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TCU questiona Aneel sobre benefício irregular dado à empresa da J&F

Agência permitiu que atraso na entrega de energia de térmicas fosse coberta por outra usina, operação vetada em contrato

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Folha de S.Paulo

Atualizado: 

30/05/2022
Foto: iStock
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Reportagem do jornal Folha de S.Paulo, publicada em 26/05/2022

O TCU (Tribunal de Contas da União) questionou oficialmente a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) sobre um benefício concedido a uma empresa da J&F —grupo da família Batista que controla também a JBS, empresa global do setor de carnes.

A iniciativa tomada pela autarquia está irregular em relação ao contrato firmado pela companhia para fornecer energia e que é regulado pelo poder público —visão corroborada pelo ofício do órgão de controle.

A Folha teve acesso ao pedido de informações. O TCU quer saber as razões que levaram a agência a permitir que quatro novas térmicas a gás da Âmbar, que estão com as obras atrasadas, sem entregar a energia no prazo estipulado em contrato, pudessem ser substituídas por outra usina, do mesmo grupo —um tipo de troca que é expressamente proibida por uma cláusula do mesmo contrato.

Por causa dessa decisão, a Âmbar não paga uma multa mensal estimada pela própria agência em R$ 209 milhões e passou a ter direito de receber um pagamento de R$ 616,03 por MWh (megawatt-hora) por mês.

No ofício em que pede explicações, o TCU também lembra que o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico decidiu, em 6 de abril, suspender medidas excepcionais para o acionamento de térmicas, cuja energia é mais cara, e interpela se a agência considerou o impacto de sua decisão na conta de luz.

O TCU também quer saber por que o documento que trata dessa substituição para as térmicas do grupo J&F está em sigilo na agência, sem ter sido analisado pela área técnica ou pela procuradoria. O órgão regulador pede, inclusive, que a agência forneça o nome de quem determinou o sigilo, considerado incomum nesse tipo de procedimento.

O uso de uma térmica para operar como backup de usinas atrasadas foi aprovado em reunião de diretoria da Aneel em 17 de maio. O diretor relator, Efrain Pereira da Cruz autorizou que a térmica Mário Covas, localizada em Cuiabá (MT), com cerca de 20 anos de idade, cubra o atraso na construção de Edlux 10, EPP 2, EPP4 e Rio de Janeiro 1, projetos previstos para operarem no Rio de Janeiro.

A decisão foi proferida em caráter cautelar, ou seja, não é definitivo, mas libera a operação, suspendendo a multa, e autorizando os pagamentos.

Também participaram da reunião o diretor-geral substituto, Hélvio Neves Guerra, que presidiu os trabalhos, e o diretor Sandoval de Araújo Feitosa Neto.

Os diretores não consideraram a cláusula 4.4 do contrato que rege esses projetos e determina que "a energia definida no contrato não poderá ser entregue por outra usina do vendedor, por outro agente da CCEE [Câmara de Comercialização de Energia Elétrica], nem pelo conjunto dos agentes em razão de operação otimizada do SIN [Sistema Interligado Nacional]".

A própria agência foi responsável pelo leilão desses projetos, por delegação do MME (Ministério de Minas e Energia). O documento com essa regra estava anexado ao edital do leilão e tem logotipo da Aneel.

Essas quatro térmicas da Âmbar fazem parte de um grupo de 14 empreendimentos a gás contratados em outubro dentro de um novo sistema, o PCS (Procedimento Competitivo Simplificado). Naquele momento havia risco de racionamento, e o governo apoiou a contratação de novos projetos por um preço muito elevado, temendo um racionamento. Térmicas antigas não puderam entrar na disputa.

O valor médio no leilão foi de R$ 1.560 por MWh, mais de sete vezes o valor alcançado nos leilões semelhantes para o mercado regulado, que havia sido de R$ 210 por MWh em 2019. Hoje, no mercado à vista, que baliza o preço geral, a energia está custando em R$ 55 por Mwh.

No total, o leilão simplificado contratou 775,8 MW (megawatts) a um custo de R$ 39 bilhões. Toda a despesa vai para a conta de luz. As quatros usinas, agora em discussão, respondem por mais da metade desse total, 343,8 MW, a um custo de R$ 18 bilhões.

Pelo contrato, as 14 térmicas a gás deveriam entrar em operação em 1º de maio e ficarem ligadas ininterruptamente até o final de 2025, para permitirem que as hidrelétricas conseguissem guardar água em seus reservatórios.

No entanto, de lá para cá, ocorreram dois imprevistos.

As chuvas foram abundantes. Os reservatórios estão cheios, gerando energia barata. Ao mesmo tempo, a construção das térmicas atrasou. Uma parte deles terá dificuldades de entrar em operação antes de 1º de agosto, considerado o prazo-limite, que permite, inclusive, o cancelamento do contrato.

O benefício excepcional dado aos projetos do grupo J&F causou indignação entre executivos do setor e até mesmo entre integrantes da área técnica da agência. Um superintendente chegou a confidenciar a colegas que não assinaria documentos que tratassem das térmicas da Âmbar.

A decisão foi considerada não apenas financeiramente irracional, com prejuízos para o consumidor. Quem acompanha a área de energia interpretou que uma quebra de contrato autorizada pelo próprio órgão regulador é um ato inédito, que abre perigoso precedente num setor onde legislações são seguidas à risca.

Algumas entidades já haviam solicitado que as 14 térmicas a gás não fossem usadas.

No TCU, há uma solicitação para que as térmicas simplesmente não entrem em operação, pedido encaminhado pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). A entidade argumenta que a conta de luz já está muito alta, e essa energia cara é desnecessária.

Na Aneel, há um outro pedido, para que sejam canceladas as térmicas que não cumprirem o prazo contratual, encaminhado pela Abrace, que representa grandes consumidores de energia. Em anexo ao pedido, a entidade incluiu um levantamento, mostrando os atrasos no cronograma dessas usinas. Nele, as mais atrasadas, com risco de não saírem do papel até agosto, eram as quatro da Âmbar.

OUTRO LADO

Em nota à Folha, quando do anúncio da decisão da Aneel, a Âmbar defendeu a substituição, destacando que as quatro térmicas serão integralmente entregues, dentro do prazo contratual, adicionando capacidade de geração ao sistema elétrico.

Apesar de o gás ser um combustível fóssil, com emissões que pioram o efeito estufa, a empresa afirmou que em comparação a outros combustíveis usados nas térmicas, há um ganho ambiental. Também destacou que não está recebendo o valor cheio, previsto no contrato, enquanto as térmicas não entram em operação.

"A proposta da companhia mantém a construção das novas usinas, já em andamento, além de reduzir a emissão de gás de efeito estufa em 15 vezes e beneficiar o consumidor em R$ 628 milhões em relação ao projeto inicial", afirma nota da empresa.

Procurada nesta sexta-feira (27) para comentar o andamento do processo nos órgãos reguladores, a empresa disse que não iria se manifestar.