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É fato que, em menor ou maior grau, já estamos sentindo os efeitos do aquecimento do planeta. Do ponto de vista da mobilidade nas cidades, temos um sistema insustentável, antieconômico e perverso. Ano após ano, o que se constata são medidas que privilegiam àquele que se desloca em automóvel, geralmente sozinho, e não àquele que utiliza o meio coletivo, a bicicleta, ou a caminhada como transporte.
Ainda que pareça uma rota de colapso inevitável, essa vida bizarra levada nas grandes cidades é fruto de escolhas do Estado e das empresas, que acabam, em boa medida, pautando as escolhas individuais. Na contramão da escassez de recursos naturais, somos empurrados a inflar nosso conceito de suficiência. O mínimo é cada vez mais.
Washington Novaes expressa muito bem a inversão da finalidade essencial do transporte que “deixou de ser meio para ser fim em si mesmo”. Para driblar o trânsito cada vez mais caótico, a indústria automobilística renova apelos publicitários aos benefícios que vão muito além da comodidade de “chegar mais rápido”, mas, sim uma possibilidade de se distinguir dos demais, como ilustra o slogan de um dos milhares de anúncios de novos modelos: “mais do que um carro, um estilo de vida”.
No entanto, quando queremos saber quanto os nossos carros poluem ou quanto podemos economizar no consumo de combustível em modelos mais eficientes, a poderosa indústria automobilística no Brasil dá de ombros ao direito básico do consumidor de ter esse tipo de informação, como mostra recente pesquisa realizada pelo Idec.
Por sua vez, os municípios acabam seguindo a lógica de empresas privadas. São Paulo, por exemplo, tem negligenciado sistematicamente a legislação federal que determina em seu Plano Diretor a realização de um Plano de Transportes que torne a mobilidade da cidade mais sustentável. Isso sem contar a demora para reativar o Conselho Municipal de Transportes, que poderia servir como instância de decisões mais participativas para a cidade.
A despeito de diversas manifestações da sociedade civil, o prefeito e o Secretário de Transportes permanecem paralisados aos apelos por diálogo e transparência, quanto aos planos para uma cidade que deveria ser para pessoas e não para carros.
Sabemos que entre a consciência do problema causado pelo nosso consumo e a mudança de nossos hábitos há uma grande distância. Essa lacuna pode se explicar de muitas formas. A falta de informação, regulação fraca, ausência de alternativas para o consumo responsável e, no caso da mobilidade, falta de políticas e expressivo investimento que priorize efetivamente o coletivo podem explicar, em parte, porque é tão difícil mudar a direção de nossas cidades.
No fundo, falta ainda disposição para mudar o jeito de fazer as coisas. A forma tradicional de acumulação de recursos e de socialização das perdas ainda determinam modelos de negócios e resultam em poucas opções ao consumidor individual. Na prática, realidade é que, sozinhos, temos poder muito limitado, embora a ação individual seja extremamente necessária.
Se os dados trazidos pelos cientistas mostram que já esgotamos o tempo da bomba relógio do aquecimento global, acionada por nossos padrões de produção e consumo, talvez seja hora de assumirmos de verdade um compromisso. Um acordo sem tratados nem exigência de rodadas de negociações internacionais. Um pacto para a mudança mais difícil – a de nós mesmos. E a forma como nos posicionamos pessoalmente frente a problemas coletivos.
Repetida indiscriminadamente, o significado da palavra mudança fica meio vazio. No seu exercício prático, parece estar associada à ideia de sacrifício, privação, o que nem sempre é verdade.
Façamos uma conta rápida: para poupar 20 minutos caminhando entre o metrô e o trabalho, há quem prefira passar 2 horas no carro com ar condicionado ligado no máximo. Esta situação expõe emblematicamente o dilema do confronto entre o desejo individual com o bem comum. A outra conta é verificar quanto gastamos de recursos para manter e utilizar sem critérios os veículos. Não se trata aqui de culpar aqueles que sempre aspiraram possuir um carro e finalmente podem comprar. Trata-se de questionar o estilo de vida que temos, qual realmente queremos e o que somos forçados a querer pelo mercado.
Se somos muitos e o planeta um só, vamos ter de chegar a um acordo mínimo de mudança de hábitos antes que essa nossa morada global nos expulse daqui, praticando ações cotidianas que criem chão para nós e para os que de nós virão. Isso requer, antes de mais nada, reflexão, disposição e questionamento se realmente seremos mais felizes ao adquirir um novo automóvel e se é tão dispensável manifestar-se a favor de cidades mais democráticas e contra ações empresarias e governamentais que contrariem essa lógica.
É viável eleger em qual intensidade interferir. Poluir menos está entre as alternativas. É possível consumir, eletivamente, aquilo que integre uma relação saudável entre o custo e o desfrute. Para tanto, é necessário avaliar a origem do que consumimos, exercitar a recusa e negar o mantra que nos induz a acreditar que sem o consumo desenfreado seremos menos felizes e que sem ele o País deixará de se desenvolver.