separador
Atualizado:
Reportagem do jornal O Globo, publicada em 11/04/2022
Como O GLOBO revelou, partidos e pré-candidatos já começaram a lançar mão do impulsionamento em redes sociais para ampliar seu alcance digital e mirar segmentos específicos do eleitorado. Ao todo, as duas plataformas receberam R$ 9,9 milhões em anúncios com temas sociais, eleições e política nos últimos três meses, de acordo com dados das próprias redes.
Para a pesquisadora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Juliana Oms, a política do WhatsApp permite que metadados coletados no aplicativo sejam incorporados ao modelo de negócios da Meta. Assim, o Facebook, por exemplo, se utiliza dessas informações para vender publicidade específica a usuários com maior probabilidade de reagir àquele conteúdo.
Oms afirma que qualquer pessoa ou empresa que contrate os serviços de publicidade da Meta pode turbinar notícias falsas a partir do uso de metadados colhidos anteriormente no WhatsApp. Ou seja, o direcionamento de publicidade em outra rede social alcança com maior precisão o público-alvo.
— Mesmo no período eleitoral, podem ser feitos disparos de mensagens com intuito político que não sejam categorizados como propaganda política, como, por exemplo, conteúdo antiaborto ou pró-armas — afirma ela.
Vazamentos
O histórico é desfavorável ao aplicativo americano. Em 2018, o grupo detentor de Facebook, Instagram e WhatsApp reconheceu que dados de 87 milhões de pessoas foram compartilhados indevidamente com a empresa de marketing político Cambridge Analytica — destes, 71 milhões eram de americanos e foram utilizados na campanha eleitoral do ex-presidente Donald Trump. O Facebook alterou suas políticas de acesso a dados por terceiros após o caso.
No Brasil, uma investigação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) se arrasta há mais de um ano sob sigilo. O órgão está analisando se o tratamento de dados dos consumidores pela empresa respeita as regras de proteção de dados pessoais.
Desde a cobrança por esclarecimentos sobre as políticas de privacidade do WhatsApp feitas pelo quarteto formado por Ministério Público Federal (MPF), Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), emitida em maio de 2021, não se tem notícia de conclusão das análises por parte da ANPD.
Primeira instituição a representar contra as mudanças nas políticas do WhatsApp feitas em 2021, o Idec vem tentando sem sucesso ter acesso às informações da investigação da ANPD, argumentando que se tratam de documentos de interesse público. Os novos termos do WhatsApp apresentam riscos e ilegalidades, argumenta o instituto.
Recentemente, o MPF em São Paulo, que participa da apuração do caso, externou preocupação com o sigilo, indicando a importância de que as informações prestadas pelo WhatsApp sobre sua política de privacidade e as análises feitas pela ANPD sejam abertas ao público, ficando o segredo restrito a pontos específicos que envolvam patentes ou dados protegidos por sigilo industrial e comercial.
— Considerando que se trata de um aplicativo utilizado por esmagadora maioria da população, o que for decidido no caso do WhatsApp vai impactar os direitos de privacidade, de personalidade e liberdade de expressão dos brasileiros, com possíveis impactos até para a democracia — diz Oms.
‘Consentimento forçado’
Uma das críticas do Idec recai sobre o fato de o WhatsApp não ter oferecido aos brasileiros, na mudança de 2021, a opção de não compartilhar seus dados com outras empresas do grupo. Na atualização de 2016, a alternativa foi oferecida por apenas 30 dias.
Ao GLOBO, o WhatsApp informou que "continua honrando a decisão dos usuários naquela data, então, caso um usuário tenha optado em 2016 por não compartilhar as informações para essas finalidades e concordar com a atualização de 2021, a empresa reconhecerá essa opção", mas não respondeu por que não ofereceu essa opção no ano passado.
O Idec classifica o problema como "consentimento forçado" e afirma que inexiste base legal para esse compartilhamento, em desrespeito ao Código de Defesa do Consumidor, ao Marco Civil da Internet e à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em vigor no Brasil.
"Não há consentimento livre ou direito de escolha se não há a possibilidade de uso do aplicativo sem o compartilhamento de dados, que se torna compulsório especialmente frente ao enorme poder de mercado que a empresa possui no país", afirma o Idec.
Sem acesso às informações, o Idec avalia que "nem sequer é possível avaliar se os compromissos assumidos pela empresa são positivos e suficientes". Procurada, a ANPD afirmou que "o WhatsApp se comprometeu a adequar sua política de privacidade para que fique transparente para o titular de dados como se dá o tratamento de dados pessoais".
‘Segunda classe’
Especialistas e autoridades criticam a postura do WhatsApp, que trata, segundo eles, os brasileiros como "usuários de segunda classe" em relação aos europeus. Isso porque os países da União Europeia receberam a atualização com conteúdo distinto do de outras regiões do mundo, incluindo o Brasil.
Para Michel de Souza, diretor de políticas públicas da ONG Derechos Digitales, sediada no Chile, os metadados são "muito preciosos" e o compartilhamento indevido com empresas do grupo e outras companhias pode levar a "sérios questionamentos de direitos humanos e concorrenciais".
— A nossa lei de dados é fortemente inspirada na normativa europeia, então por que eles não aplicam as mesmas políticas aqui? — diz Souza.
Em contraponto, analistas avaliam que a Meta pode usar esses dados do WhatsApp de forma benéfica. Por exemplo, para treinar o algoritmo contra spam, comportamento coordenado inautêntico e outras manipulações indevidas da plataforma.
Um levantamento elaborado pela Data Privacy Brasil para comparar as políticas de privacidade do WhatsApp no Brasil e na União Europeia mostra que a versão europeia apresenta mais detalhes sobre a possibilidade de usos de informações pessoais entre o WhatsApp e as empresas da Meta — o que não acontece no caso brasileiro.
— Como a política permite o compartilhamento dos metadados do WhatsApp com as empresas do grupo para “perfilização” e personalização, diferente da Europa, por exemplo, há espaço para uso com fins político-eleitorais, o que é preocupante — afirma Mariana Rielli, do Data Privacy Brasil.
O WhatsApp só atualizou os termos de uso na Europa após ter sido multado em 225 milhões de euros (R$ 1,3 bilhão à época), em setembro de 2021, por falta de transparência em como lida com informações pessoais de seus usuários.