso ou do cancelamento da viagem.

Muitas das práticas abusivas têm sido verificadas, também, na composição dos preços do serviço de transporte aéreo.

Se um serviço ou direito acessório é cobrado separadamente (como, por exemplo, seguros) deve-se dar a opção clara ao consumidor de não contratá-lo.  Impedir o consumidor de dispensar o serviço, ou induzi-lo a acreditar que não pode fazê-lo, configura venda casada, prática vedada pelo CDC (artigo 39, inciso I).

Caso um direito ou serviço seja indissociável da prestação do serviço de transporte aéreo, seu preço deve ser incorporado ao preço da passagem.  Se a companhia anuncia um determinado preço como sendo o custo da passagem, não pode incluir acréscimo obrigatórios no momento de efetivação da compra.  Anunciar preço diferente daquele que necessariamente será cobrado (devido à incidência de “taxas” obrigatórias) consiste em publicidade enganosa e dá ensejo ao cumprimento forçado da oferta, pelo preço inicialmente divulgado (artigos 30, 31, 35, 37, parágrafo 1º e 51, parágrafo 1º, inciso II, do CDC).

Em um mercado quem vem se tornando mais competitivo, a maioria da população só tem a ganhar com a adoção de práticas comerciais que tornem viajar de avião mais barato, democratizando o direito à livre circulação em um país de proporções continentais como o Brasil.

Tais práticas, no entanto, devem observar os limites impostos pela Constituição e, dentre outras normas, pela Lei 8.078/1990, editada para tornar relações entre desiguais mais justas e transparentes.  O acesso de mais consumidores a um determinado mercado não pode se dar ao arrepio de regras mínimas para exercício da cidadania.


[1] CAMPOS NETO, Carlos Alvares da Silva e SOUZA, Frederico Hartmann de, Aeroportos no Brasil: investimentos recentes, perspectivas e preocupações, Nota Técnica nº 5 da Diretoria de Estudos Setoriais, Brasília, Ipea, 2011, disponível no endereço em 18.4.2011, pp. 8/9 .

[2] Ibidem, pp. 10/12.

[3] Ibidem, pp 9/10.

[4] Ibidem, pp 9/10.

[5] Nesse sentido:SAMPAIO, Nadja, Taxas irritam clientes e encarecem passagens, O Globo, Economia, 10 de janeiro de 2011; e Procon vai autuar TAM por ''assento-conforto'', O Estado de São Paulo, Metrópole, 5 de abril de 2011, disponível no endereço <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110405/not_imp701843,0.php> em 20.4.2011.

[6] Que dispõe sobre as Condições Gerais de Transporte aplicáveis aos atrasos e cancelamentos de voos e às hipóteses de preterição de passageiros e dá outras providências.Disponível no endereço <http://www2.anac.gov.br/transparencia/pdf/resolucao%20-%20Condicoes%20gerais%20de%20transporte.pdf>, em 20.4.2011.