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Publicada originalmente na Revista Claudia, em 23/01/2020
“Aqui seu cão é bem vindo. Mas crianças favor amarrá-las ao poste!”. Escrita em um quadro na entrada da hamburgueria Underdog, em São Paulo, a frase gerou polêmica nas redes sociais quando a gestora Debora Oliveira decidiu questionar sua veracidade. Mãe de duas crianças e amiga de frequentadores do local, ela se deparou com a mensagem em um repost do Instagram e, indignada com a suposta “brincadeira”, publicou comentários no perfil do estabelecimento, chamando atenção para o absurdo da placa. Como resposta, recebeu um “Não venha” da Underdog, que também afirmou não ter intenção de mudar de postura.
Ocorrido em 2017, o caso ilustra, ainda que de forma um tanto extrema, o crescimento da onda ChildFree no país. Originado na América do Norte entre as décadas de 1970 e 1980, o movimento “sem crianças” surgiu para acolher pessoas que haviam optado por não ter filhos e eram discriminadas por essa escolha. De lá para cá, a causa cresceu e adotou novas bandeiras. Uma delas é a reivindicação de espaços livres da presença infantil.
Para atender a esses pedidos, um novo nicho de mercado tem aos poucos surgido, com hotéis e restaurantes frequentados apenas por quem está acima de determinada faixa etária. Há também a possibilidade de criar uma zona exclusiva para os pequenos, como fez a Japan Airlines em setembro de 2019 com o propósito de evitar desconfortos para ambas as partes. Ou situações como as vivenciadas pela empresária Paula Ricupero.
Mãe de duas meninas, ela mantinha um perfil no Instagram com dicas de gastronomia, o que lhe rendia muitas ofertas para visitar restaurantes. Em uma dessas ocasiões, ao ser convidada para um evento em um bistrô, ela perguntou se poderia levar a filha mais velha, na época com seis meses de idade. Negando, o estabelecimento alegou não ser um espaço para crianças pequenas e que, por se tratar de uma ação incomum à rotina do local, não seria possível encaixar acompanhantes. “Hoje contando parece ser bem bobo, mas lembro que fiquei muito chateada e chocada. Como era primeira filha, não sabia que haviam restaurantes que não gostavam de criança”, conta. “Além disso, eu estava bem insegura nessa fase inicial e essa seria a primeira vez que eu iria sozinha com ela a um restaurante. Depois do ocorrido, voltei a ter insegurança e demorei mais de um mês pra criar coragem de encarar um passeio só nós duas.”
Esta não foi a única vez que ela passou por algo do tipo. Em outra ocasião, levou bronca do gerente de uma pizzaria porque a filha estava andando pelo local. Com a casa cheia e a pizza demorando, Ricupero explica que era impossível manter a menina esperando sentada. Também já precisou ir amamentar escondida no banheiro por causa dos olhares de censura das pessoas.
Hoje, ela se diz mais calejada para enfrentar essas situações e, quando na companhia do marido, até se aventura a ir em restaurantes desconhecidos. “Se estou com ele, sei que a gente vai dividir. Se a minha filha estiver muito agitada, ele ajuda a cuidar dela enquanto eu como e a gente reveza.” Já se estiver sozinha, prefere ir a um lugar com o qual já é familiar para se sentir segura e fazer uma refeição tranquila.
A tranquilidade é justamente um dos argumentos levantados por quem defende a existência desses espaços. Childfree assumida há 10 anos, a técnica de enfermagem Luciana Habowsky e o marido optam por lugares onde sabem que dificilmente encontrarão crianças quando vão sair. “Durante toda a semana, estamos no agito, com uma rotina doida de trabalho, estudo… Então preferimos locais mais tranquilos, silenciosos, onde podemos ficar mais à vontade.”
Para ela, cabe a alguns pais perceber que existem espaços inapropriados para as crianças frequentarem. “Eles sabem que as crianças acabam falando um pouco mais alto ou às vezes são um pouco inconvenientes. E são ambientes que não condizem com crianças. É uma questão de bom senso.”
Vale apontar, porém, que o isolamento em nada contribui para melhorar o comportamento infantil, como explica a Dra. Fabiane Lopes de Oliveira, psicopedagoga e professora dos cursos de Licenciatura e Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). “As crianças estão em processo de desenvolvimento e os adultos são aqueles que determinam ou que são o exemplo das crianças. Permitir com que as crianças frequentem espaços comuns aos adultos permite que elas compreendam as formas de se comportar socialmente.”
Mas afinal, é permitido?
Segundo a lei brasileira, não. O ato seria até mesmo inconstitucional, aponta Igor Marchetti, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). “A Constituição Federal veta no artigo 1º, inciso III, a violação à dignidade da pessoa humana. E o artigo 3, inciso IV, fala que é objetivo da República evitar discriminações de qualquer tipo. E essa prática acentua a discriminação”.
Ainda na Constituição, o artigo 227, prevê que é direito da criança e do adolescente o convívio familiar e comunitário. O mesmo é garantido pelo artigo 16, inciso V do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que também condena em seu artigo 18 qualquer tipo de violação à sua dignidade por medidas constrangedoras. “Muitas vezes, o constrangimento vai para além da criança e afeta também pais, que são impedidos de acessar o local”, explica Marchetti, indicando que a prática abusiva fere ainda o Código de Defesa do Consumidor, cujo artigo 39 veta a possibilidade de recusar qualquer tipo de serviço para quem tenha o compromisso de pagar imediatamente pelo mesmo.
Contudo, é comum que alguns estabelecimentos justifiquem suas políticas restritivas alegando questões de segurança. Nestes casos, o advogado diz ser necessário analisar quais tipos de problemas poderiam afetar apenas o público infantil que frequentasse o ambiente. “É importante que a justificativa seja muito forte, porque falar que uma criança, pelo simples fato de ser criança, vai cometer certos atos é discriminatório.”
Aos pais que passaram ou venham a passar por algo do tipo, o advogado recomenda dar entrada em uma ação judicial de reparação por danos morais. “É possível também acionar o Ministério Público Federal e o Procon para, eventualmente, autuar o estabelecimento e criar uma medida administrativa que possa, em casos mais graves, suspender a atividade comercial deste.”
Apesar de estar ciente desses recursos legais, Paula Ricupero prefere não fazer uma reclamação formal. Para ela, os locais e seus frequentadores têm o direito de não querer a presença infantil. “Mas acho que o restaurante vai estar perdendo clientes, manchando a imagem com esse tipo de atitude. Até porque se o estabelecimento não quer a presença das minhas filhas, quem não quer ir nesse lugar sou eu. Se é um lugar que elas não serão bem-vindas, não é um local que eu gostaria de frequentar.”