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Artigo publicado no UOL, em 20/10/2020
A vacina para prevenir contra a covid é fundamental para ajudar o mundo a voltar à normalidade, mas a busca por uma cura não cessou. Ou seja, um produto que seja realmente eficaz no tratamento dos doentes.
Tão importante quanto a criação de uma vacina ou de um medicamento, é o acesso que a população terá para uma possível cura ou tratamento.
Já há uma forte mobilização global para que tratamentos para a covid-19 sejam acessíveis, o que necessariamente exigiria uma revisão do modelo de proteção de patentes. Patentes são vistas como obstáculos ao acesso a medicamentos há anos, sobretudo pela conduta abusiva de muitas empresas.
Existir cura, infelizmente, não garante a cura das pessoas. O que se mostra como uma preocupação para covid é uma triste realidade para outras doenças.
É o caso da Hepatite C.
Os medicamentos à base de sofosbuvir, o primeiro da classe dos Antivirais de Ação Direta (AADs), integram hoje o tratamento padrão dos casos de Hepatite C e apresentam taxas de cura superiores a 90%, sendo ministrados em um curto período, cerca de 12 semanas. Em termos simples, significa dizer que uma pessoa com Hepatite C, aguardando transplante de fígado, pode ser curada com por um remédio.
É, portanto, um medicamento com a potencialidade de reduzir enormemente a quantidade de doentes de hepatite C e, por isso mesmo a Organização Mundial da Saúde (OMS), recomenda que os países adotem como uma ação prioritária as estratégias de redução de preço.
No Brasil, estima-se que 700 mil pessoas vivam com Hepatite C. O medicamento não está acessível a todos os brasileiros por conta do preço: entre 2015 e 2018, a empresa Gilead chegou a cobrar mais de R$ 900 por um comprimido. Este preço já foi menor quando a empresa teve suspensa sua patente, por um breve período em 2018, chegando a pouco mais de 60 reais a unidade.
Qual o motivo para uma diferença tão grande de preço? Violação das leis brasileiras pela empresa Gilead, como violação de normas constitucionais e de proteção à ordem econômica. Em termos simples: conduta ilegal, aumento indiscriminado e abusivo de preços.
A empresa tem o que se pode chamar de "ficha suja". É reconhecida globalmente por suas práticas anticompetitivas e agressivas. Tem sido acusada, no Brasil e no exterior, de abusar de preços e criar barreiras a competidores que poderiam diminuir preços de medicamentos e, com isso, ampliar seu acesso. Enquanto ganha bilhões, pessoas morrem aguardando órgãos na fila do transplante.
Pedido de investigação contra farmacêutica faz aniversário
Por aqui, a conduta da empresa Gilead foi objeto de matéria investigativa e de várias denúncias. O caso gerou enorme repercussão e, por um breve período, a justiça foi capaz de impedir a conduta da empresa: uma liminar suspendeu o direito de patente da empresa Gilead e, não por acaso, o preço do medicamento caiu. Porém, os tribunais não resistiram à pressão e o abuso voltou.
O Ministério da Saúde foi acionado, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) foi acionado, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi acionada, o Ministério Público Federal foi acionado e o Conselho de Defesa da Ordem Econômica foi acionado. A Anvisa e INPI se posicionaram contra a concessão da patente e depois sucumbiram à pressão.
O interesse público parece estar órfão.
O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) tem em mãos, desde 21 de outubro do ano passado, um pedido da investigação, formulado pela Defensoria Pública da União, pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Médicos Sem Fronteiras e organizações do Grupo de Trabalho em Propriedade Intelectual da Rebrip (Rede Brasileira Pela Integração dos Povos).
O pedido aponta tecnicamente infração à ordem econômica por discriminação e exercício e exploração abusiva de direitos de propriedade intelectual em compras públicas de medicamentos contendo sofosbuvir, contra a farmacêutica Gilead.
Até agora não há sequer a abertura de uma investigação e, convenhamos, indícios para tanto não faltam.
Enquanto o Cade aguarda, pessoas adoecem e morrem. No contexto da pandemia de covid-19, tudo ficou mais grave: mais pessoas doentes, aumento dos riscos de morte para pessoas vivendo com Hepatite C, reorientação dos serviços de emergências de hospitais, escassez de recursos de saúde diante do aumento de gastos.
O Ministério da Saúde já fala em não conseguir atender a meta de pessoas tratadas que ele mesmo se impôs.
Não se trata de esperar que a empresa seja sensível a apelos e desapegada de seus bilionários lucros, mas de exigir o respeito às leis. Não pode a empresa violar a ordem econômica e abusar de seu questionável direito patentário para inviabilizar a concorrência, cobrando preços extorsivos em um cenário de monopólio forçado por ela em todas as instâncias judiciais e administrativas a quem teve que recorrer.
Assegurar o bom funcionamento da ordem econômica e garantir que qualquer empresa não use de sua posição dominante para adotar condutas abusivas que prejudicam concorrentes e a população é justamente missão do Cade. Mas enquanto o órgão resiste em abrir uma investigação sobre a conduta da Gilead, pessoas morrem de hepatite C, sem acesso a um tratamento que deveria ser universalmente disponível por força de nossa Constituição.
A tragédia deste caso é um péssimo prenúncio do que pode ocorrer com uma possível cura contra a covid-19. Sem instituições capazes de coibir abusos, a cura pode até existir e, mesmo assim, ser inacessível.
(*) Eloísa Machado é professora da FGV Direito SP e coordenadora do centro de pesquisas Supremo em Pauta; João Paulo Dorini é defensor público da União.