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Para Idec, liberar consignado no Auxílio Brasil é potencializar endividamento

Em nota pública, Instituto afirma que proposta do governo não resolve problemas e pode aumentar endividamento da população brasileira.

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Atualizado: 

26/08/2021

Em nota pública divulgada nesta quinta-feira (26), o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) defende que liberar crédito consignado no Programa Auxílio Brasil é meio para favorecimento das instituições financeiras, além de porta de entrada - e sem saída - da população mais vulnerável no endividamento.

A Medida Provisória (MP) que cria o Programa, que visa substituir o Bolsa Família, permite a liberação de 30% do valor do benefício para crédito consignado, uma proposta que compromete o combate à extrema pobreza e pode agravar índices de endividamento, que hoje já atinge 60 milhões de pessoas.

Leia o posicionamento do Idec na íntegra:

NOTA PÚBLICA: LIBERAR 30% PARA CRÉDITO CONSIGNADO NO AUXÍLIO BRASIL É 'PORTA DE ENTRADA NO ENDIVIDAMENTO'

O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) avalia com preocupação o Programa Auxílio Brasil e repudia, em especial, o ponto específico que permite a liberação de 30% do valor do benefício para crédito consignado, uma medida que pode comprometer os objetivos desta política pública e agravar o endividamento da população brasileira, que hoje já atinge o número 60 milhões de pessoas no país.

Apresentado pelo governo federal no início de agosto via Medida Provisória, este novo programa visa substituir o Bolsa Família - que já atende milhões de famílias em extrema pobreza e é reconhecido mundialmente por seus êxitos no Brasil -, mas não resolve problemas estruturais e já conhecidos de especialistas como a fila de espera e a consolidação das regras para atualização do benefício.

Embora haja propostas desejáveis, como o aumento do valor do benefício, há evidentes retrocessos na proposta que, em um contexto econômico já fragilizado, pode afetar especialmente a população mais vulnerável, estimular o endividamento das famílias e a comprometer os objetivos do programa, que é  buscar a garantia da segurança alimentar de milhões de famílias em estado de extrema pobreza.

Diante de uma análise aprofundada realizada pela equipe técnica do Idec, que se debruçou sobre temas caros ao Instituto existentes na medida - especificamente, a inclusão da possibilidade de concessão dos 30% de crédito consignado no benefício, presente no Art. 23 da MPV 1061/2021 -, defendemos que o risco do endividamento da população é iminente e porque este artigo deve ser suprimido:

1. A MPV 1061/2021, cria o Programa Auxílio Brasil e Programa Alimenta Brasil, em substituição, respectivamente, ao Programa Bolsa Família (PBF) e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O Programa Bolsa Família foi instituído em 2003 e, após dez anos, já havia alcançado 13,9 milhões de famílias, 72,4% delas vivendo na extrema pobreza, com renda inferior a R$ 70, sendo 42,2% chefiadas por mulheres. Em dez anos, contribuiu para a retirada de  22 milhões de pessoas da pobreza, diminuiu a taxa de evasão escolar e reduziu a mortalidade infantil, entre outros indicadores positivos. O PBF também estruturou uma política de Estado contínua, e os programas antes fragmentados passaram a ser integrados na plataforma do Cadastro Único para Programas Sociais e tiveram a gestão aperfeiçoada junto a estados e municípios.

2. Um dos pontos mais graves da atual MPV está no art. 23, que prevê a liberação do crédito consignado com os recursos do programa, modalidade na qual os beneficiários poderão sofrer descontos de até 30% em seus benefícios para o pagamento mensal de empréstimos e financiamentos em favor de instituições que operem a modalidade de microcrédito. 

3. Embora o microcrédito seja um instrumento necessário para que as famílias invistam em pequenos empreendimentos, já existem opções para essa modalidade de crédito, como o Programa Nacional do Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), com fontes de recursos e metodologia definida. Além disso, é possível incluir os consumidores em situação de vulnerabilidade no programa de microcrédito do BNDES operado pelos bancos comerciais. Se há insuficiências nestes programas, os esforços devem ser dirigidos para seu aperfeiçoamento. Reforça a percepção de já existirem alternativas viáveis sem aumentar a exposição ao risco de endividamento o fato da inadimplência nas modalidades de microcrédito já praticadas, de 2,7%, estar no mesmo patamar das linhas de crédito consignado para servidores públicos e aposentados do INSS, de 2,7% e 2,4% respectivamente, indicador extremamente positivo para uma linha de crédito sem a garantia de desconto em folha de pagamento/benefício.

4. A previsão é preocupante porque descaracteriza a principal função do programa, que é de garantir a superação da situação de extrema pobreza. Ao autorizar o uso do benefício para crédito consignado, o novo programa tende a potencializar o endividamento, que hoje já atinge 60 milhões de brasileiros, comprometendo um benefício de natureza alimentar. Como apontam 10  propostas de emendas supressivas já apresentadas por parlamentares, a medida é um claro favorecimento às instituições financeiras - que terão bilhões de reais para serem captados na forma de oferta de crédito de baixo risco - em detrimento das famílias em situação de pobreza que precisam destes recursos para sua sobrevivência diária. 

5. A MPV traz ainda a possibilidade da perda do benefício, mas com a continuidade da obrigação de pagar parcelas mensais para as instituições bancárias. A hipótese mais preocupante é a regra de emancipação que consiste na descontinuidade do benefício após 24 (vinte e quatro) meses para as famílias que ultrapassarem o critério do teto de renda por pessoa, ainda a ser estabelecido. Caso a renda consista apenas por pensões, aposentadorias e benefícios previdenciários, isso ocorrerá após 12 (doze) meses. O beneficiário verá a porta de entrada do endividamento, mas não sua porta de saída.

6. É estabelecida a possibilidade de reavaliação periódica dos valores referenciais para caracterização de situação de pobreza e as idades indicadas como público alvo do Programa. Porém, a política pública não explica, de forma clara e precisa, de que forma essa reavaliação será feita. Essa lacuna produz grande incerteza para a continuidade do recebimento do benefício. Com o corte inesperado dos benefícios, a situação de endividamento se tornará mais grave e, mais uma vez, pode comprometer a própria sobrevivência das famílias, que terão a obrigação de continuar arcando com as parcelas do crédito contratado.

7. Soma-se a essa desestruturação sistêmica o fato de a medida desconsiderar o grau de compreensão dos beneficiários sobre as operações de crédito e seus impactos a médio e longo prazo. Sendo a população de baixa escolaridade e com elevado grau de analfabetismo o público-alvo do programa, têm-se que os beneficiários serão expostos ao assédio dos correspondentes bancários sem que possuam instrumentos para se defender. A exigência de educação financeira para conceder o crédito, disposta na MPV, é extremamente frágil e tende a ter impacto nulo nesse contexto.

8. O fato do setor financeiro ser campeão de assédio e abusos na oferta de crédito consignado é outro agravante. O exemplo mais apropriado para projetar o que pode ocorrer se a medida for aprovada, está nas práticas junto aos beneficiários do INSS. Se utilizando em geral de dados vazados de forma ilegal e criminosa - sem consentimentdoo dos consumidores -, os correspondentes bancários assediam os idosos assim que eles passam a receber o benefício, se valendo da condição de sua vulnerabilidade para induzí-lo à contratação de crédito não desejado ou sem a avaliação dos impactos financeiros a médio e longo prazo. 

9. Exatamente pelos abusos reiterados, uma série de instituições financeiras foram recentemente condenadas pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).  As instituições também estão nas primeiras colocações do "ranking dos perturbadores", lista do Procon-SP com as empresas que ligam reiteradamente ou enviam mensagens para os consumidores inscritos em cadastro criado justamente para evitar esse tipo de importunação constante. 

10. Outra regra que cria incertezas e favorece o endividamento é relativa ao Auxílio Inclusão Produtiva Rural, que será pago somente por até 36 meses aos agricultores familiares inscritos no Cadastro Único. A medida é nova e gera polêmicas. A imposição de prazo limite para o recebimento do benefício não acompanha a realidade social das famílias, caracterizando a desestruturação de uma eficiente política de Estado. A delimitação de tempo para pagar o benefício associado ao uso de crédito, sem dúvida, é um indicativo de abuso e endividamento ainda maior.

11. Há evidências factuais suficientes, portanto, para vislumbrar um cenário grave de práticas abusivas, onde os consumidores brasileiros em estado de extrema pobreza passarão a ser assediados pelo sistema financeiro, por meio de estratégias antiéticas, potencializadas pelo fácil acesso dos correspondentes bancários aos dados pessoais dos beneficiários que, após uma série de vazamentos de dados, estão amplamente disponibilizados na internet. Caso a medida seja aprovada, os mais vulneráveis, justamente os que mais carecem de proteção, serão vítimas das piores práticas existentes no sistema financeiro.

12. Em síntese, o Programa Bolsa Família é de extrema relevância e pode ser aprimorado, incluindo o aumento nos valores repassados aos beneficiários. No entanto, em alguns aspectos, a MP compromete conquistas relevantes. É o caso do incentivo ao endividamento, com o comprometimento de um benefício de natureza alimentar, em benefício exclusivo das instituições bancárias. No percurso da conversão da Medida Provisória em Lei, este retrocesso deve ser evitado pelo Congresso Nacional, com a supressão do artigo 23.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

26 de agosto de 2021

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