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Uma pesquisa elaborada pela Proteção Animal Mundial e realizada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) revelou que as fazendas de criação industrial intensiva, principalmente de suínos (porcos), podem estar espalhando bactérias no meio ambiente e colocando a saúde das pessoas em risco grave. O estudo foi realizado no mês de setembro no Paraná e identificou a presença de genes de resistência a antibióticos nos solos e nas águas nas imediações das granjas em duas áreas: região dos Campos Gerais (Castro, Carambeí e Piraí do Sul) e Oeste do estado (Toledo e Palotina). A descoberta repete o que já havia sido visto em pesquisas semelhantes em outros países. As informações estão reunidas no relatório “Bactérias multirresistentes: em um rio próximo de você” divulgado hoje (6/12) em evento virtual (veja aqui) com participação de representantes das duas entidades e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Proteção Animal Mundial e Idec também lançaram no encontro um documento com análises e recomendações de políticas públicas relativas ao problema mais amplo da resistência de bactérias causadoras de infecções contra os tratamentos atualmente disponíveis.
O Brasil está entre os maiores produtores mundiais de suínos. E o Paraná é o segundo maior polo suinícola no país. Os resultados da pesquisa nacional revelam que as amostras de águas coletadas depois das fazendas apresentam maior diversidade de genes de resistência quando comparadas às amostras coletadas antes das fazendas. O material coletado continha presença especialmente grande de genes resistentes a antibióticos críticos para a saúde humana, alguns de prioridade máxima, como cefalosporinas, colistina e ciprofloxacina, e outros de prioridade alta ou altamente importantes, como penicilina e sulfonamidas, entre outros.
“Ainda seguimos em processo de identificação das bactérias a partir das amostras coletadas. Os resultados que identificamos aqui no Brasil são bastante inéditos no mundo inteiro e vamos fazer divulgação científica deles em artigo”, relata o professor UFPR Marcelo Molento, responsável pelo laboratório de Parasitologia Veterinária da instituição e coordenador científico do projeto. “A montante dos rios nós já encontramos mutações presentes nas bactérias, o que indica a possibilidade de multirresistência. Isso denota um problema de saúde pública, na medida que nossos sistemas de controle e qualidade de água são baseados na detecção de coliformes fecais. Mas o mais interessante é que a jusante, em trechos relativamente curtos dos rios, nós já encontramos três vezes mais genes de resistência. Outras mutações, para outras famílias de antibióticos. Nosso grande resultado foi poder identificar todas essas mutações”, conclui.
As descobertas gerais seguem o padrão de outras localidades analisadas no mundo e apontam, entre outras fontes, para a provável descarga de genes resistentes a antibióticos nas águas dos rios a partir do manejo dos dejetos (fezes e urina) dos animais criados de maneira intensiva. As conclusões também se aplicam para criações intensivas de outros animais, como de aves e bovinos, e para outras localidades de concentração agropecuária no país e no mundo. As pesquisas anteriores da Proteção Animal Mundial, com a mesma metodologia de coleta e análise, foram realizadas Espanha, EUA, Canadá e Tailândia.
As bactérias que contêm estes genes são cada vez menos combatidas pelos medicamentos disponíveis. Podem causar doenças de tratamento muito difícil ou até incuráveis. Esses patógenos podem estar chegando à população por muitas vias, entre elas por meio das águas contaminadas, pelas pessoas e equipamentos envolvidos diretamente com a produção pecuária, por alimentos plantados em solos fertilizados com esterco das granjas ou pela própria carne dos animais depois de processada e ofertada no comércio.
“Várias medidas são necessárias para endereçar a questão. Mas as realmente transformadoras envolvem a transição de sistemas. É preciso evoluir da criação industrial intensiva de animais para sistemas de criação éticos e sustentáveis, como é o caso da agricultura regenerativa, agroecologia, entre outros. Nos sistemas predominantes hoje os animais vivem inevitavelmente em baixo nível de bem-estar, doentes e estressados, o que sempre pode ensejar o uso de antibióticos, e isso deveria ser sempre o último recurso”, diz Daniel Cruz, coordenador de Agropecuária Sustentável da Proteção Animal Mundial. “Essa transição, que envolve setor produtivo e governos para que seja equilibrada, precisa ser amparada também pela sociedade com uma maior diversificação das fontes de proteína na alimentação. Por diversas razões, esse processo é cada vez menos uma opção e mais uma responsabilidade”.
Orientando a sociedade brasileira
O problema da resistência antibacteriana não está restrito à agropecuária. Envolve a própria produção e o uso de medicamentos para a saúde humana. Por isso, o policy paper elaborado pela Proteção Animal Mundial e pelo Idec reúne informações e apresenta conceitos para entender o cenário e traçar um diagnóstico abrangente. O documento também propõe medidas estratégicas que podem ser tomadas por autoridades e profissionais de saúde para evitar essa nova crise anunciada.
O conteúdo foi elaborado sob a perspectiva do conceito de Uma Saúde ou Saúde Única, abordagem de saúde pública colaborativa, multissetorial e transdisciplinar que reconhece que, para atingir o melhor nível possível de saúde e bem-estar, é necessário levar em consideração as relações entre as pessoas, os animais, as plantas e seu meio ambiente.
Na avaliação do analista de Saúde o Idec, o advogado Matheus Falcão, “o problema da resistência antimicrobiana também revela uma disfuncionalidade grave no mercado de medicamentos, que foi incapaz de avançar no desenvolvimento de novos fármacos nos últimos anos. Há um desinteresse patente da indústria farmacêutica privada em investir em novos antibióticos, e isso reduz drasticamente o arsenal terapêutico da humanidade para lidar com o problema. É por isso que precisamos de inovação, mas ela não vai acontecer sem vontade política, investimento de longo prazo em pesquisa e suporte aos laboratórios públicos. Só eles podem virar o jogo.”
As recomendações apresentadas estão organizadas em quatro grandes eixos. O eixo geral aponta a importância do acesso a medicamentos e o papel do poder público, das ações de comunicação e educação da população e profissionais, além do controle da comercialização e uso de antibióticos.
Na perspectiva da saúde humana, o mote é “acesso sem excesso”. O lema resume a relevância do acesso universal a medicamentos, da adequada estruturação do Sistema Público de Saúde (SUS), da capacidade de diagnóstico e monitoramento para garantir tratamentos corretos e eficazes e também o papel vital de controles sanitários e epidemiológicos, especialmente com foco na emergência de resistência antibacteriana.
No tocante à saúde animal, o cerne é a promoção do bem-estar das criações. Nesta via defende-se o uso de antibióticos prioritariamente para humanos, uma vez que devem ser incentivados, estabelecidos e fiscalizados padrões mínimos de bem-estar animal conforme orientados pela Iniciativa Farms. Pesquisa e monitoramento da resistência antibacteriana relacionada à produção animal, além do controle da poluição ambiental são outras medidas indicadas.
Há ainda um grupo de orientações focadas em pesquisa e desenvolvimento. Diante de questões de custos, complexidade e velocidade de desenvolvimento de antibióticos, além da concentração da produção no plano internacional, prega-se o estabelecimento de uma política nacional de inovação tecnológica e industrial, o que envolve laboratórios farmacêuticos públicos brasileiros, universidades e centros de pesquisa, entre outros atores. Este eixo também recomenda rejeição a mecanismos de extensão de propriedade intelectual, que dificultam o acesso e não contribuem para a criação de novos antibióticos.
Dados e fatos sobre a resistência antibacteriana
A resistência antibacteriana é uma preocupação global. Atualmente cerca de 700 mil pessoas morrem todos os anos em decorrência de infecções que não responderam aos tratamentos com antibióticos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que a crise da resistência antibacteriana é tão perigosa quanto a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2. Para o futuro são previstos cenários catastróficos em que a resistência antibacteriana pode causar a morte de 10 milhões de pessoas globalmente em 2050.
Grosso modo, o processo de resistência é algo natural, uma seleção que corresponde à capacidade de organismos mais aptos enfrentarem e superarem condições adversas do meio. Com o tempo e a reprodução, os genes que conferem essa aptidão/resistência são transmitidos às novas gerações e populações com essas características aumentam. Mas esse processo pode ser acelerado e favorecido por fatores humanos. É o que acontece com o uso de antibióticos e outras substâncias: se elas não forem fulminantes e exterminarem todo um grupo de microrganismos, como bactérias, podem contribuir para selecionar os mais fortes e que com o tempo serão cada vez menos afetados por aquela substância que costumava ser eficiente. Pior ainda, alguns patógenos podem desenvolver resistência a uma variedade de substâncias (multirresistência), esgotando as alternativas de tratamento.
Como é possível perceber, os fatores que podem contribuir para o aumento da resistência de micróbios aos tratamentos que conhecemos para combatê-los quando causam infecções em humanos são diversos. Vão desde o uso inadequado de remédios para o tratamento das infecções nas pessoas (tipo errado, quantidade inadequada ou duração incompleta do tratamento) até o uso irresponsável na pecuária (detalhes abaixo) e incluem aspectos de controle sanitário.
Bactérias multirresistentes e a produção animal industrial intensiva
Atualmente estima-se que 75% da produção mundial de antibióticos se destine ao uso em animais de produção, o equivalente a 131 mil toneladas anuais do medicamento. E o rebanho mundial pecuário é da ordem de várias dezenas de bilhões de indivíduos. Porque sabemos que para tratar infecções bacterianas o uso de antibióticos deve ser metódico, sob pena de não as curar e ainda agravar o problema, um quadro dessa proporção gera preocupações e inspira monitoramento e ações.
A presença dos genes resistentes a antibióticos no ambiente está frequentemente relacionada ao uso irresponsável de antibióticos na pecuária industrial intensiva, isto é, administração costumeira de antibióticos para rebanhos inteiros para mascarar (uso preventivo, ao invés de só para tratar infecções instaladas em indivíduos específicos) problemas na criação decorrentes do baixo nível de bem-estar animal e/ou como promotor do crescimento.
Muitas vezes, os genes críticos descobertos conferem resistência justamente a antibióticos muito usados em animais de criação nas mesmas áreas pesquisadas, o que reforça ainda mais o nexo de causalidade. Mas o processo de aumento da resistência não se limita a eles. Os genes resistentes a antibióticos identificados nos rios brasileiros são preocupantes pois podem conferir a patógenos a resistência a diferentes classes de antibióticos, e até mesmo agentes desinfetantes. É o problema das bactérias multirresistentes.