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Reportagem do portal Jota, publicada 09/12/2020
Está pautado para o dia 16 de dezembro, no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento do recurso extraordinário (RE) 1.101.937, que tem o potencial de produzir mudanças na extensão dos efeitos de qualquer decisão tomada em ação civil pública (ACP) por todo o país.
No julgamento, os ministros vão julgar à luz dos artigos 2º; 5º, XXXVII, LIII e LIV; 22, I; e 97 da Constituição Federal, a constitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985), que impõe limitação geográfica à coisa julgada coletiva.
Os possíveis cenários decorrentes desse julgamento na mais alta Corte do país serão debatidos em um webinar promovido na sexta-feira (11/12), às 9h, pelo JOTA, em parceria com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) com o tema “STF e a abrangência territorial das ações civis públicas”. Inscreva-se aqui.
É função das ACPs tutelar direitos difusos e coletivos, como danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, entre outros. Elas podem ser ajuizadas por Ministério Público, Defensoria Pública, União, estados, municípios, autarquias, empresas públicas, fundações, sociedades de economia mista e associações.
O artigo que será objeto de julgamento estabelece que “a sentença civil fará coisa julgada erga omnes [cujo efeito se aplica a todos], nos limites da competência territorial do órgão prolator”. Ou seja, o dispositivo firma que uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em ACP só teria efeitos dentro dos limites do estado e não para todo o Brasil.
Originalmente, quando a Lei da Ação Civil Pública entrou em vigor, em meados da década de 80, este trecho que limita a extensão da sentença não existia. A restrição foi inserida a partir da Medida Provisória 1.570-5/1997, que tinha por função disciplinar a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, e que foi posteriormente convertida na Lei 9.494/1997. O objetivo da norma era o de combater as inúmeras ações que estavam sendo ajuizadas contra privatizações no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Além da Lei da Ação Civil Pública, há outros dispositivos legais que versam sobre ações coletivas que não foram modificados neste sentido pelo legislador, como o Código de Defesa do Consumidor (CDC). No artigo 103 do CDC, que trata das ações coletivas, o inciso I define que a sentença fará coisa julgada erga omnes. Não cita, contudo, limites para sua abrangência.
Este imbróglio jurídico resultou, ao longo das últimas duas décadas em uma série de disputas judiciais, em diversas instâncias, acerca da extensão das decisões proferidas em ACPs.
Atualmente, são mais de 400 mil ações coletivas registradas no sistema Cadastro Nacional de Ações Coletivas (Cacol) alimentado pelo Conselho Nacional de Justiça. Parte significativa, segundo especialistas na área consultados pelo JOTA, aborda os limites da extensão das sentenças.
Em 20 de abril, o relator da ação, ministro Alexandre de Moraes, proferiu decisão para suspender nacionalmente todos os processos em que há discussão sobre a abrangência territorial da decisão em ação civil pública até que se julgue sobre a constitucionalidade ou não do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública.
Na visão de um dos advogados que defendem o Idec no caso, Christian Tárik Printes, a decisão de mérito numa ação civil pública sempre tem alcance nacional. “Não faz sentido do ponto de vista doutrinário, jurisprudencial e acadêmico que a sentença tenha limitações ao estado e município em que ela foi dada. Isso porque, a pessoa que puder comprovar que sofreu um determinado dano, teria direito a se beneficiar de uma ação coletiva proposta, se julgada procedente”, argumenta.
Printes sinaliza, ainda, que normalmente os danos ultrapassam a situação local onde a ação está posta. Dessa forma, o autor da demanda deve apontar o tamanho do dano e indicar se ele é de âmbito nacional, regional ou local.
O procurador do Trabalho Cássio Casagrande, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF) e colunista do JOTA, concorda. “A ação civil pública é uma ação constitucional, inspirada na class action americana. Como a Constituição fala que a ação civil pública deve ser utilizada para a proteção de interesses difusos e coletivos, uma lei infraconstitucional que limita sua eficácia desnatura a própria finalidade da tutela coletiva”, defende Casagrande. O entendimento contrário, afirma, provocaria insegurança jurídica, já que demandas idênticas teriam decisões diferentes a depender do órgão prolator da decisão.
Em conversa com o JOTA, Fábio Quintas, advogado que representa o Itaú e o Santander no processo, afirmou que, em primeiro lugar, a norma decorre da prerrogativa conferida à União para legislar sobre processo civil e, do ponto de vista material, o dispositivo não viola quaisquer garantias ou direitos previstos na Constituição e tampouco o sistema de tutela coletiva no Brasil, principal argumento daqueles que a questionam.
“Para mim, é importante analisar a solução legislativa e o quadro por ela instaurado numa perspectiva processual mais ampla. O sistema processual tem se direcionado no sentido de conferir abrangência nacional apenas a decisões proferidas por Tribunais Superiores (há várias ferramentas à disposição desses Tribunais para isso)”, defende Quintas. “Nessa perspectiva, a limitação territorial da sentença coletiva se mostra compatível com a lógica do sistema processual, voltado a construir quadro de segurança e isonomia, formado sobretudo nas esferas superiores da organização judiciária”.
As teses defendidas
Por parte daqueles que são contrários às limitações do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, há o entendimento de que o dispositivo fraciona os grupos atingidos, obrigando o ajuizamento de inúmeras ACPs em localidades diferentes para tratar do mesmo dano e com potencial de resultar em decisões divergentes, o que provocaria insegurança jurídica, já que cada tribunal poderia definir uma mesma questão de forma diferente.
“Se o impacto da condenação é reduzido, mas o dano se estende por todo o Brasil e a indenização só será válida às pessoas da jurisdição, acaba se criando também um benefício econômico por causa dos danos. A ideia de ação coletiva de tutela integral é justamente evitar que aquele que comete o ilícito tenha uma vantagem econômica em cima do dano praticado”, diz Hermes Zaneti, professor do programa de pós-graduação stricto sensu da UFES.
Para o especialista, caso seja declarada a constitucionalidade do dispositivo, isso trará impactos negativos, que vão de encontro com o acesso à justiça que as ações coletivas propõem.
Em memorial enviado no fim de novembro aos ministros do STF, o procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu a inconstitucionalidade do dispositivo. Segundo ele, a limitação territorial dos efeitos de decisões em ACPs desvirtua a natureza desse tipo de ação, prejudicando a isonomia, a prestação jurisdicional e o interesse público.
“É inapropriado admitir-se a limitação dos efeitos da decisão proferida em ação civil pública coletiva, para circunscrevê-los tão somente aos limites territoriais que se compreendem na competência do juiz prolator. Tal delimitação desvirtuaria a natureza da ação civil pública e consubstanciaria tentativa de cisão dos direitos transindividuais envolvidos no litígio”, defendeu o PGR. “A eficácia erga omnes e ultra partes da coisa julgada nas ações civis públicas há de ser fixada nos termos do previsto no Código de Defesa do Consumidor, em função do tipo de interesse metaindividual objetivado, fazendo-se o discrímen entre os danos local, regional e nacional”.
O PGR cita algumas ACPs, de âmbito nacional, que considera essenciais para a tutela dos direitos fundamentais e que não produziriam os mesmos efeitos se a segmentação dos efeitos da coisa julgada fosse aplicada: a do combate coordenado à poluição causada pelas manchas de óleo em praias do Nordeste (ACP nº 0805679-16.2019.4.05.8500); a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (ACP nº 23863-07.2016.4.01.3800); a fiscalização nacional de barragens de mineração (ACP nº 1005310-84.2019.4.01.3800); e a reparação pela União de repasses a menor feitos ao FUNDEF (ACP nº 1999.61.00.050616-0).
Já os que consideram a constitucionalidade do artigo argumentam que não é uma interpretação razoável permitir que em um país com as dimensões e peculiaridades do Brasil fique para apenas um juiz de primeiro grau julgar se o dano da ACP proposta é de fato nacional. Apontam também que o sistema de Justiça hoje está aparelhado para enfrentar o problema de ações repetitivas.
“Vivemos em uma época de precedentes e para se formar um precedente é necessário um amadurecimento das discussões. Ações em vários estados podem gerar incoerência em um primeiro momento, mas depois permitem que haja a discussão em instâncias superiores sobre a questão, o que enriquece o precedente formado”, defende Maria Lúcia Lins, sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato.
Ação civil pública: a origem da discussão
A tese que será discutida pelo STF se originou em uma ACP proposta pelo Idec na Justiça Federal de São Paulo, no ano de 2001, contra 16 instituições financeiras, com a finalidade de revisar cláusulas de contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro Habitacional (FSH).
Na primeira instância, houve decisão liminar para impedir que os bancos executassem uma cláusula que autoriza as instituições a promover a execução extrajudicial prevista no Decreto-Lei 70/1966.
Interposto agravo de instrumento pelas instituições financeiras, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) deu provimento para afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e revogar a liminar.
Opostos embargos de declaração pelo Idec foram acolhidos, em parte, para fins de sanar omissão, estabelecendo a inaplicabilidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, já que o direito reconhecido na causa não poderia ficar restrito a um âmbito regional, dada a amplitude dos interesses em jogo.
Depois disso, os bancos interpuseram recurso especial no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Após sucessivos pronunciamentos, a Corte Especial do STJ acabou confirmando o posicionamento do TRF3 em acórdão relatado pela ministra Laurita Vaz.
Em face deste julgado, houve interposição de dois recursos extraordinários, um pelo Itaú e outro pela Caixa Econômica Federal, questionando que o acórdão ofendeu o artigo 97 da Constituição Federal, que estabelece a cláusula de reserva de Plenário. O caso chegou ao STF em março de 2018, quando foi distribuída para relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
No plenário virtual, por maioria, os ministros reconheceram a existência da repercussão geral em julgamento finalizado em fevereiro deste ano. O recurso é o leading case do tema 1.075 da repercussão geral.
Desde então, houve, ao menos, 12 pedidos de ingresso como amicus curiae para fazer parte do julgamento. Todos foram negados pelo relator.