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Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada em 24/12/2020
No início da pandemia do novo coronavírus, uma ação julgada em Brasília determinou que planos de saúde fossem obrigados a prestar atendimento de urgência e emergência a todos os pacientes, independente do prazo de carência previsto em contrato. Se fosse considerar ao pé da letra o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública, a decisão valeria apenas para o lugar em que foi proferida: ou seja, na capital do País. Mas uma ação coletiva proposta pela Defensoria Pública do Distrito Federal garantiu que a regra valesse para qualquer brasileiro.
A abrangência territorial das chamadas Ações Civis Públicas (ACP), meio processual de defesa de interesses da sociedade, ainda não é consenso na Justiça, apesar do caso de Brasília. O tema vem sendo alvo de discussões há pelo menos duas décadas, segundo analistas ouvidos pelo Estadão. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF) mostrou disposição em dar um basta no assunto e responder se decisões acerca de ações coletivas têm alcance nacional ou se estão limitadas ao Estado onde foram julgadas. Um julgamento chegou a ser pautado para o último dia 16, mas foi adiado.
Hoje, há 438 mil ações coletivas registradas no Cadastro Nacional de Ações Coletivas (Cacol), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Se a Corte entender que as decisões valem para todo o território nacional, esse número teria uma redução “drástica”, já que não haveria necessidade de análise de ações autônomas, diz João Paulo Carvalho, defensor público e coordenador do Núcleo de Defesa do Consumidor. “O principal efeito nacional é a agilidade, a celeridade no cumprimento da decisão. O direito já estaria reconhecido. Nos Estados, podemos nos beneficiar daquela decisão e apenas pedir o cumprimento.”
O caso dos planos de saúde é de abril deste ano, mês em que o País bateu a marca das 400 mortes diárias por coronavírus. Na prática, a ideia de dar abrangência nacional à decisão evitaria que ações sobre o mesmo tema fossem julgadas em outros Estados e tivessem resultados divergentes em outros tribunais – embora os consumidores tenham os mesmos direitos. A questão foi que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu, em março deste ano, todos os processos que discutiam a abrangência do limite territorial para as decisões proferidas em ação civil pública, já que o Supremo ainda vai dar seu parecer sobre o assunto.
Modelo
A tese que seria discutida pela Corte tem origem em uma outra ação, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) contra 16 instituições financeiras. Nela, o Idec questiona a cláusula de um modelo de contrato do Sistema Financeiro Habitacional e pede a nulidade de todos os contratos, independente de localização, já que se tratava de consumidores de diferentes Estados do País.
Quando se discutia a liminar, houve uma decisão no processo tratando sobre abrangência territorial. O TRF3 decidiu pela abrangência nacional, mas os bancos recorreram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). A 3.ª Turma do STJ aplicou o artigo 16 para limitar a abrangência, e o Idec foi à Corte Especial do STJ, que decidiu pelo alcance nacional. Foi essa última decisão que justificou a interposição de um recurso extraordinário para o STF.
“Como já definiu o Supremo Tribunal Federal, há no processo uma importante questão constitucional a ser decidida: se o artigo 16 da Lei de Ação Civil Pública é ou não compatível com a Constituição”, diz Fábio Quintas, advogado que atua no recurso extraordinário representando o Itaú e o Santander.
Para ele, não é correto dizer que a norma destrói o processo coletivo no Brasil. “O artigo 16 está em vigência plena desde 1997, até a mudança de entendimento do STJ. Acho que ninguém pode dizer que o processo coletivo no Brasil se perdeu nesse período por conta dessa regra.” Segundo o advogado, dizer que a lei é inconstitucional significa trazer insegurança jurídica, já que ela orientou a conduta de todos durante pelo menos 15 anos.
Exceção
Advogado do Idec em Brasília, Walter Moura afirma que a ação civil pública que trata problemas nacionais com uma só sentença concentra e otimiza a solução. Ele justifica que o instituto pediu âmbito nacional à sentença porque a atuação dos bancos tem abrangência nacional. “As sentenças coletivas devem se restringir ao local onde elas são proferidas, que é defendido do lado contrário. Mas comporta exceções, em hipóteses em que o dano é coletivo, como foi o caso”, afirmou.
Os que defendem a limitação geográfica justificam que não faria sentido dar a um juiz de primeiro grau o poder de decidir para todo o País. Seria como esvaziar o poder dos tribunais superiores.
Professor de direito Tributário, Administrativo e Constitucional, Rubens Ferreira Jr. afirmou que o que está em jogo não são direitos individualmente considerados, mas sim, de interesses difusos e coletivos. “A jurisdição é una, ou seja, estando adequados os sujeitos do processo (autor e réu), o juiz não só pode como deve decidir de forma ampla, a não ser que consideremos que a instituição financeira seja fragmentada em diversos polos unitários, configurando empresas diversas.”
Para ele, as instituições financeiras têm interesse em limitar as decisões aos Estados pois, caso o STF mantenha o entendimento do STJ, uma só decisão já é suficiente para que todas as pessoas lesadas do País executem a sentença, sem necessidade de processo. “É um ‘cheque’ do consumidor contra os bancos.”
Em nota, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) diz que a lei é clara ao estabelecer que a abrangência dos efeitos da Ação Civil Pública é restrita aos limites da competência territorial do órgão que profere a sentença da decisão.
Para entender: medidas visam reparar danos
Uma Ação Civil Pública (ACP) visa a reparação e responsabilização de danos a direitos “meta-individuais”, ou seja, difusos e coletivos. Entram nessa lista, segundo o professor de direito administrativo do Mackenzie, Armando Rovai, infrações ao meio ambiente, a bens artísticos e históricos, à honra de grupos raciais, étnicos e religiosos, à ordem econômica e aos consumidores.
A ACP está prevista na Lei n.º 7.347/85 e pode ser movida pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela União, Estados e municípios, por fundações e sociedades de economia mista ou por associações que tenham como finalidade a proteção de direitos coletivos. As medidas podem ser tomadas contra órgãos públicos, empresas e autoridades.
Já os cidadãos que queiram promover sozinhos uma medida do tipo devem se valer da Ação Popular, quando julgar que o poder público infringiu o patrimônio coletivo.
Os danos que motivam uma Ação Civil Pública podem ser de natureza moral ou material. Foram movidas ações do tipo, por exemplo, nos casos dos rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho (MG), em 2015 e 2019, para a reparação dos danos ambientais e ressarcimento dos moradores das regiões afetadas.