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Reportagem do O Joio e o Trigo, publicada em 05/06/2020
Um dos temas do momento começou a circular no final de março, início da quarentena brasileira, quando foi publicada por Giancarlo Isaia e Enzo Medico, pesquisadores da Universidade de Turim, na Itália, uma nota acompanhada de um compilado de artigos denominado “Possível papel preventivo e terapêutico da vitamina D na gestão da pandemia de Covid-19”.
O compilado ignora estudos com resultados que contrariam a própria tese e cita textos antigos, que não têm o cenário pandêmico como foco. Segundo a professora do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (INU/Uerj), Flávia Fioruci, o material não pode ser chamado de estudo científico. “O que seria razoável de se esperar seria uma revisão sistemática da literatura, que é um método de revisão que tem regras a serem cumpridas, o que não foi o caso de Turim.”
Dentre as citações realizadas, o artigo estadunidense com o título “Evidências de que a suplementação de vitamina D pode reduzir o risco de infecções e mortes por influenza e Covid-19” que, até então, não havia sido publicado em nenhuma revista científica, ganhou mais destaque e serviu como respaldo para que os pesquisadores italianos recomendassem a suplementação de vitamina.
Uma semana depois de ser citado pelos italianos, o artigo foi publicado na revista Nutrients, cujo conselho editorial conta com a participação do principal autor do estudo, William B. Grant, pesquisador do Sunlight, Nutrition and Health Research Center, de São Francisco, nos Estados Unidos. No texto que foi usado para referenciar as recomendações de suplementação do “Estudo de Turim”, consta na seção conflitos de interesse que os autores recebem financiamento da Bio-Tech Pharmacal, Inc., uma empresa cujo carro-chefe de vendas é o suplemento de vitamina D.
Chama também a atenção que o segundo autor do artigo, Henry Lahore, um engenheiro aposentado, tenha um site próprio, no qual faz recomendações de ingestão de suplementos da vitamina. Em destaque, ele comenta que “nenhum outro nutriente, medicamento ou hormônio ganhou mais credibilidade científica do que a vitamina D”. Somente o último autor, Harjit P. Bhattoa, está relacionado a uma instituição de ensino e pesquisa. Ele faz parte do Departamento de Medicina Laboratorial da Universidade de Debrecen, na Hungria.
Os demais autores são da GrassrootHealth. Sharon L. McDonnell, Carole A. Baggerly, Christine B. French, Jennifer L. Aliano trabalham para esse instituto de pesquisa em nutrição que vende testes da vitamina D.
Sim: é de se esperar uma corrida científica para estabelecer causas e tratamentos para a Covid-19. Porém, é necessário destacar que tanto o “Estudo de Turim”, como o artigo estadunidense não têm desenhos metodológicos capazes de trazer revisões sistemáticas sobre o assunto, de modo que os tornem confiáveis.
Segundo pesquisadores da Aliança pela Alimentação Saudável e Adequada, a revisão sistemática, ou seja, a reunião de todos os estudos do banco de dados referentes ao assunto, seria a forma mais adequada para realizar uma pesquisa que pretende orientar intervenções em saúde.
Flávia Fioruci diz que mesmo que se chegue à conclusão de que boa parte das pessoas devia fazer alguma suplementação de vitamina D, não é esse o estudo que ampara essa conclusão. “Ele tem que ser ignorado, porque não tem qualidade científica para testar isso”, diz a pesquisadora.
Chama a atenção a proporção que o tema ganhou na mídia tradicional e, especialmente, em mensagens no WhatsApp, acompanhadas de um tom alarmista. Quase sempre referenciando o tal “Estudo de Turim”. Manchetes como “Vitamina D pode ajudar a reduzir os riscos de Coronavírus” foram o empurrão necessário para que a corrida para tomar sol, procurar por soluções milagrosas e suplementos virassem pautas das conversas virtuais.
Contudo, a visão que reduz a comida a determinadas funções no organismo e a nutrientes isolados – vitaminas, proteínas, etc – pode limitar a ingestão combinada dos alimentos e desconsidera as formas de produção, grau de processamento, características sociais, culturais e ambientais da região onde se propagam tais informações.
O Guia Alimentar para a População Brasileira é bem claro a respeito. O estudo de nutrientes é fundamental para pensar na prevenção de carências nutricionais específicas, mas alerta que a ingestão isolada, por meio de suplementos e medicamentos, não substitui hábitos saudáveis.
Vitamina D: o que é, onde vive, como obter?
A vitamina D é um micronutriente sintetizado pelo organismo. Segundo Flávia Fioruci, aproximadamente 80% advém da exposição solar, enquanto os outros 20% são obtidos por meio do consumo de alguns peixes, ovos e cogumelos. Em ambos os casos, a vitamina entra no corpo inativa e precisa passar pelos rins e fígado para se transformar em hormônio.
Para a professora, a principal fonte de obtenção da vitamina é o sol, principalmente quando se trata de um país tropical como o Brasil, onde há incidência solar praticamente o ano todo. Ela ainda enfatiza que o momento de isolamento é delicado e pode, sim, agravar o cenário de deficiência. “Eu diria que sudeste e sul estão numa posição mais desfavorável nesse momento, em especial, porque a gente tá retido e tá um pouco mais frio. As pessoas vão se expor menos e devem ter mais atenção”.
Flávia diz que se expor ao sol por cerca de 20 minutos, em horários nos quais a incidência é mais branda, pode ser uma boa opção. Contudo, mesmo sobre isso, não há consenso científico mundial, porque muitas variáveis interferem na absorção da vitamina: cor da pele, idade e latitude geográfica são apenas algumas delas. E Joio, como de hábito, não pretende dar uma receita de bolo a ninguém.
A pesquisadora explica, também, que não adianta exagerar na exposição aos raios solares. Concentrações maiores de vitamina D não potencializam o sistema imune. Não adianta torrar no sol e correr o risco de desenvolver câncer de pele. Se você não está conseguindo tomar sol, procure um médico para saber se está com deficiência da vitamina e receber orientações de forma individualizada.
No que os estudos concordam é que pode haver problemas quando há deficiência da vitamina, impactando a imunidade, mas enfatizando que ela participa da complexa resposta do sistema imune às doenças. “Isso não é exclusividade da vitamina D. A gente poderia dizer isso pra vários outros nutrientes que deveriam estar presentes numa alimentação adequada e saudável”, lembra Flávia.
Além disso, segundo um artigo publicado no final de abril por pesquisadores da Finlândia, a deficiência de vitamina D está causando um aumento de doenças ósseas, como raquitismo, e também pode ser uma das razões para o aumento da vulnerabilidade, principalmente em idosos, contra infecções virais.
Outro artigo publicado por pesquisadores belgas aponta que a insuficiência e a deficiência da vitamina aumentam globalmente e podem ser atribuídas a mudanças na dieta e no comportamento.
Por outro lado, o cenário atual, que coloca a vitamina D em um altar, favorece a grande procura por suplementos. “Eu vejo com muita preocupação isso. É muito fácil consumir demais, mesmo os em gota. É fácil a pessoa fazer uma superdosagem” ressalta a professora Flávia Fioruci.
O excesso da vitamina no organismo pode levar a intoxicação e à hipervitaminose, segundo um artigo recém publicado pela Sociedade Brasileira de Nefrologia. O estudo indica que as manifestações clínicas da toxicidade são variadas e amplamente relacionadas à hipercalcemia – excesso de cálcio no sangue e muito associada ao câncer.
Os autores incluem problemas como confusão e psicose, além de complicações gastrointestinais, como dor abdominal, vômito, anorexia, constipação e pancreatite. E observam, também, que o excesso pode causar problemas cardiovasculares e complicações renais. Por fim, o texto menciona que “a toxicidade por vitamina D permanece uma questão premente e sua incidência provavelmente continuará crescendo, principalmente por causa da ampla disponibilidade de formulações disponíveis sem receita médica e interesse do público.”
O site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) explica que os suplementos “não são medicamentos e, por isso, não servem para tratar, prevenir ou curar doenças”. Ou seja, são apenas complementação à alimentação. Não precisam de prescrição médica para serem comprados e nem de registro prévio na Anvisa para permissão de venda.
No mercado, especialmente em farmácias, mas, também, em lojas esportivas e em vários sites e páginas na internet, a vitamina D é encontrada como suplementos ou na forma de medicamentos. Os suplementos contêm a forma inativa da vitamina, o colecalciferol, que precisa ser transformado em hormônio pelo organismo, assim como a vitamina adquirida do sol e da alimentação.
Já os medicamentos, com uma legislação mais rigorosa, precisam de prescrição médica e deveriam ser encontrados apenas em farmácias. Eles contêm a forma ativa da vitamina, ou seja, um hormônio, o calcitriol.
Oportunismo em meio à pandemia
Com a fama que a vitamina D ganha, o mercado de suplementos se apressa em fornecer soluções milagrosas. A Addera D3, da fabricante Hypera Pharma, que produz medicamentos e suplementos da vitamina, e é considerada a maior empresa farmacêutica brasileira em termos de receita líquida e capitalização de mercado, já é destaque nas listas das marcas mais comercializadas.
A Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (InterFarma) publica anualmente um guia com dados do setor e, na edição do ano passado, o Addera D3 ficou em 5º lugar no ranking de “remédios” mais vendidos no Brasil. Faz um mês, a marca criou uma página no Instagram para o suplemento e começou uma campanha. Um tipo de “especial da pandemia”.
A primeira publicação foi um vídeo institucional. O mesmo que circula em outras redes sociais e na televisão. Depois, a marca inundou o perfil com publicações patrocinadas, feitas por influenciadores digitais de diferentes nichos. Nutricionistas, educadores físicos, apresentadores de TV, atletas e perfis sobre maternidade e paternidade divulgaram o produto. Sempre apontando a relação da vitamina com o sistema imune, a redução de exposição ao sol durante a quarentena e a suposta necessidade de suplementação.
Uma das publicações, da nutricionista Nathália Dias, na foto acima, chegou a indicar o consumo diário do suplemento em uma dose superior às recomendações internacionais de ingestão da vitamina.
É bom avisar. O artigo 63 do Código de Ética e Conduta do Nutricionista, aprovado em 2018 pelo Conselho Federal de Nutricionistas, veda ao nutricionista fazer publicidade ou propaganda em meios de comunicação com fins comerciais, de marcas de produtos alimentícios, suplementos nutricionais, fitoterápicos, utensílios, equipamentos, serviços ou nomes de empresas ou indústrias ligadas às atividades de alimentação e nutrição.
Há duas semanas, quando os casos e óbitos decorrentes do novo coronavírus explodiram no Brasil, a marca investiu em publicações alarmistas, referenciando notícias da mídia tradicional sobre o tal “Estudo de Turim”. Em letras garrafais, os posts dizem: “Adequar a vitamina D pode fortalecer suas defesas contra a Covid-19” e “Médico alerta para a necessidade de suplementação de vitamina D na quarentena”.
A professora Flávia Fioruci lembra que “não é todo mundo que está deficiente [de vitamina D]. Quem se beneficia [da suplementação] é quem está deficiente. Quem não está deficiente, não tem benefício nenhum de uma vitamina D extra. Quando você faz uma propaganda de suplementação em massa, que é pra todo mundo tomar, o que você faz é suplementar pessoas que não têm deficiência”.
Procuramos o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), apontamos a estratégia de marketing do Addera D3 e questionamos qual é a avaliação do órgão sobre. A resposta: “Estamos examinando no momento a abertura de representação ética contra o anúncio do produto. Por isso, não podemos responder às suas perguntas.”
Também procuramos o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Por meio de nota, o instituto diz que “em meio a uma crise sanitária, consumidores ficam mais sensíveis à publicidade de produtos relacionados a saúde, em especial medicamentos”. O posicionamento do Idec ainda alertou que “campanhas que associam o uso de determinado produto para a saúde com o tratamento ou a prevenção da Covid, sem que haja respaldo em evidência clínica consolidada de eficácia, violam o que diz o art. 6º, I e IV, do Código de Defesa do Consumidor, que tratam da proteção à vida e saúde do consumidor, bem como da sua proteção contra publicidade enganosa ou abusiva”.
Incentivo à superdosagem
O Dietary Reference Intake (DRI) é um documento produzido pelo Instituto de Medicina da Academia Nacional dos Estados Unidos, no qual constam indicações sobre a ingestão diária recomendada para diversos nutrientes. Os valores são obtidos por meio de pesquisas e são referências não só nos EUA, mas, também, no Brasil e outros países. No caso da vitamina D, a recomendação é de que crianças a partir de um ano e adultos até 70 anos façam a ingestão diária de 15 microgramas da vitamina, considerando que essas pessoas tenham exposição mínima ao sol.
Agora, vamos olhar para o Addera D3. A quantidade de vitamina D em cada cápsula, comprimido ou gota do suplemento é apresentada ao consumidor em UI, a Unidade Internacional de Medida. Um micrograma equivale a 40 UI, então, a recomendação do DRI seria 600 UI por dia. No entanto, no mercado, existem opções do Addera D3, vendidas sem prescrição médica, com até 2.000 UI em cada cápsula ou comprimido. Na versão em gotas, indicada para crianças, de acordo com o folheto que acompanha o suplemento, cada gotinha tem 1.000 UI. Em todos os casos, o fabricante recomenda a ingestão de um comprimido, uma cápsula ou uma gota por dia.
Das oito opções de Addera D3 disponíveis, cinco recomendam uma dose diária que ultrapassa a recomendação do DRI. No caso do Addera D3 2000, ao tomar um comprimido por dia, o consumidor está ingerindo 3,3 vezes mais vitamina D do que o DRI recomenda. Valor que configura o limite máximo de nutrientes que os fabricantes de suplementos podem usar como recomendação diária de consumo, segundo a Instrução Normativa nº 28/2018, do Ministério da Saúde.
A pesquisadora Flávia Fioruci vê com preocupação essa questão. “Você vai encontrar de muitas formas diferentes [a vitamina D]. É uma orientação difícil, porque não dá pra fazer pra todo mundo de uma vez. tem que ser muito individualizado. O que me preocupa é isso, tem uma propaganda na televisão e todo mundo pode ir na farmácia e comprar. Quando você faz o estímulo a esse tipo uso, você pode criar um problema [de saúde pública].”
Fica evidente, então, que a superdose pode ser parte do problema e não da solução para a saúde pública em qualquer momento, mais ainda durante a pandemia do novo coronavírus. Isso, em decorrência de uma estratégia corporativa duvidosa do ponto de vista científico, impulsionada por campanhas publicitárias que sugerem algo – a imunidade contra o novo coronavírus – que estão longe de poder cumprir.
Afinal, o que é uma gota a mais ou a menos? Respondemos: no caso do Addera, uma gota a mais pode significar muito em termos de impacto negativo na crise sanitária.