Bloco Associe-se

Associe-se ao Idec

Qual o futuro da mobilidade?

Pandemia abre espaço para experimentos globais de mobilidade e aponta para a bicicleta como saída sustentável (e popular)

separador

Gama Revista

Atualizado: 

05/03/2021
Foto: iStock
Foto: iStock

Reportagem da Gama Revista, publicada em 28/02/2021

Pelas janelas de Jalandhar , na Índia, um pedaço do Himalaia despontou no ar subitamente mais limpo. Em Nova York , o asfalto passou a receber mesas de restaurantes e bandas de jazz. Na Cidade do México , 12 quilômetros de ciclofaixa surgiram em sua avenida mais longa. Improváveis antes da pandemia, cenas como essas chacoalharam o status quo nas grandes cidades.

Conforme o ritmo motorizado volta a acelerar – no Brasil, 60% pretendem dirigir mais depois da pandemia, tendência mantida em outros 25 países –, os velhos problemas vêm a reboque, como a má qualidade do ar, as emissões de gases de efeito estufa e a disputa por espaço entre carros e outros tipos de transporte. Mas há habitantes saindo da quarentena com novas demandas, ao mesmo tempo em que governos apresentam planos ambiciosos de mobilidade, acelerando tendências pré-existentes.

E deixe de lado novidades sobre hyperloops, carros voadores ou autônomos – não houve muitas. A grande estrela é a humilde bicicleta, cujo uso aumentou globalmente. Em Nova York , as pontes de Brooklyn e Queensboro vão ganhar ciclovias permanentes para atender seus ciclistas, que cresceram 55% em 2020. Em Milão , 35 quilômetros de ruas foram convertidos provisoriamente para bicicletas e pedestres. Em Montreal, foram mais de 300 km de ciclovias e ciclofaixas. O mesmo ocorreu em Londres (90 km), Bogotá (96 km) e Buenos Aires (17 km). No Brasil, adições aconteceram em Fortaleza e Belo Horizonte (cada uma com 30 km).

Quando se trata de conceitos estruturais de mobilidade, Paris levantou a bandeira mais alta. Após adicionar 50 km para bicicletas em 2020, aumentar o número de ciclistas em 60% e anunciar uma grande reforma da região da avenida Champs-Élysées, despriorizando carros, a prefeita Anne Hidalgo vai investir na chamada “cidade de 15 minutos”. A ideia é que moradores não estejam a mais de 15 minutos de distância, a pé ou de bicicleta, de necessidades essenciais de trabalho, lazer, saúde e consumo. O resultado seria uma metrópole calcada na mobilidade ativa e na hiperlocalidade, fundamentalmente diferente da lógica atual.

A cidade de 15 minutos logo se tornou tema recorrente entre gestores públicos, urbanistas e arquitetos mundo afora. Mas, entre a visão e a execução dessas novas urbes, há uma série de desafios interligados, como a urgência para eletrificar a frota, a crise financeira enfrentada por sistemas de transporte coletivo e a necessidade de criar uma convivência segura entre diferentes modais pelas ruas.

O lugar do carro no século 21

Quando o transporte por carro particular cresceu durante a pandemia, não houve mistério: as pessoas se sentiam mais seguras fora da aglomeração do transporte público. Já a continuidade (ou não) desse comportamento depende de vários fatores – inclusive da história. “As cidades em que vivemos hoje foram desenhadas para o veículo motorizado, assim como Londres foi desenhada para a ferrovia”, explica Victor Andrade, coordenador do Laboratório de Mobilidade Sustentável da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Mas, se continuarmos nesse ritmo, elas vão parar de fato.”

Como carros seguem sendo vendidos ano a ano (apesar da queda de 15% , foram 56 milhões em 2020, 1,9 milhão só no Brasil) e o espaço é finito, as vias estão chegando no limite. Dados de 2018 mostram que motoristas de Bogotá passaram, em média, 272 horas por ano no trânsito. No Rio, foram 199 horas. O cenário demográfico não alivia: as projeções da ONU indicam que a população urbana vai subir 40% até 2030. Serão 5 bilhões de pessoas que precisarão se movimentar.

Para especialistas, a resposta está na mobilidade intermodal e na mobilidade-como-um-serviço (MaaS, na sigla em inglês) para mesclar transporte coletivo e outros meios compartilhados em plataformas de pagamento unificadas. “Por que não poderíamos ir até o terminal de ônibus com uma bicicleta compartilhada e isso funcionar junto com o Bilhete Único?”, exemplifica Victor. Na prática, o modelo incentivaria uma transição sem entrar em conflito direto com os carros próprios, tornando-os cada vez mais desnecessários.

Desestimular o uso de carros financeiramente (ao cobrar pedágios urbanos, por exemplo) e fisicamente (como ao abrir ruas para pedestres) é um caminho testado por algumas cidades. Mas deve ser feito em paralelo com o desenvolvimento de alternativas confortáveis e seguras para conquistar esses motoristas – seja de volta, pós-pandemia, ou de vez. “É preciso dar condições para que as pessoas migrem de modal. Enquanto o desenho de cidade não permitir, essa expansão desejada sempre vai se limitar”, continua Victor.

Transporte público em crise

Temerosas em relação ao contágio de covid-19, as pessoas passaram a evitar ônibus, trens e metrôs, causando grande impacto nos sistemas que dependem de passageiros pagantes. É o caso da maioria das cidades no Brasil, onde 50% do deslocamento motorizado acontece por transporte público. Com o tempo, espera-se que a demanda retorne a níveis similares aos pré-pandemia. Mas a situação em que o transporte público estará é uma incógnita.

Segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos , as empresas de ônibus urbano tiveram prejuízos de R$ 9,5 bilhões entre março e dezembro de 2020 e o ano fechou com redução média de 39% na quantidade de viagens. “Ou se faz alguma coisa ou o sistema vai colapsar, e quem sofre é quem mais precisa”, resume Kelly Fernandes, analista de projetos de mobilidade do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).

Uma prévia já é vista em Teresina : só em 2021, funcionários de ônibus fizeram seis paralisações exigindo pagamento de salário, deixando trabalhadores essenciais esperando nas ruas. Pouco antes das greves, em dezembro, o governo federal vetou um socorro de R$ 4 bilhões para o setor . É um contraste com países como EUA, onde US$ 25 bilhões foram liberados para agências de transporte .

E mesmo num cenário de demanda normalizada, há o impacto ainda desconhecido do teletrabalho, que deve afetar os deslocamentos diários em alguma medida. No Brasil, dados do IBGE apontam que 7,9 milhões estavam trabalhando remotamente em 2020, com maior proporção entre pessoas com ensino superior completo e acima. “O trabalho remoto vai esvaziar alguns lugares conhecidos por concentrarem escritórios, mas quem trabalha com serviços essenciais continuará com rotinas próximas daquelas de antes”, avisa Kelly. “Precisamos nos preocupar muito com elas, porque há uma grande chance de serem deixadas de lado.”

O avanço da mobilidade ativa

Em 2020, o governo da Itália ofereceu até €500 para cidadãos adquirirem bicicletas e patinetes e se movimentarem ao ar livre, esgotando o estoque das lojas. Na Argentina, avenidas de Buenos Aires ganharam calçadas mais largas e ciclofaixas, elevando o número de ciclistas em 44% e dobrando o número de mulheres pedalando . Em Londres, constatou-se que pessoas que se deslocam a pé ou de bicicleta gastaram 40% a mais nas ruas de bairro do que aquelas que dirigem. Devido a respostas positivas como essas, várias estruturas temporárias estão em vias de se tornarem permanentes.

“É curioso que a pandemia nos tenha feito parar de pensar em coisas como cidades inteligentes e carros voadores. Talvez a gente tenha recolocado em debate os alicerces da mobilidade”, fala Hannah Machado, coordenadora de urbanismo e mobilidade da Vital Strategies, consultoria global com foco em saúde pública. “E o que é a mobilidade do futuro? É conseguir se deslocar por meios saudáveis e sustentáveis, com segurança e conforto, seja você uma pessoa idosa, criança ou com imunidade reduzida.”

No Brasil, onde 43% das pessoas já se deslocam a pé ou de bicicleta , parece haver entusiasmo pela ideia da mobilidade ativa. Uma pesquisa do Instituto Clima e Sociedade apontou que 67% dos entrevistados estariam dispostos a abrir mão do transporte individual por um mais limpo. Em 2017, 30% consideravam o carro o melhor meio de transporte cotidiano. Em 2020, o número caiu para 19%. Metrô e bicicleta foram os mais bem avaliados, com 29% e 27% de preferência, respectivamente.

De forma geral, a pandemia recompensou gestores públicos proativos e comprovou que os habitantes estão dispostos a experimentar. “Tem uma frase do [arquiteto e urbanista dinamarquês] Jan Gehl que diz: ‘Primeiro, nós moldamos as cidades. Depois, elas nos moldam’. Se você colocar uma ciclovia, mais pessoas vão pedalar”, sintetiza Hannah.

O incentivo a veículos elétricos

Com a crise climática em curso, governos estão acelerando a transição para veículos elétricos. No fim de 2020, a China decidiu que, a partir de 2035, a maior parte dos veículos vendidos no país deverá ser elétrica. Enquanto isso, países como Reino Unido, Dinamarca e Japão planejam proibir a venda de automóveis a gasolina ou diesel a partir de 2030.

No setor privado, a General Motors anunciou que venderá exclusivamente carros e caminhões elétricos até 2035. O prazo surpreendeu o mercado, mas o motivo, não: é uma forma de competir com a Tesla, fabricante de elétricos hoje avaliada em US$ 752 bilhões, um valor superior ao de General Motors, Toyota, Volkswagen e Ford combinadas.

Na América Latina, o avanço é tímido. A plataforma E-Bus Radar mapeia a quantidade de ônibus públicos elétricos na região, um indicador relevante devido ao papel do transporte coletivo na emissão de gases de efeito estufa e de material particulado nocivo à saúde. Apesar do número ter praticamente dobrado entre 2019 e 2020, são apenas 2.221 em circulação – 350 deles no Brasil.

Nova demanda por ar limpo

Os argumentos pela eletrificação e pela mobilidade ativa ganharam mais força devido à forte poluição do ar, que ficou evidente durante a pandemia. Segundo um estudo recente , uma a cada 5 mortes no mundo em 2018 foi causada pela poluição. No Brasil, a Organização Pan-Americana da Saúde estima que ela leva a 51 mil mortes por ano, quase 6 pessoas por hora.

O tema ganhou rosto de criança em dezembro de 2020, quando uma decisão judicial britânica apontou a poluição do ar como motivo da morte de Ella Kissi-Debrah aos 9 anos, após um ataque de asma. A menina é a primeira pessoa na história a ter essa causa em seu atestado de óbito, algo que deve incentivar novos processos, leis e políticas públicas.

“Não dá mais para sair respirando esse ar”, reforça Victor Andrade. “A mudança é para ontem. Mas, sem escolher a chave correta, corremos o risco de voltar ao antigo normal – que não é saudável nem para o indivíduo, nem para a sociedade, nem para o planeta.”

Veículos autônomos se tornam terra de gigantes

Já entre os avanços tidos como futuristas, é o desenvolvimento de veículos autônomos que segue forte. Em 2020, ele se concentrou ainda mais em gigantes como Tesla, Apple e Alphabet, dona do Google e da Waymo, sua subsidiária especializada nessa tecnologia. Em um cenário de crise, elas estão entre as poucas empresas capazes de manter centenas de milhões de dólares investidos em projetos do tipo.

No último ano, a Apple dobrou o número de testes de seus veículos autônomos e pretende lançar seu primeiro modelo em 2024. Já a Waymo, que circula há tempos com táxis-robô experimentais nos EUA, captou US$ 750 milhões em sua última rodada de investimentos.

A (quase) exceção à regra é a Uber, uma das pioneiras no campo. A empresa vendeu sua divisão de veículos autônomos para a startup Aurora por um valor não especificado, mas não desistiu do que considera o futuro do negócio: a transação incluiu um investimento de US$ 400 milhões da Uber na nova empresa e 26% de controle sobre ela.