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Coronavírus: remédios devem subir, mesmo após governo adiar reajuste

Custo extra pode ser repassado a distribuidoras, farmácias e consumidores antes do tempo previsto pelo presidente

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UOL

Atualizado: 

16/04/2020
Foto: iStock
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Reportagem publicada no UOL, em 03/04/2020

Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter postergado por 60 dias o reajuste dos medicamentos no Brasil, a pandemia global do novo coronavírus já está encarecendo a fabricação de remédios no país, segundo empresários do setor ouvidos pela Repórter Brasil. E o custo extra pode ser repassado a distribuidoras, farmácias e consumidores antes do tempo previsto pelo presidente.

O preço máximo dos remédios no Brasil é definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), do Ministério da Saúde, com reajustes anuais em abril. Mesmo com o adiamento do aumento neste ano, as fabricantes têm margem para subir os preços dentro do atual limite legal. É por isso, por exemplo, que o medicamento referência contra a hepatite C é comercializado por valores entre R$ 65 a R$ 957 no país.

A decisão de Bolsonaro foi classificada como "ineficaz" pela advogada Ana Navarrete, especialista em saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). "O reajuste não incide diretamente sobre os preços dos medicamentos, mas sim sobre o teto de preços. Como esse teto é muito elevado, na prática ele não limita os preços desses produtos. É uma medida cosmética", disse.

Segundo ela, indústrias, distribuidoras e farmácias permanecem livres para aumentar o preço de um medicamento e ainda estar dentro do teto. "E já estamos percebendo elevação dos valores", disse Navarrete. Na quarta-feira (1º), o Procon-SP notificou oito farmacêuticas por "significativa alteração nos valores" de medicamentos usados no tratamento da covid-19.

Parte da indústria ficou de fora do acordo

O anúncio de Bolsonaro recebeu críticas, nos bastidores, de associações farmacêuticas que ficaram de fora das negociações. Segundo o presidente, a decisão foi tomada "em comum acordo com a indústria farmacêutica". Porém, a reunião no Ministério da Saúde contou somente com representantes da indústria estrangeira (Interfarma), da associação de farmácias (Abrafarma) e da Alanac —entidade com 53 associadas, mas que não representa as grandes farmacêuticas nacionais.

Abifina, Pró-Genéricos, Grupo Farma Brasil e Sindusfarma, que reúnem as maiores empresas, ficaram de fora. A Anvisa não comentou.

Aumento em junho pode ser maior

As empresas do setor estão divididas quanto ao reajuste. Não se sabe, por exemplo, se o impacto econômico da crise nos próximos dois meses será calculado no reajuste adiado para junho. De acordo com a lei, o índice de abril é o que deve valer em junho. Questionada pela Repórter Brasil, a Anvisa declarou que "os percentuais ainda não estão definidos".

Para a economista Julia Paranhos, da UFRJ, é "positivo" adiar o reajuste, mas a indefinição sobre o índice e a falta de detalhes sobre a decisão "criam insegurança sobre o que vai acontecer depois". "O aumento do custo de produção, a redução dos estoques nacionais, o efeito do câmbio e os demais problemas causados pela pandemia podem gerar um efeito maior no reajuste de preços até junho do que agora em abril". disse.

A redução dos descontos das drogarias e uma eventual correria da população atrás de medicamentos também podem gerar efeito sobre os preços. Na semana passada, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou um projeto de lei para congelar o preço dos medicamentos durante a pandemia.

Matérias-primas vêm da China e da Índia

As fabricantes nacionais de remédios avaliam subir o preço dos produtos em razão de gastos extras na produção provocados pela pandemia. O maior entrave é a dificuldade de importar produtos da China e da Índia, que fornecem para a indústria nacional a maior parte da matéria-prima usada na fabricação.

O Brasil importa, atualmente, 90% desses ingredientes básicos, principalmente dos gigantes asiáticos. Com a suspensão de voos, o isolamento social e a redução da atividade econômica nos dois países, a importação desses produtos está comprometida. Há empresas brasileiras que já pagaram pelos insumos, mas os lotes não foram enviados.

Na semana passada, a Índia proibiu a venda de insumos para cloroquina e hidroxicloroquina, medicamentos em teste contra a covid-19. Ao menos 31 toneladas de insumos que deveriam chegar ao Brasil para a fabricação de 23 medicamentos estão travadas no país asiático, segundo o jornal "O Globo".

Outro motivo para a redução da importação são as dificuldades logísticas para despachar os produtos, afirma Nelson Mussolini, presidente do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma). "O maior problema é a paralisação dos voos de passageiros, que são usados para o transporte de cargas"

A disparada de 30% na cotação do dólar em 2020 também vem pressionando os custos das empresas.

Importar dos EUA e Europa é mais caro

Nas últimas semanas, representantes da indústria têm participado de diversas reuniões em Brasília para buscar soluções. Eles já convenceram a Anvisa, por exemplo, a facilitar a substituição de fornecedores de matéria-prima —uma liberação como essa costuma demorar de um a dois anos, mas tem sido autorizada em alguns dias. Também conseguiram zerar a tarifa de importação de itens relacionados à covid-19.

Com estoques disponíveis até maio ou junho, dependendo da empresa, a indústria nacional busca novos fornecedores na Europa e nos Estados Unidos, onde os ingredientes farmacêuticos são mais caros. A alta demanda e a baixa oferta ditam a regra das negociações. "Leva quem pagar mais", disse um representante do setor.

Remédios em falta x remédios mais caros

Nesse cenário, o Brasil tem comprado menos. Em fevereiro deste ano, o volume total de remédios e produtos farmacêuticos importados caiu 30% na comparação com janeiro, puxado pela redução de 40% dos negócios com a China, segundo dados do Ministério da Economia. O país asiático parou em fevereiro e ainda enfrenta dificuldades para retomar as atividades econômicas.

"A China produz mais da metade dos insumos farmacêuticos do mundo. Se tiver um agravamento da crise internacional, haverá risco na produção de medicamentos não apenas no Brasil, mas também na Europa e nos Estados Unidos", disse Paulo Henrique de Almeida Rodrigues, professor do Instituto de Medicina Social da UERJ.

Na farmacêutica Blanver, por exemplo, que produz remédios para o programa de HIV do Ministério da Saúde, fornecedores asiáticos foram substituídos por europeus para manter o ritmo de produção na fábrica de Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

"O que vem da Europa custa mais. Mas é melhor faltar medicamentos ou ter eles mais caros? Não podemos ter tudo neste momento," questionou Sérgio Frangioni, presidente da farmacêutica Blanver.

O alerta acendeu também em Farmanguinhos, laboratório público da Fiocruz vinculado ao Ministério da Saúde, que fabrica desde remédios para hipertensão, diabetes e HIV a medicamentos de alto custo.

"Ainda temos insumos disponíveis. Contudo, estamos em tratativas para manter o fluxo de entregas com nossos diversos fornecedores mundo afora. E já começaram a aparecer muitas dificuldades para os próximos embarques, em especial da China e da Índia, que já deveriam estar sendo feitos", contou Jorge Mendonça, diretor do laboratório público da Fiocruz.

No ano passado, o Brasil importou 71,5 mil toneladas de remédios e produtos farmacêuticos, sendo 19,4 mil toneladas (27%) da China, e 5,4 mil toneladas (7,5%) da Índia. A maior parte dos produtos asiáticos refere-se a Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs), que é a matéria-prima dos medicamentos.

Falta de remédios também nos EUA

Nos EUA, que também dependem de fornecedores asiáticos, o governo anunciou que a pandemia reduziu o estoque de um medicamento, mas não citou qual.

Um estudo da Universidade de Minnesota aponta grandes chances de o país registrar "escassez de medicamentos críticos". Os pesquisadores citam antibióticos, salbutamol (asma) e epinefrina (adrenalina) na lista de preocupações e pedem aos fabricantes para revelar seus estoques.

Anvisa nega desabastecimento

No Brasil, o ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse esta semana que "em 30, 40 ou 60 dias pode haver falta de medicamentos para diabetes e pressão no Brasil" porque "o mundo está procurando outros fornecedores, mas isso tem um tempo para acontecer".

A Anvisa afirma que não há registro de desabastecimento no país e que convocou as empresas a informarem seus níveis de estoque tanto de medicamentos em geral como dos produtos relacionados ao combate da covid-19.

"Por meio da análise dos dados fornecidos, a Anvisa analisa possíveis situações de desabastecimento, podendo agir em antecedência a elas", disse a agência, em nota enviada à Repórter Brasil.

Problema: depender de outros países

"A pandemia mostra que depender de um único centro produtivo é um risco muito grande, principalmente em produtos de alta complexidade", disse Frangioni, que é também presidente da associação brasileira da indústria química fina, a Abifina.

"Vamos aprender com essa crise que o barato pode sair caro", disse Sérgio Frangioni, presidente da farmacêutica Blanver

Questionado especificamente sobre o repasse do custo extra, Frangioni disse que há negociações com o governo para buscar medidas para "amenizar" os efeitos da crise. "Neste momento, todos temos que ser solidários".

A dependência externa do Brasil é criticada por diversos especialistas, como o médico Dráuzio Varella. "Dependemos de importações de remédios de outros países. A China e a Índia são os que mais vendem genéricos para o mundo inteiro. Tem cabimento o Brasil, com tanta gente preparada, ter que importar esses medicamentos de outros países? Isso é ridículo", afirmou, em entrevista ao podcast Café da Manhã, da "Folha".

"Uma crise como essa explica por que precisamos de políticas públicas de investimento [na indústria nacional]. A justificativa em última instância é termos capacidade interna diante de momentos de dificuldades externas, como o atual, para não ficarmos completamente vulneráveis", finalizou Julia Paranhos, economista da UFRJ.