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Propriedade intelectual e concorrência na saúde: lados da mesma moeda

Veja como foi o evento promovido pelo Idec e South Centre com autoridades e especialistas de nove países.

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Atualizado: 

07/01/2021
Reprodução
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Entre os dias 3 e 4 de dezembro, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e o South Centre realizaram o webinar “Preços Justos e Acessíveis na Saúde: Direito Concorrencial e Acesso a Medicamentos”. O evento reuniu 20 especialistas e autoridades concorrenciais de nove países e colocou, no centro da discussão, a relação aparentemente incompatível entre direito antitruste e propriedade intelectual - dois campos fundamentais para o mercado de medicamentos, especialmente no contexto de corrida por tecnologias da saúde para o enfrentamento da pandemia. 

O evento foi transmitido pelas redes sociais em português, inglês e espanhol. Aqui você poderá ver um resumo dos painéis e assistir às intervenções. 

Abertura

O debate foi introduzido por Teresa Liporace, diretora-executiva do Idec, e Carlos Correa, diretor-executivo do South Centre, que destacaram a relevância e urgência do tema. Liporace reforçou que não se trata apenas de promover uma conversa de alto nível, mas de aproximá-la ao consumidor, que é historicamente afetado pelas distorções nesse mercado. Correa, por sua vez, sublinhou o papel do South Centre na promoção do desenvolvimento, a partir de uma perspectiva do Sul Global, e a centralidade do acesso a medicamentos nesse trabalho.

A última parte da mesa de abertura foi reservada à fala de Judit Rius Sanjuan, professora, advogada e assessora do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) na área de acesso a tecnologias de saúde. Em sua exposição, Rius sustentou que a discussão sobre preços é uma peça-chave na busca por ampliação do acesso a medicamentos, e trouxe como exemplo positivo o caso do Brasil - um dos primeiros a garantir acesso universal a tratamentos contra o HIV. Ela reforçou que as ferramentas jurídicas e de políticas públicas devem acompanhar os avanços tecnológicos, como no caso dos medicamentos biológicos, que suscitaram novos tipos de proteção. 

“Principalmente nos países de renda média, que pagam preços altos e são excluídos da capacidade dos países ricos, tal como vemos no caso da vacina contra a Covid-19. O direito concorrencial é uma ferramenta pró-desenvolvimento central que os países podem explorar para o desenvolvimento sustentável e a implementação da Agenda 2030”, afirmou.

Assista à mesa de abertura:

Painel 1: Condutas anticompetitivas no setor de saúde 

A primeira fala do painel mediado pela professora Paula Forgioni foi de Yousuf Vawda, pesquisador associado sênior da Universidade de KwaZulu-Natal, na África do Sul. Vawda comparou as regras de propriedade intelectual, reguladas de maneira muito hermética pelo Acordo TRIPS, com o direito concorrencial, que no plano internacional não estaria tão amarrado a normas específicas e, desse modo, daria mais espaço ao estabelecimento de parâmetros adequados às realidades nacionais. Para ele, o direito concorrencial deve ser capaz de traduzir as necessidades dos países do Sul Global, “fazer avançar o consumidor, a sociedade como um todo e, é claro, o Estado, para enfrentar as falhas do mercado”.

Por fim, Vawda afirmou que a pandemia expôs o papel da propriedade intelectual como uma barreira de acesso a insumos essenciais. “Não parece muito promissor. Estamos confiando em um sistema de propriedade intelectual que é essencialmente distorcido, incapaz de fornecer bens de saúde pública de maneira acessível”, afirmou.

Vawda foi seguido por Caroline Tauk, juíza federal de uma vara especializada em propriedade intelectual. Ela discorreu sobre o uso da judicialização como caminho para a venda de medicamentos a preços mais caros para o Estado. “É muito lucrativo vender medicamentos por conta de decisões judiciais”, afirmou. “Entre os 25 medicamentos mais caros comprados pelo governo federal por esta via entre 2012 e 2014, 19 nunca foram submetidos à Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS), que é a autoridade que decide se um produto deve ser incluído na lista de tecnologias oferecidas pelo sistema público. 

Depois foi a vez de Ilan Akker, economista sênior e especialista farmacêutico da diretoria de saúde da Autoridade Holandesa para os Consumidores e Mercados. Ele repassou as dinâmicas do mercado de medicamentos e analisou o fenômeno dos preços abusivos a partir das experiências holandesa e europeia - e começou afirmando que a disposição dos consumidores em pagar um determinado preço não significa, neste mercado, que esse preço seja razoável. 

“Saúde é uma necessidade básica, de modo que a demanda por medicamentos é extremamente inelástica e as pessoas podem ser muito dependentes. Além disso, a saúde é um bem público e coletivo: o acesso é visto como um direito humano e isso deixa os governos com pouca margem de negociação quando há poucas opções sobre a mesa”, explicou. “Os altos preços podem ser uma recompensa pela inovação, pelos riscos assumidos, mesmo pela sorte, mas não podem ser usados para explorar a dependência”, concluiu. 

Novamente com a fala, agora como painelista, o professor Carlos Correa defendeu que as autoridades concorrenciais tenham a liberdade e a responsabilidade de atuar não apenas na defesa da concorrência, mas também dos consumidores, colocando freios aos preços abusivos. Correa também defendeu a aplicação da doutrina das facilidades essenciais pelos países em desenvolvimento como caminho para dar conta de uma determinada demanda - como no caso Hazel Tau na África do Sul, que abriu caminho para os antirretrovirais na luta contra o HIV.

Último a se apresentar no painel, o Conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) Sérgio Ravagnani dialogou com a exposição de Carlos Correa afirmando que, no Brasil, a lei de criação do Cade suprimiu a possibilidade de permitir atos de concentração para proteger a economia nacional e o bem comum - o que teria deixado a defesa da concorrência com atribuições muito específicas.  

O conselheiro repassou a atuação do órgão no enfrentamento de estruturas abusivas de mercado e ressaltou iniciativas como o Projeto Cérebro, que combina teorias econômicas e ferramentas de mineração de dados para revelar práticas concorrenciais em licitações. E concluiu sinalizando que o Cade está atento às práticas de abuso de poder dominante, especialmente no contexto da corrida por vacinas contra a Covid-19. “O fato de não termos uma condenação envolvendo lucro abusivo (que é diferente de preço abusivo) não quer dizer que não possa ser utilizada uma métrica e um modelo teórico para que isso ocorra”, afirmou. 

Assista ao Painel 1 - Condutas anticompetitivas no setor de saúde:

 

Painel 2: Experiências internacionais e acesso a medicamentos

O segundo painel do webinar foi moderado pela advogada e coordenadora do Programa de Saúde do Idec, Ana Carolina Navarrete. O primeiro a tomar a palavra foi Behrand Kianzad, doutorando no Centro de Estudos Avançados em Direito de Inovação Biomédica da Universidade de Copenhague. Ele repassou questões normativas envolvendo o mercado de medicamentos e também rebateu a ideia de que há uma relação causal entre lucros excessivos e investimentos em pesquisa e desenvolvimento. 

Para ele, a lei deve estar preocupada com apenas uma coisa: a administração da Justiça e da igualdade - e, nessa perspectiva, tem de considerar que medicamentos e vacinas que potencialmente salvam vidas devem ser vistos como indispensáveis e intrinsecamente conectados ao direito à saúde. 

Kianzad foi seguido por Frederick Abbott, professor de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Estadual da Flórida. A partir da análise de casos específicos em distintos países, mas sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, Abbott fez um panorama global sobre a aplicação do direito concorrencial no setor de medicamentos. Ele encerrou sua fala chamando atenção para o tema da falta de transparência sobre custos de pesquisa e desenvolvimento, que deve ganhar corpo nos Estados Unidos nos próximos anos. 

A terceira exposição ficou a cargo de Luca Arnaudo, atualmente funcionário da Agência de Medicamentos Italiana, depois de anos como investigador sênior da Autoridade Italiana de Concorrência. Ao longo de sua exposição, ele apresentou exemplos de como a Itália usou ferramentas antitruste e de regulação da concorrência para garantir acesso a medicamentos essenciais, e defendeu que “há uma continuidade natural entre concorrência, aplicação da lei e regulamentação”.

Em sua fala, Arnaudo também fez referência à participação de recursos públicos no desenvolvimento de novas tecnologias. “Se um medicamento foi financiado com fundos públicos, devemos ter um olhar mais atento e conseguir garantias uma vez que o produto esteja no mercado. Não falo apenas de preços e custos, mas dos elementos de propriedade intelectual que cercam esses monopólios”, afirmou. 

A seguinte intervenção no painel foi de Lenisa Rodrigues Prado, também conselheira do Cade. Além de explicar o caso Pró-Genéricos versus Eli Lilly no Brasil, ela destacou as particularidades do sistema regulatório brasileiro e a divisão de responsabilidades com outras agências, como é o caso do Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Intelectual), a quem cabe conceder ou não um registro de desenho industrial ou patente. 

“Nos compete analisar eventual abuso no direito de patente quando conferir infração à ordem econômica. Então a relação entre propriedade intelectual e concorrência é complexa, mas não antagônica”, afirmou. “O Cade tem o papel fundamental de tornar mais acessíveis os medicamentos à população - e isso é complementar, não colide com a PI”. 

O fechamento do painel coube a Jesús Espinoza, secretário técnico da Comissão de Defesa da Livre Concorrência do Indecopi (Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e Proteção da Propriedade Intelectual do Peru). Ele explicou que, no Peru, não é possível sancionar preços abusivos, mas que o Indecopi tem encontrado situações em que esse preço é consequência de estruturas concorrenciais abusivas - e é aí onde o Indecopi tem atuado, inclusive a partir de propostas para aperfeiçoar a regulação do mercado de saúde. 

Assista ao Painel 2 - Experiências internacionais e acesso a medicamentos

Painel 3 - Preços abusivos em contexto de pandemia

O último painel do webinar foi moderado por Viviana Muñoz, coordenadora do programa de Desenvolvimento, Inovação e Propriedade Intelectual do South Centre. Calixto Salomão Filho, professor titular do Departamento de Direito Comercial da USP (Universidade de São Paulo), foi o primeiro a tomar a palavra, e defendeu que a discussão sobre preços afeta o acesso à saúde como um todo.

“Na rede pública, o preço excessivo de um medicamento se revela não só na compra do medicamento, mas na impossibilidade de compra para todos. Portanto, aplicar nosso direito concorrencial, sancionar abuso de preços inclusive via licenciamento compulsório e multas elevadas é essencial”, defendeu. “Em matéria de medicamentos em época de pandemia, temos três coisas: dispositivos legais, fundamento teórico e enorme necessidade prática. Falta o que? Só vontade de aplicar a lei.”

O professor Salomão foi seguido por Humberto Cunha dos Santos, procurador federal da AGU (Advocacia-Geral da União), que na mesma linha defendeu que há outros objetivos que podem ser tutelados pelo direito concorrencial: “citamos o acesso, mas a compreensão do preço também passa por considerações relacionadas ao direito à saúde, capacidade de pagamento dos usuários, fornecimento pelo Estado e pela política governamental”.

O procurador também discorreu sobre os impactos da pandemia no controle antitruste, especialmente em mercados intensivos em pesquisa e desenvolvimento - como é o caso do mercado de medicamentos. “Vimos problemas de suprimento de ofertas como álcool em gel e máscaras, em que talvez a ausência de intervenção seja a melhor saída, pois o mercado consegue equacionar e corrigir os efeitos da pandemia. Mas seria muito ingênuo acreditar que isso ocorreria no mercado farmacêutico, em que os direitos de propriedade intelectual e as patentes conformam barreiras à entrada altíssimas, e que alteram a dinâmica de funcionamento da competição”, explicou.

O terceiro painelista foi Duncan Matthews, diretor do Instituto de Pesquisa em Propriedade Intelectual da Universidade de Queen Mary, no Reino Unido. Ele também colocou o foco sobre o papel do direito concorrencial na resposta à pandemia em âmbito internacional (em particular, na União Europeia). 

Além de destacar bons exemplos de cooperação entre a indústria, Matthews falou sobre o papel da agência regulatória americana no caso do Remdesivir - uma droga órfã que passou a ser testada como possível tratamento contra a Covid-19 - e explicou um recente caso na Comissão Europeia que derivou no reconhecimento de estratégias anticompetitivas por parte da indústria que bloqueiam o caminho para medicamentos mais acessíveis. 

A última painelista foi Lúcia Helena Salgado, professora da Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Ela fez um repasse histórico das diferentes doutrinas e escolas da teoria econômica sobre preços, chamando atenção para o que chamou de “tabu do preço abusivo”, que seria fruto de um negacionismo ideológico. 

Ela também discorreu sobre o campo das vacinas, que seriam bens meritórios. “As vacinas têm externalidades positivas que são inegáveis. Elas diminuem o impacto sobre o sistema de saúde, o privado e principalmente o público. Portanto as vacinas não são bens privados puros. São bens meritórios -  e esse é o primeiro ponto ao se começar a discutir e entrar em acordo com os laboratórios para definir regras de distribuição”, explicou.

Assista ao Painel 3 - Preços abusivos em contexto de pandemia:

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