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18/09/2014
Atualizado:
18/09/2014
Regras frouxas permitem que indústria de alimentos coloque na embalagem "zero" gordura trans, quando, na verdade, o produto pode conter o ingrediente
Desde 2004, a OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda a eliminação total da gordura trans da alimentação, tamanho são os seus malefícios à saúde. Mesmo assim, as regras de rotulagem de alimentos no Brasil permitem que seja omitida até 0,2 g dessa gordura nas informações nutricionais. Ou seja, um produto pode conter até 0,2 g desse nutriente por porção e dizer, com grande destaque na embalagem, que tem "zero" gordura trans.
Para verificar como é feita a comunicação sobre a presença desse tipo de gordura, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) avaliou os rótulos de bolachas e biscoitos doces e salgados - categorias conhecidas por empregarem gordura trans em suas fórmulas.
Foram avaliados 50 produtos: 40 biscoitos doces (entre bolachas recheadas, cookies e outros tipos) e 10 salgados, tipo cream cracker. Os casos mais emblemáticos foram os de uma bolacha doce e de um cookie com gotas de chocolate que informam conter "0 g" de gordura trans na tabela nutricional, mas, quando se confere a respectiva lista de ingredientes, entre os principais componentes usados está a "gordura vegetal hidrogenada" - o que é praticamente uma prova de que os produtos contêm, sim, gordura trans.
Tecnicamente, existem duas possibilidades: poderia se tratar de gordura vegetal hidrogenada "totalmente" ou "parcialmente". A hidrogenação "total" não gera gordura trans, no entanto, não é utilizada em alimentos. Ou seja, por eliminação, só pode se tratar da parcialmente hidrogenada, que pode conter teores de até 50% de trans.
Outros casos relevantes foram os de biscoitos cream cracker que informam conter 0 g de gordura trans em uma porção de 30 g de biscoito, porém, computam 0,2 g desse mesmo nutriente no pacote inteiro, de 100 g. Além disso, a versão integral de um desses cream cracker, com lista de ingredientes praticamente idêntica à tradicional, traz somente a informação baseada na porção de 30 g - os dados relativos ao pacote inteiro, da qual provavelmente constaria a gordura trans, não são informados na embalagem.
Para Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec responsável pela pesquisa, o problema de a informação nutricional se referir apenas à porção é que, muitas vezes, o consumidor não limita o seu consumo a essa quantidade. "No caso de biscoitos, a porção indicada pelo fabricante, em geral, é de 30 g, o que corresponde a de três a cinco biscoitos."
É comum que as pessoas comam mais do que isso, seja de uma vez só ou ao longo do dia", comenta. "Dessa forma, pode-se ingerir uma dose significativa de gordura trans sem nem saber", complementa.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), responsável pelas regras de rotulagem, defende-se dizendo que a porção indicada fornece uma orientação ao consumidor sobre "a quantidade do alimento que seria compatível com uma alimentação saudável" e que uma quantidade diária de 100 g de biscoito "claramente não seria recomendável".
Outros dados importantes
Além desses casos mais contundentes, o levantamento do Idec encontrou outro problema em praticamente todos os produtos pesquisados.
A falta de detalhamento, na lista de ingredientes, do tipo de gordura usada. Em inúmeros casos, a informação disponível é apenas de utilização de "gordura vegetal", sem especificação de qual tipo. O que pode parecer um mero detalhe faz toda diferença. Isso porque o subtipo "interesterificada" da gordura vegetal é formado a partir de um processo em que não há geração de gordura trans - ao contrário da "hidrogenada", que, como dito, na indústria de alimentos sempre envolve algum teor de trans.
"A omissão prejudica a clareza da informação e, consequentemente, interfere no direito de escolha do consumidor", critica Bortoletto.
Diante desses problemas, a Anvisa diz que está conduzindo uma revisão do regulamento de rotulagem de alimentos e que, entre as propostas, pretende exigir a denominação dos óleos e gorduras na lista de ingredientes pelo processo empregado (totalmente hidrogenado, parcialmente hidrogenado, interesterificado) para que não haja margem para dúvidas. "O objetivo é fornecer uma informação mais precisa ao consumidor sobre a natureza do ingrediente", diz Rodrigo Vargas, especialista em regulação e vigilância sanitária da agência.
É importante ressaltar que a gordura interesterificada, embora não gere gordura trans, também traz prejuízos à saúde, com impactos negativos para os níveis de colesterol e de açúcar no sangue. Ou seja, se "milagrosamente" a lista de ingredientes de um produto especificar que esse é o tipo de gordura utilizado, não quer dizer que o alimento pode ser consumido à vontade.
Regras frouxas
Apesar dos problemas, os produtos analisados não estão em desacordo com a lei, tanto no que diz respeito à informação sobre a presença de gordura trans apenas por porção, quanto à omissão do tipo de gordura utilizado (por isso as marcas avaliadas não foram divulgadas). "O que a pesquisa evidencia, portanto, é que as normas sobre o assunto são consideravelmente frouxas, favorecem a indústria por um lado e ferem o direito do consumidor à informação correta, por outro", resume a nutricionista do Idec.
A Anvisa alega dificuldade e limitações dos métodos analíticos para quantificação desse nutriente, além da preocupação em "reduzir o impacto econômico da regulamentação, especialmente para os pequenos produtores", para justificar tolerância de até 0,2 g.
Para o Idec, porém, os malefícios à saúde causados por esse tipo de gordura justificam acabar com a regra de que 0,2 g de trans por porção sejam considerados zero.
O Idec é uma associação de consumidores que não possui fins lucrativos. Promove, desde 1987, a educação, a conscientização e a defesa dos direitos do consumidor, por relações de consumo mais justas. Sem vínculos com governos, partidos políticos ou empresas, mantém sua independência pela contribuição de pessoas físicas. Membro da Consumers International e integrante do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor e da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais.
Assessoria de imprensa
Lidiane Suman