Amazônia Legal no escuro
Cerca de 1 milhão de pessoas ainda vivem sem energia elétrica na Amazônia Legal. Fontes sustentáveis, como paineis solares, estão entre as alternativas para universalizar o acesso na região
No fim do ano passado, grande parte do Brasil assistiu, atônito, a um estado inteiro ficar sem luz por mais de 20 dias. O apagão no Amapá começou em 3 de novembro, atingindo 13 de seus 16 municípios, incluindo a capital, Macapá. Durante pelo menos quatro dias, a população desses locais ficou totalmente sem acesso à energia elétrica, o que afetou o abastecimento de água, os serviços bancários, de telefonia etc. O fornecimento começou a ser retomado no dia 7, mas de forma restrita. Apenas no dia 24 daquele mês é que a situação voltou ao normal.
O caos vivido nessas três semanas causou comoção pública e levantou a discussão sobre a precariedade da infraestrutura para o serviço de energia no Norte do país. Mas o que pouco se falou é que mais de um milhão de brasileiros vivem constantemente "no escuro", porque as comunidades onde moram não recebem energia elétrica. A maior parte dessas pessoas está na chamada Amazônia Legal, que, além dos estados da região Norte, inclui também o Mato Grosso e o Maranhão.
Parte expressiva da Amazônia Legal não é atendida pelo Sistema Interligado Nacional (SIN), que compreende as redes de transmissão de energia da maioria do país. Há atualmente 235 localidades que contam apenas com os chamados "sistemas isolados", que são serviços de geração de energia não conectados ao SIN, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Grande parte delas está nos estados de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá e Pará. "A Amazônia é uma das regiões com maior déficit de infraestrutura de serviços públicos em geral. No caso de energia elétrica fica mais complicado ainda, porque não dá pra levar os fios das áreas que tem SIN até as que nao tem. Por isso, é preciso desenvolver outras políticas mais adequadas", afirma Munir Soares, consultor do programa de Energia do Idec.
DESAFIOS E CONTRADIÇÕES
Segundo estimativas do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), há, atualmente, cerca de 1 milhão de pessoas sem acesso à energia elétrica no território da Amazônia Legal, sendo que aproximadamente metade delas vive em comunidades isoladas. O tamanho dos territórios é um dos fatores que dificulta a expansão da rede elétrica, pois como são pequenos povoados, financeiramente o investimento não vale a pena.
No entanto, é no mínimo contraditório que milhares de pessoas vivam sem luz na Amazônia enquanto a região abriga grandes projetos hidrelétricos que abastecem outros locais do país. "Há comunidades próximas das usinas sem acesso à energia elétrica. E pior, sofrendo seus impactos negativos. A construção de uma barragem altera todo o fluxo natural do rio, os níveis de vazão e a circulação da fauna aquática e terrestre. As pessoas são deslocadas para áreas às vezes muito diferentes das que viviam. Historicamente, os [moradores] impactados sempre saem prejudicados dos acordos [de desapropriação]", expõe Marcelo Martins, articulador territorial do Programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA).
De acordo com Clauber Leite, coordenador do programa de Energia do Idec, apesar de haver várias usinas hidrelétricas, não é tão simples fornecer eletricidade na região amazônica a partir delas. "É preciso reduzir a tensão para que a energia gerada na hidrelétrica seja conectada na rede de distribuição. E, para isso, é preciso investimento em subestações e linhas de transmissão. Só que as comunidades estão a quilômetros de distância dessas linhas, o que demandaria altos investimentos em infraestutura, que ainda não existe nesses locais", explica.
Já para Soares, a aparente contradição é, no fundo, resultado de decisões políticas. "A região amazônica sempre foi considerada um lugar que se ocupa e de onde se extrai recursos para outras regiões brasileiras e outros lugares do mundo. Nunca houve interesse de saber qual era a infraestrutura necessária para aquele território, para atender às necessidades das pessoas que estão ali e para manter a floresta em pé", critica o consultor.
EXPECTATIVAS
Em 2003, foi criado o Luz para Todos (LpT), maior programa de universalização de energia elétrica desenvolvido no Brasil. Até meados de 2019, a iniciativa foi responsável por 3,4 milhões de ligações, beneficiando 16,5 milhões de pessoas, segundo dados da Eletrobras. Inicialmente, o programa foi voltado à população rural, e só a partir de 2015 passou a atender regiões remotas dos sistemas isolados.
Em 2020, o governo federal lançou um novo programa, o Mais Luz para a Amazônia (MLA), que é visto como uma continuidade do LpT, mas voltado especificamente a essa região. De acordo com Soares, no ano passado o MLA ainda estava em fase de planejamento, e sua execução deve ser iniciada em 2021, mas é provável que ainda com poucas instalações.
Para Martins, do ISA, a expectativa pelos resultados do programa é grande nas diversas comunidades da Amazônia Legal. Ele aponta que, entre os povos indígenas, com quem trabalha diretamente, a demanda por energia elétrica vem aumentando muito. "Há um interesse crescente pelo serviço, para trazer mais qualidade de vida: a energia possibilita a conservação de alimentos; o acesso à comunicação e, consequentemente, a diminuição do isolamento das comunidades; a ampliação do acesso à educação; o uso de ferramentas e de bombeamento de água potável; além do uso de alguns equipamentos de saúde, como inaladores", exemplifica.
IDEC E A ENERGIA LIMPA NA AMAZÔNIA
Em 2020, o Programa de Energia do Idec passou a dar mais atenção à questão do acesso à energia sustentável na Amazônia ao desenvolver um projeto específico sobre o tema. Financiado pela Fundação Mott, a iniciativa faz parte de um projeto mais amplo chamado Energia e Comunidades, que reúne outras organizações que defendem o direito à energia limpa, com ênfase na região amazônica.
No caso do Idec, o projeto tem duração prevista de quatro anos, sendo que nos dois primeiros o objetivo é promover a discussão sobre o direito à energia elétrica, avaliando o que deve ser melhorado nos programas de universalização e lutando para que eles sejam implementados. Na segunda etapa, o foco será acabar com os subsídios para os combustíveis fósseis, a fim de que os recursos sejam voltados para a geração de energia limpa.
O consultor do Idec explica que os recursos para o MLA são arrecadados por meio de uma tarifa embutida na conta de luz e paga por todos os consumidores: a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), usada para subsidiar uma série de iniciativas, entre elas a universalização da energia elétrica. "Com uma pequena parcela da conta de luz, todos os consumidores contribuem para que outros brasileiros tenham acesso à energia. Contudo, é preciso garantir que o processo seja bem feito e que o recurso do consumidor seja bem utilizado", destaca Soares.
LUZ (SOLAR) NO FIM DO TÚNEL
O MLA propõe ampliar o acesso à energia na região a partir de fontes renováveis. Hoje a maioria dos sistemas isolados utiliza geradores movidos a diesel, um combustível "sujo" que aumenta as emissões de gases de efeito estufa. Além disso, esses geradores têm baixa eficiência e muita necessidade de manutenção.
Diante das dificuldades de aumentar a rede de transmissão de energia no modo "tradicional", por meio de postes e fios, e dos conhecidos problemas dos geradores a diesel, os especialistas defendem o uso de fontes de energia sustentáveis. Há boas experiências, sobretudo com o uso de energia solar fotovoltaica. Uma das mais bem sucedidas é a do projeto Xingu Solar, desenvolvido desde 2009 pelo ISA no Território Indígena do Xingu. Localizada no Mato Grosso, a área reúne 16 povos indígenas em mais de 100 aldeias (cerca de 7 mil cidadãos).
Até março de 2019, o projeto havia instalado mais de 70 sistemas fotovoltaicos em unidades de saúde, escolas, associações e espaços de uso comunitário. Além disso, a ONG realiza formação técnica dos indígenas para operar, instalar e realizar a manutenção dos sistemas solares. "A formação técnica amplia o conhecimento sobre o potencial e as limitações da energia fotovoltaica, além da gestão da comunidade, ao mesmo tempo em que contribui para a redução da dependência de combustível", diz Martins.
Soares aponta que a energia solar é a mais fácil de ser implementada, mas não é a solução para todos os casos. "Como não tem sol à noite, é preciso ter uma bateria para estocar a energia. Só que essa bateria encarece muito o sistema e, assim, limita a capacidade de fornecimento de energia para as comunidades", pondera. Assim, ele argumenta que é importante diversificar as fontes, investindo também em energia eólica – que pode ser viável em alguns locais, como Roraima; e em biomassa – geração de energia por meio da transformação de detritos de organismos vivos ou em decomposição, como restos de alimentos, cascas de frutas, madeira, entre outros –, por exemplo. De acordo com Soares, cada uma dessas opções têm seus prós e contras, e por isso devem ser consideradas as necessidades e especificidades de cada comunidade, considerando os recursos locais. Ele acredita que se essa lógica tivesse sido seguida no Amapá, é provável que um apagão tão grave como o de novembro passado não acontecesse. "Se em vez de só esticar a linha de transmissão para abastecer todo o estado houvesse outras opções em uma geração distribuída e com infraestrutura adequada para a região, o sistema seria mais resiliente", finaliza.