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Imagem: iStock
Matéria publicada originalmente por Folha de S. Paulo.
Foi mais um corte da participação social no desenho das políticas públicas. A Medida Provisória 870- 2019, que estabelece a organização dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios, retirou da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), criada em 2006, os mecanismos de participação social, que faziam parte de seu artigo 11.
Com a medida, foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a estrutura de organização do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), fragilizando sua atuação nos estados e cidades.
A Política Nacional de Segurança Alimentar ficará a cargo do Ministério da Cidadania. O Consea é o principal canal de diálogo, discussão de pesquisas, referências e experiências e exposição de reivindicações sociais nos campos da alimentação e nutrição, defesa do meio ambiente, promoção da agroecologia e da agricultura familiar e combate ao desperdício de comida.
Atuou contra a flexibilização do uso de agrotóxicos e a aprovação do chamado PL do Veneno. Organizado como colegiado que atuava de forma consultiva, tinha 60 membros, de participação voluntária, 2/3 representantes de entidades da sociedade e 1/3 do governo.
Foi a partir de sua criação, em 1993, que o país reconheceu a responsabilidade de enfrentar a fome e organizou um marco legal para a garantia do direito humano à alimentação adequada. Formado na época do governo Itamar Franco, o conselho surgiu da pressão de organizações lideradas pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, com o objetivo de combater a situação de insegurança alimentar no país, que, naquele momento, segundo dados divulgados pelo movimento, atingia mais de 32 milhões de pessoas.
Entre os programas criados em torno no Consea estão o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), para apoiar a agricultura familiar e direcionar alimentos para restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos, organizações assistenciais, creches, asilos, hospitais e abrigos.
O conselho também foi atuante na modificação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), para incluir regra de aplicação de no mínimo 30% do financiamento municipal repassado para as escolas com compra de produtos provenientes da agricultura familiar. O incentivo à produção agroecológica com a proteção do meio ambiente também foi um marco na atuação do Conselho, com a formulação da Política e do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
Para o advogado do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) Igor Brito, além do combate à fome, o Consea foi um marco na construção de políticas públicas de educação alimentar e na criação de um ambiente de alimentação mais saudável para as crianças nas escolas.
O grupo Ação da Cidadania, que participa desde o início do Conselho, se manifestou em nota contra o esvaziamento do órgão e as alterações na Lei de Segurança Alimentar. “É preciso preservar os espaços de diálogo com a sociedade civil e fortalecer as políticas de combate à fome e à miséria. Em uma democracia, acima de tudo, é preciso haver diálogo com a sociedade e estar preparado para o contraditório”.“É importante lembrar que as políticas públicas originadas do Consea e das organizações participantes, conseguiram retirar o país do Mapa da Fome da ONU em 2014, sendo seu trabalho e resultados objeto de estudo e referência por organismos internacionais como a própria ONU e diversos países pelo mundo”, diz a nota do Ação da Cidadania.
“O ano que o país deve voltar ao Mapa da Fome da ONU (onde mais de 5% da população se encontra em insegurança alimentar) ser o mesmo ano que o Consea é esvaziado (ou extinto, ainda não temos clareza!) é de um surrealismo ímpar na história do país, e ao que parece, especialmente nas questões sociais, está caminhando rumo a um retrocesso social sem precedentes.”
O Ação da Cidadania faz um apelo ao governo para que reconsidere as mudanças. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) também emitiu nota repudiando a extinção do Conselho. “A luta pela defesa do Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil é histórica e, com o protagonismo da sociedade civil organizada, promoveu inúmeros avanços, dentre os quais a inclusão da alimentação como uma das garantias fundamentais dos cidadão e cidadãs brasileiras na Constituição Federal de 1988”, escreve a Abrasco.
Grupos da sociedade civil que fazem parte do Consea também se manifestaram. “A institucionalização da participação de representantes de diferentes setores da sociedade civil em um órgão de assessoramento direto da Presidência da República, como o Consea, tem sido importante instrumento de escuta da sociedade civil para o aprimoramento de políticas públicas e fortalecimento do Estado brasileiro”, diz a nota.
A Associação Brasileira de Nutrição (Asbran) também repudiou a medida, que considera "um retrocesso incomparável nas políticas de segurança alimentar e nutricional, justamente em um momento em que o país precisa aprofundá-las".